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Monte Castelo, 80 anos: 'O diabo é testemunha de que não foi um passeio'

Queria gozar uns momentos de paz e sossego, admitiu na crônica O Castelo é Nosso, publicada no livro O Inverno da Guerra (Objetiva, 2005)

PEDRO RIBEIRO/DA EDITORIA/COM BBC 20/02/2025
Monte Castelo, 80 anos: 'O diabo é testemunha de que não foi um passeio'
A tomada de Monte Castelo durou quase três meses e causou mais de 400 baixas, entre mortos e feridos | CEPHiMEx

Há mais de 15 dias sem tomar banho, cortar o cabelo ou fazer a barba, o jornalista e escritor Joel Silveira, na época com 26 anos, só pensava em viajar para Roma.

Queria gozar uns momentos de paz e sossego, admitiu na crônica O Castelo é Nosso, publicada no livro O Inverno da Guerra (Objetiva, 2005).

Foi desaconselhado pelo major Souza Júnior: "Acho que você deve adiar a viagem", sugeriu o oficial ao repórter do Diários Associados. "Nas próximas horas, a coisa aqui vai esquentar". E esquentou mesmo. Era terça-feira, 20 de fevereiro de 1945.

O dia seguinte começou cedo: 5h. Joel Silveira e os demais correspondentes tomaram um café apressado, encheram os bolsos de chocolate e saltaram em seus jipes – Rubem Braga, do Diário Carioca, e Francis Hallawell, da BBC, estavam em Nápoles, à espera do desembarque de mais um pelotão da Força Expedicionária Brasileira (FEB).

Naquele 21 de fevereiro de 1945, Silveira assistiu à tomada de Monte Castelo, o "pesadelo maior da FEB", de um lugar privilegiado: o Posto Avançado do general Cordeiro de Farias.

Silveira chegou ao posto de observação da FEB por volta das 8h. A operação tinha começado cerca de duas ou três horas antes. Munido de uma luneta, acompanhou a ofensiva do 1º Regimento de Infantaria, o Sampaio. Um batalhão, comandado pelo major Olívio Gondim de Uzeda, seguiu pela esquerda. Outro, conduzido pelo major Sizeno Sarmento, avançou pelo centro. E um terceiro, coordenado pelo tenente-coronel Emílio Rodrigues Franklin, atacou pela direita. O objetivo da operação era um só: tirar o Castelo das mãos dos alemães até o fim da tarde.

A uns 500 quilômetros dali, Braga e Hallawell foram receber os homens do 4º Escalão da FEB. Quando soube que as tropas americanas tinham tomado o Monte Belvedere, Braga cochichou para Hallawell: "Sou capaz de apostar como aqueles diabos brasileiros estão atacando outra vez o Monte Castelo. E, dessa vez, vai ver que eles tomam. E nós aqui em Nápoles", lamentou em O Castelo Caiu, do livro Crônicas da Guerra na Itália (Record, 2014).

Se Silveira só se referia ao Castelo como "pesadelo", Braga relata que o monte era conhecido como "amaldiçoado".

Belvedere e Castelo eram dois dos montes que, entre outros, como Gorgolesco, La Torraccia e Ronchidos, formavam uma cordilheira em poder dos alemães. Para chegar à cidade de Bolonha, os aliados tinham que cruzar a Rodovia 64. Não adiantava conquistar esse ou aquele morro. Toda a cordilheira tinha que ser ocupada.

"Se a FEB não tivesse vencido, os aliados teriam dificuldade para romper a resistência alemã", afirma o historiador Carlos Daróz, doutor em História Social pela Universidade Federal Fluminense (UFF) e coautor do livro A História do Brasil nas Duas Guerras Mundiais (Unesp, 2019). "A conquista de Monte Castelo consolidou a FEB como uma força combatente respeitada e marcou sua contribuição decisiva para a vitória dos aliados na Itália".

