Brasil
Sousa, da Redes da Maré: “Quem só via a favela pela violência, passou a enxergá-la a partir do coronavírus”
Pergunta. A pandemia de coronavírus afeta pobres, classe média e ricos da mesma forma?
Resposta. Não, claro que não. A pandemia de coronavírus está escancarando uma questão, que já sabemos que faz parte do nosso cotidiano, que é a desigualdade social. Isso já a partir do momento em que você precisa estabelecer um distanciamento, um isolamento, e uma quarentena para as pessoas. Mas as pessoas vivem nas favelas em casas muito pequenas, sem ventilação adequada, faltam recursos e infraestrutura de urbanização... Isso falando de coisas básicas. Se vivêssemos em um país onde as pessoas tivessem habitação e as coisas funcionassem bem, já haveria problema. Mas não temos o básico para lidar com a crise. As favelas, periferias e regiões mais pobres que não são providas de serviços públicos estão diretamente afetadas para além do que a própria contaminação trás. Elas já estão muito vulneráveis.
P. Quais são as vulnerabilidades concretas que o coronavírus escancara?
R. São várias questões. A primeira tem a ver com as condições habitacionais e de densidade populacional. Na Maré vivem 140.000 pessoas divididas em 16 favelas. São 47.000 domicílios em 4,5 quilômetros de extensão. Os números são equivalentes a de uma cidade brasileira de médio porte. As pessoas estão muito próximas, as casas são pequenas, sem condições sanitárias, esgoto, água potável... Em algumas favelas você não tem água encanada todo dia. E aqui no Rio ainda tem toda a questão da qualidade da água da Cedae, um elemento que piora as condições. Numa perspectiva ambiental mais geral, você precisa ter espaços arejados e condições mínimas para estabelecer esse distanciamento social, mas a realidade é a de três pessoas morando num quarto. A gente não tem as condições básicas para criar uma prevenção em massa, e isso é anterior ao coronavírus.
P. Muitas familias de classe média vêm fazendo home office, mas nas favelas o trabalho informal é a realidade. Quais são as vulnerabilidades econômicas?
R. É a outra camada do problema. Além da questão estruturante, um país de déficit habitacional e de saneamento, tem as condições de trabalho daqueles que moram em favelas e periferias. Nem todas vão ter condições de trabalhar em casa. São prestadores de serviço ou profissionais autônomos que dependem do trabalho para gerar renda. Se não trabalham, não geram. Além do tipo de trabalho, pelas condições das residências elas nem teriam um espaço para sentar ali em frente ao computador e trabalhar de home office.
P. Que tipo de ação a Redes da Maré vem fazendo nas últimas semanas?
R. A nossa campanha está dirigida para as 6.000 famílias mais vulneráveis. A partir da população da Maré, de 140.000 pessoas, a gente cruzou dados de pobreza para chegar a esse número. Nossa meta é contribuir com recursos materiais para que essas pessoas possam minimamente sobreviver durante essa crise. Estamos buscando recursos para a compra de cestas básicas e material de limpeza, mas nossa proposta é que possamos comprar esses produtos nos comércios da Maré. São quase 4.000 estabelecimentos comerciais, então é também uma forma de girar a economia local e ajudar esses autônomos e prestadores de serviços. Existe um projeto [que envolve mulheres] chamado Maré de Sabores, que presta serviços de buffet, mas todos os eventos foram cancelados. Então estamos mobilizando elas para não deixar sem apoio os usuários de crack. A partir das contribuições da campanha, vamos cozinhar 180 quentinhas a partir de sexta, fazendo escalas de trabalho que garantam a prevenção delas, e entregar de dentro do carro. Estamos buscando recursos financeiros para comprar itens de alimentação e prevenção, mas parte dos recursos vai para essas mulheres, para gerar renda para elas.
Desde que começou essa crise, a gente estabeleceu uma parceria com a Fiocruz para validar as informações e o que pode ser feito dentro de uma realidade como a das favelas. Tem nos ajudado a entender inclusive como fazer essas ações se protegendo, já que a gente mobiliza muitas pessoas para entregar as cestas básicas. O interessante é como em cada uma das favelas as pessoas podem buscar soluções locais para criar um processo dinâmico e também positivo de ajudar um ao outro, e também gerar recursos. Vai ser um aprendizado mobilizar a sociedade em torno de causas que são muito emergenciais.
P. Acredita que a crise possa trazer um efeito positivo, que é dar sentido de urgência para todas essas questões históricas?
R. Estamos num momento difícil num ponto de vista objetivo. Mas as pessoas estão em casa, é o momento de refletir e olhar para o coletivo. Todas as dificuldades que vivemos no plano mais básico já está posto no cotidiano. As pessoas que muitas vezes não querem ver, ou só enxergam as favelas a partir da questão da violência armada. Com essa crise, começam a ver que não é só isso. É importante chamar atenção para essas questões, e que não pode ser algo pontual. Para sobreviver a outras possíveis crises que teremos, precisamos resolver essas questões muito básicas.
P. E como os setores de classe média alta podem ajudar?
R. Várias pessoas, organizações e fundações estão mobilizadas para dar uma solução imediata, mas falta muita gente entrar com o que pode contribuir. Uma forma de ajudar é buscando essas instituições que já vinham fazendo projetos sociais antes e já vinham trabalhando em cima dessa desigualdade social. Há diferentes organizações atuando nas favelas que vivem demandando recursos que não conseguimos no dia a dia, e que talvez as pessoas, olhando o tamanho do problema, possam gerar um retorno mais perene. É ter um olhar para investigar onde as pessoas estão mais precisando e buscar pessoas confiáveis que trabalham nessa agenda de urgência.
P. Além do papel dessas organizações, existe o papel do próprio Estado de realizar ações mais abrangentes. O coronavírus se espalha muito rapidamente e o Brasil não tem a estrutura da Itália, onde a situação já é grave. Se o Estado não atua, acredita que os mais pobres serão mais uma vez deixados para morrer?
R. A coisa mais séria é justamente quando o Estado vai realmente entrar na dinâmica de urgência dessa crise. O que tenho percebido são respostas muito imediatas. Mas realmente falta um processo mais estruturante e de aprendizado em torno disso. Um exemplo são as Unidades Básicas de Saúde e as Clínicas da Família. Muitas delas estão em situações muito irregulares, seja do ponto de vista de pessoal ou de estrutura material. Essas estruturas poderiam ser referências importantes para dar suporte e confiança para a população, uma porta de entrada do sistema de saúde para tirar dúvida, prestar esclarecimentos e continuar o atendimento de pessoas mais vulneráveis. E, no entanto, já vinham sendo sucateadas. Os agentes comunitários iam de porta a porta, mas isso vem sendo desmontado. E os profissionais de saúde vêm sofrendo muito com esse desmonte.
Por outro lado, se não houver uma medida urgente de suporte às demandas básicas, e em larga escala isso só pode vir do Estado, a contaminação nessas áreas, com certeza, vai acontecer rapidamente. Vai ser uma coisa massiva, e as unidades de saúde não estão funcionando como deveriam. O que temos que trabalhar neste momento é a prevenção, que é o lugar dessas unidades. Não podemos deixar acontecer. Na Itália não houve clareza sobre como lidar com a pandemia desde o início. Aqui temos de olhar para essa desigualdade que temos e parar de negligenciá-la. Não é hora de dizer que “a favela já está ferrada mesmo, então vamos deixar para lá”. Não, é hora de olhar para essa população, que historicamente é a que mais sofre, é a que sempre é sacrificada.