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Venezuela: o que o Brasil tem a ganhar ou perder ao retomar relações com país de Maduro?
O presidente também me instruiu que restabeleçamos as relações com a Venezuela, o que faremos a partir do dia 1º. O anúncio foi feito pelo agora ministro das Relações Exteriores, Mauro Vieira, duas semanas antes da posse de Luiz Inácio Lula da Silva (PT)
"O presidente também me instruiu que restabeleçamos as relações com a Venezuela, o que faremos a partir do dia 1º". O anúncio foi feito pelo agora ministro das Relações Exteriores, Mauro Vieira, duas semanas antes da posse de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) como presidente.
A declaração foi o prenúncio de um novo momento nas relações entre os dois países, afastados diplomaticamente há quase cinco anos.
Ao mesmo tempo, colocou sob os holofotes um dos pontos mais criticados da política externa petista: a proximidade com o regime bolivariano da Venezuela.
Mas no momento em que o país se volta para a Venezuela após anos de distanciamento, as dúvidas que surgem são: o que o Brasil tem a ganhar com essa reaproximação? E o que tem a perder?
Especialistas ouvidos pela BBC News Brasil afirmam que a retomada das relações com a Venezuela podem trazer ganhos econômicos, diplomáticos e ajudar a resolver problemas como a crise migratória que tem feito com que milhares de venezuelanos atravessem a fronteira em direção ao Brasil.
Por outro lado, eles afirmam que essa reaproximação pode trazer riscos por conta da instabilidade política e econômica venezuelana e pelo gerado pela associação do governo Lula a um governo acusado de violar direitos humanos pela comunidade internacional.
Aproximação, pico e 'venezuelização'
A história de proximidade entre o Brasil e a Venezuela nos governos do PT começou com a posse de Lula em seu primeiro mandato, em 2003. Na época, o país vizinho era governado por Hugo Chávez.
Os dois viraram interlocutores frequentes e o Brasil passou a intensificar sua presença comercial no exterior.
Em quase duas décadas, o saldo da balança comercial entre os dois países tem sido marcadamente mais favorável ao Brasil.
Dados do governo federal mostram, por exemplo, que entre 2003 e 2022, o Brasil exportou US$ 52,9 bilhões em produtos e serviços e importou US$ 10,5 bilhões, o que dá um saldo positivo de US$ 42,4 bilhões.
O período em que esse fluxo comercial foi mais intenso ocorreu durante os anos em que o país foi governado pelo PT, entre 2003 e 2016.
As exportações brasileiras para a Venezuela saíram de US$ 603 milhões em 2003 para um pico de US$ 5,1 bilhões em 2008, ainda durante o governo Lula. Nos anos seguintes, o volume de exportações brasileiras para a Venezuela se manteve acima dos US$ 3,5 bilhões até 2014.
Naquele ano, o Brasil havia exportado US$ 4,5 bilhões. A partir de então, o volume de produtos e serviços brasileiros vendidos para o país vizinho despencou. Em 2019, foi de US$ 420 milhões e, em 2022, chegou a pouco mais de US$ 1,2 bilhão.
A intensificação dos laços entre os dois países durante os governos petistas virou alvo da oposição e de políticos como o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL).
Durante as eleições presidenciais de 2022, um dos argumentos mais frequentes contra Lula era o de que a vitória do petista faria com que o Brasil "virasse uma Venezuela", em uma referência às crises política e econômicas vividas pelo país vizinho.
Outra parte da crítica a essa proximidade era de que o apoio do Brasil ao governo venezuelano ocorria apesar das constantes acusações de que o regime bolivariano vinha sendo responsável por graves violações de direitos humanos e desrespeito às normas democráticas.
Um outro ponto frequentemente citado por opositores de Lula são as acusações de que empreiteiras brasileiras aproveitaram seus contatos com políticos do país e da Venezuela para firmarem contratos por meio do pagamento de propina.