BBC Brasil_O general Mascarenhas de Moraes observa o Monte Castelo

Crédito,CEPHiMEx

Legenda da foto,O general Mascarenhas de Moraes observa o Monte Castelo

Direto do front

Em garranchos indecifráveis, Silveira anotou os principais acontecimentos do dia: "Sem dúvida alguma, o instante mais sensacional aconteceu às 16h20 quando a Artilharia Divisionária concentrou seu poder de fogo sobre Castelo", registrou. "No céu de inverno, a noite já se prenunciava, de forma que se notavam nitidamente as chamas que surgiam a cada explosão dos obuses. Chamas altas que o binóculo me mostra tão próximas".

Em outro trecho, acrescentou: "Às 17h45 o general Cordeiro de Farias afasta-se da luneta, volta-se para mim e diz: 'Castelo está praticamente conquistado'".

O tão esperado grito de vitória veio às 17h50: "Estou no cume de Monte Castelo!", avisou, pelo rádio, o major Franklin. Ao lado de Silveira, o general Cordeiro sussurrou, quase incrédulo: "O Castelo é nosso".

"Não sei que preço pagamos, em mortos e feridos, por essa vitória", escreveu Braga. "Mas gostaria de estar na frente na hora em que correu de telefone em telefone, de boca em boca, a notícia preciosa: 'O Castelo é Nosso!'".

"Os correspondentes estavam sujeitos aos mesmos infortúnios que os soldados. Podiam ser alvejados por franco-atiradores ou cair em armadilhas com explosivos", descreve o jornalista e historiador Helton Costa, autor de Crônicas de Sangue: Jornalistas Brasileiros na Segunda Guerra Mundial (Motres, 2019).

"Joel Silveira sofreu um acidente quando o jipe em que estava saiu da pista, a caminho de Roma, em uma noite muito escura. Não se machucou, mas ficou assustadíssimo. Já Raul Brandão, do Correio da Manhã, quebrou a bacia em um capotamento. Usou bengala pelo resto da vida e desenvolveu estresse pós-traumático".

"De vez em quando, alguém ainda me pergunta: 'A vida de vocês, jornalistas, lá na guerra da Itália, foi uma sopa, não foi?'", escreveu Joel Silveira. "Até anos atrás, a pergunta me irritava profundamente. Mas agora pouco ligo. Limito-me a pensar: 'O diabo é testemunha de que não foi um passeio'.

"Medo, frio e aquele constante odor de sangue velho e óleo diesel, que é o cheiro da guerra. E mais o tédio dos longos dias e noites em locais inviáveis, sitiados pela neve. Onde a sopa? Repito: o diabo, que também estava lá, é testemunha de que não foi um passeio".

Oficial brasileiro passa em revista um batalhão da FEB, ao fundo o Monte Castelo

Crédito,CEPHiMEx

Legenda da foto,Oficial brasileiro passa em revista um batalhão da FEB, ao fundo o Monte Castelo_

Descida aos infernos

A tomada de Monte Castelo não se resumiu a um único dia: 21 de fevereiro de 1945. Começou no dia 24 de novembro de 1944 e se estendeu até 21 de fevereiro de 1945. Foram, ao todo, quatro ofensivas, todas malsucedidas: a primeira aconteceu no dia 24 de novembro de 1944 e a segunda, já no dia seguinte, 25. O terceiro ataque ocorreu no dia 29 de novembro e o quarto, no dia 12 de dezembro.

Com exceção do quinto e último, Rubem Braga cobriu todos os anteriores. "O que mais impressionou os nossos homens foi a fúria do ataque do alemão, o desprezo do inimigo pela vida: os nazistas avançavam sob rajadas de metralhadoras, e continuavam a avançar sem dar importância aos que tombavam atingidos", escreveu numa crônica.

Das quatro tentativas, a mais violenta foi a do dia 12 de dezembro de 1944. "Sob intenso fogo da artilharia alemã e sem apoio técnico adequado, a FEB enfrentou grandes dificuldades e foi obrigada a recuar", analisa Carlos Daróz. "Esse revés gerou questionamentos sobre a capacidade da tropa brasileira e evidenciou a necessidade de um planejamento mais coordenado".