Investigações como a Operação Lava Jato mostraram a ligação entre executivos de grandes empreiteiras do país com agentes políticos, tanto do chavismo, que governava o país, quanto da oposição, que governavam municípios como o de Chacao, um dos que compõem a região metropolitana de Caracas.
Delatores da Odebrecht disseram às autoridades americanas que pagaram US$ 98 milhões em propinas a agentes venezuelanos para obter contratos no país.
Afastamento
Em 2016, com o impeachment da então presidente Dilma Rousseff (PT), as relações com a Venezuela sofreram o primeiro arranhão. Maduro chamou o afastamento de Dilma de golpe.
Ao mesmo tempo, a situação política e econômica na Venezuela também se agravou mais, com elevadas taxas de inflação, aumento da pobreza e a realização de protestos e reações violentas por parte das forças de segurança bolivarianas.
O estudo Encovi sobre condições de vida dos venezuelanos realizado em 2021 pela Universidade Católica Andrés Bello apontou que 24,8% dos venezuelanos estão em situação de extrema pobreza e que 60% da população vive com insegurança alimentar de moderada a grave.
A vitória de Jair Bolsonaro na disputa pela Presidência, em 2018, marcou o afastamento sistemático entre os dois países.
No dia 23 de janeiro de 2019, poucos dias depois de tomar posse, Bolsonaro reconheceu o líder da oposição a Maduro, Juan Guaidó, como presidente da Venezuela, acompanhando um movimento organizado por países do chamado Grupo de Lima, que defendia a mudança do governo venezuelano.
Em agosto de 2019, Bolsonaro assinou uma portaria impedindo a entrada de altos funcionários do regime venezuelano, o que, na prática, proibiu o presidente Nicolás Maduro de ingressar no Brasil. A portaria só foi revogada no final de 2022.
Em 2020, o governo brasileiro retirou diplomatas da Venezuela e fechou a embaixada que mantinha em Caracas.
Enquanto isso, milhares de venezuelanos continuaram a entrar no Brasil pela fronteira seca entre os dois países, principalmente pelo Estado de Roraima.
Nos últimos meses, porém, a posição de países como França e Estados Unidos em relação à Venezuela tem mudado, especialmente após a crise de energia gerada pela guerra entre Ucrânia e Rússia.
Em novembro, por exemplo, os Estados Unidos aliviaram sanções aplicadas à Venezuela permitindo que petroleiras americanas voltem a atuar no país.
No processo de reaproximação citado pelo chanceler Mauro Vieira, as primeiras etapas serão enviar um encarregado de negócios a Caracas, reativar as instalações diplomáticas e, futuramente, indicar um novo embaixador ou embaixadora para o país. Ainda não há previsão sobre um encontro entre Lula e Nicolás Maduro.
O que o Brasil tem a ganhar?
Para a doutora em Relações Internacionais e professora da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), Carol Pedroso, apesar do contexto complexo, o Brasil tem muito a ganhar com a reaproximação com a Venezuela.
Segundo ela, as vantagens são: reabrir canais para resolver eventuais novas crises, reduzir o impacto da crise migratória e aproveitar oportunidades econômicas.
"Se surgirem novos problemas na Venezuela, nós já teremos canais abertos para ajudar a resolver e evitar que a crise chegue no ponto no qual ela já chegou", afirmou a professora.
Em relação à crise migratória, a professora diz que reatar os laços com a Venezuela pode fazer com o Brasil se junte ao grupo de países que já está atuando para repatriar venezuelanos que emigraram para o Brasil.
Ela pontua que, no plano econômico, também há vantagens.
"Apesar de a Venezuela ter seus problemas, ela ainda é um país economicamente complementar ao Brasil. Isso significa que eles não produzem muitas das coisas que nós produzimos e isso representa uma oportunidade para nós", afirma.
O professor de Relações Internacionais da Fundação Getúlio Vargas (FGV) Oliver Stuenkel pontua que, do ponto de vista econômico, as oportunidades são menores agora do que foram no passado.