Quando uma ofensiva fracassava, as tropas tinham que recuar, socorrer os feridos, contabilizar as baixas, recompor as unidades e planejar uma nova investida.

Pracinhas da FEB com o Monte Castelo ao fundo

Crédito,CEPHiMEx

Legenda da foto,Pracinhas da FEB com o Monte Castelo ao fundo

Território hostil

Outro adversário impiedoso era o frio intenso. Os pracinhas tiveram que enfrentar um dos invernos mais rigorosos dos últimos 50 anos, com direito a forte chuva e denso nevoeiro.

"Por diversas vezes, a temperatura chegou a 20 graus negativos", afirma o historiador Dennison de Oliveira, doutor em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e professor de História da Universidade Federal do Paraná (UFPR).

Os pracinhas combatiam o frio como podiam. Uns colocavam palha e jornal dentro das galochas para manter os pés aquecidos. Outros dormiam com o cantil entre as pernas para impedir o congelamento da água.

O exército de Hitler tinha outro aliado: a geografia montanhosa. Para conquistar o Monte Castelo, os brasileiros tiveram que subir a montanha. Do alto dela, os alemães, entrincheirados, tinham liberdade tanto para observar o inimigo quanto para abrir fogo contra ele.

"A região tinha um aspecto desolador porque os nazistas derrubaram a vegetação para monitorar o invasor", explica o pesquisador Israel Blajberg, diretor da Casa da FEB. "Os aliados chegaram a usar máquinas de fumaça para camuflar o avanço das tropas. Mas o resultado foi limitado".

Na opinião do historiador Cesar Campiani Maximiano, doutor em História Social pela Universidade de São Paulo (USP) e autor do livro Barbudos, Sujos e Fatigados: Soldados Brasileiros na Segunda Guerra Mundial (Grua Livros, 2010), um dos maiores adversários da FEB foi a necessidade de adaptação.

"Os estrategistas sabem que um exército nunca se prepara para a guerra do futuro, mas, sim, para a última guerra. Tão logo o contingente brasileiro se adequou aos parâmetros do combate na Itália, conseguiu executar suas missões em pé de igualdade com seus aliados", afirma.

Rubem Braga (primeiro à esquerda, em pé) e Joel SIlveira (sentado) entre os correspondentes de guerra brasileiros na Segunda Guerra Mundial

Crédito,Arquivo Nacional

Legenda da foto,Rubem Braga (primeiro à esquerda, em pé) e Joel SIlveira (sentado) entre os correspondentes de guerra brasileiros na Segunda Guerra Mundial

Entre mortos e feridos

Segundo o Relatório Final de Operações, o 1º Regimento de Infantaria teve, ao todo, 414 "baixas em combate", incluindo mortos (74), feridos (319) e desaparecidos (21).

"Pelas características de uma operação ofensiva, onde o atacante avança em campo aberto, exposto à ação do inimigo, em comparação a uma situação defensiva, onde o defensor está em um abrigo, é possível que o primeiro sofra mais 'baixas' que o segundo", explica o coronel Cláudio Skora Rosty, pesquisador do Centro de Estudos e Pesquisas de História Militar do Exército (CEPHiMEx). "Isso não quer dizer que o atacante não vença o confronto. Pode isolar o defensor e obrigá-lo a se render".

Não se sabe ao certo quantos alemães morreram na tomada de Monte Castelo.

"No ataque a fortificações, as baixas entre quem está na ofensiva são sempre mais altas. A proporção é de de 3 a 4 atacantes para cada defensor", calcula Campiani. "Nas praias da Normandia, também morreram mais soldados aliados do que alemães".

Setenta dias depois da tomada do Monte Castelo, os expedicionários brasileiros puderam, finalmente, comemorar o fim da guerra. No dia 2 de maio de 1945, as tropas alemãs que combatiam na Itália anunciaram sua rendição