"A economia da Venezuela é menor do que era antes. Ainda está longe da realidade do início dos anos 2000", explica.
Mesmo assim, o professor afirma que o movimento ensaiado pelo novo governo Lula é uma aposta no futuro.
"Aos olhos do governo, essa é uma aposta no futuro. É um movimento que aposta em uma recuperação da economia venezuelana no futuro maior do que a vemos hoje", afirmou o professor.
Estimativas da Comissão Econômica para América Latina e Caribe (Cepal), vinculada à Organização das Nações Unidas (ONU), apontam que a economia da Venezuela deverá ter crescido 12% em 2022.
Se a previsão se confirmar, será o primeiro crescimento do produto interno bruto do país desde o período entre 2013 e 2014.
O professor da Universidade de Brasília (Unb) Thiago Gehre Galvão estuda as relações entre o Brasil e a Venezuela há pelo menos 10 anos.
Segundo ele, além dos aspectos econômicos e humanitários, a retomada dos diálogo com Caracas é uma oportunidade para o Brasil se reposicionar como líder regional na América do Sul e na América Latina.
"A grande vantagem para o Brasil neste momento é que ele retome, novamente, uma posição de cuidado e liderança na região. Isso pode acontecer fortalecendo os fóruns que já existem ou mesmo retomando alguns que ficaram para trás como a Unasul (União de Nações Sul-Americanas)", disse.
Galvão avalia que o Brasil tende a se beneficiar comercialmente dessa aproximação com a Venezuela.
"A Venezuela é um grande mercado com uma renda oriunda do petróleo. Ou seja: há dinheiro e a indústria venezuelana é muito incipiente. Isso significa que há demanda por uma série de produtos que o Brasil pode vender", explica.
Desgaste interno, calote e instabilidade externa: o que o Brasil pode perder?
Apesar de verem as vantagens dessa retomada nas relações diplomáticas entre Brasil e Venezuela, os especialistas ouvidos pela BBC News Brasil avaliam que há três grandes riscos nessa nova aproximação entre os dois países: desgaste político interno, novos calotes e instabilidade política venezuelana.
"Acabamos de sair de uma eleição muito polarizada em que o suposto risco de 'venezuelização' foi muito citado. O Brasil ainda está muito polarizado e parte da população brasileira pode ter resistência a essa aproximação", disse Carol Pedroso, da Unifesp.
"Existe algum risco interno. A oposição (ao governo Lula) certamente vai criticar qualquer tipo de aproximação e alegar que se trata de um alinhamento ideológico ao regime de Maduro", disse Oliver Stuenkel.
O professor da FGV destaca outro ponto arriscado dessa reaproximação: a possibilidade de empresas brasileiras serem alvo de calote na Venezuela.
"A Venezuela ainda é um lugar arriscado para se operar. Há um risco de calote para as empresas que queiram fazer negócios lá. Pode ser que empresas com conexões políticas possam minimizar essa possibilidade, mas ela existe", afirmou Stuenkel.
Calotes da Venezuela também foram um dos pontos levantados pela oposição a Lula para criticar a proximidade com o país.
Isso aconteceu porque, pelo menos desde 2020, o Brasil tenta receber parte de um empréstimo feito pelo Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) para a realização de obras de infraestrutura no país. Segundo a colunista Malu Gaspar, do jornal O Globo, o valor da dívida atualizado chega a R$ 6 bilhões.
O professor Thiago Gehre Galvão, da UnB, pontua ainda que essa reaproximação pode colocar em foco o compromisso do novo governo Lula em relação à defesa da democracia.
"Se você começar a aprofundar essa relação economicamente, sempre vai pairar uma espécie de névoa sobre um governo com problemas claros em relação à sua própria democracia. E isso vai acontecer em um contexto em que o novo governo se elegeu num contexto em que a própria democracia brasileira estava fragilizada", pontua Galvão.
"A questão é entender o quanto o Brasil vai flexibilizar sua posição em relação à democracia para se aproximar da Venezuela", avalia o professor.