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Turismo, tecnologia e 'ciência cidadã' já identificaram pelo menos 400 onças-pintadas no Pantanal

Dados levam em conta números levantados nesta década por projetos de ecoturismo vinculados à pesquisa. Iniciativas ajudam a gerar novos empregos em regiões de tradição pecuária e, por tabela, a conservar o maior felino das Américas

12/08/2019
Turismo, tecnologia e 'ciência cidadã' já identificaram pelo menos 400 onças-pintadas no Pantanal
Mick Jaguar, também apelidado de Cegão ou Pirata, é uma onça-pintada que vive no Parque Estadual Encontro das Águas e, mesmo cego de um olho, é um exímio predador — Foto: Arquivo pessoal/Abigail Martin

A onça-pintada Juru é um macho de cinco anos e 120 quilos que, em 12 de maio, passou boa parte da tarde de domingo relaxada em uma pedra, avistando seres humanos passeando de barco (assista no vídeo acima). Ela vive em Porto Jofre, uma localidade em Poconé (MT) onde, segundo especialistas, está a maior concentração no mundo de onças-pintadas habituadas à presença humana. Só ali, pelo menos 145 onças diferentes já foram avistadas desde 2013, mas um levantamento feito pelo G1 com outros projetos de pesquisa mostra que, no Pantanal, pelo menos 400 exemplares do maior felino das Américas foram identificados nesta década.

O número total, porém, está muito aquém da estimativa populacional das onças pantaneiras. Um artigo publicado em 2018 por um pesquisador mexicano, usando dados de 117 estudos com armadilhas fotográficas entre 2002 e 2014, indica que a população aproximada de onças em Mato Grosso era de pelo menos 762.

Esse tipo de evidência só anima os "amigos da onça" de várias regiões do Pantanal, que atualmente aliam a pesquisa científica ao ecoturismo, onde os visitantes trazem na bagagem máquinas fotográficas em vez de varas de pesca, e levam para casa apenas imagens e memórias.

Se entre elas estiver um avistamento da mítica Panthera onca, as chances de os turistas deixarem gorjetas e planejarem um retorno aumento. Além disso, mesmo para quem mora ali, o encontro com uma onça nunca deixa ninguém impassível. O G1 Natureza percorreu a região e ouviu mais de 40 pessoas de todas as idades e origens, e animou diversos "causos de onça" compartilhados por elas.

Tecnologia e 'ciência cidadã'

O levantamento do G1 foi feito junto a seis iniciativas que atuam no Pantanal conduzindo pesquisas com a fauna e/ou incentivando o ecoturismo de observação:

Os especialistas dizem que as onças costumam se locomover dentro de uma área de cerca de 70 km². Como quase todas as iniciativas são realizadas a distâncias maiores do que essa umas entre as outras, são grandes as chances de que as onças que circulam por um desses perímetros não ocorra em outro.

Em quase todos os casos, a principal metodologia utilizada são as armadilhas fotográficas (ou "camera trap"). Acoplado a árvores, o equipamento é acionado automaticamente pelo movimento, e é capaz de registrar o comportamento de animais em vídeo ou foto, de noite ou de dia, sem que seres humanos espantem o animal. Há cerca de cinco anos, essa tecnologia começou a ser introduzida no Pantanal para auxiliar a coletar dados, e hoje há dezenas delas alimentando com dados os conservacionistas da biodiversidade pantaneira.

Mick Jaguar

Criado em 2013 pela zoóloga americana Abigail Martin, de 28 anos, o Jaguar ID Project (JIP) chegou na semana passada à marca de 145 indivíduos da espécie identificados em Porto Jofre. Ele aproveita a "ciência cidadã" e coleta fotografias e vídeos de onças registrados por visitantes e moradores locais. Quem batiza o novo animal é o próprio turista que o fotografou pela primeira vez.

Foi o caso do Juru, a onça registrada pela reportagem do G1. Muitas onças têm nomes inspirados em línguas indígenas ou curtas e de fácil pronúncia, mas também há exemplos divertidos, como o Mick Jaguar, um macho que, por causa de uma deficiência visual, ainda ganhou os apelidos de Cegão e Pirata.

"Temos mais de 100 câmeras dessas", explicou Mario Haberfeld, fundador do Projeto Onçafari, que desenvolve um safári de observação de onças no Refúgio Caiman, na zona rural de Miranda (MS).

Como as onças são identificadas?

Os especialistas explicam que cada animal tem manchas distintas no rosto, e que é possível também diferenciá-los pelas laterais do corpo. Já passaram pelo Onçafari, desde agosto de 2011, 141 onças-pintadas.

Na região de Cáceres (MT), estudos da Estação Ecológica de Taiamã também usam armadilhas fotógraficas para identificar onças, assim como as iniciativas do Instituto Homem Pantaneiro (IHP) e do Projeto Onças Rio Negro, ambos em localidades de Mato Grosso do Sul.

Segundo Alexandre Bossi, do Onças Rio Negro, 20 onças diferentes já foram avistadas no local, e atualmente 11 são monitoradas por colares.

Onça x gado

Juru, o macho dominante de Porto Jofre, não é monitorado por colares, mas os especialistas que o acompanham no Parque Estadual Encontro das Águas, em Porto Jofre, sabem quem ele tem condições ambientais favoráveis para viver bem além de sua idade atual, até 15 ou 20 anos. Lá, essa e outras onças têm espaço de sobra para caçar capivaras, uma espécie que, segundo o pantaneiro mais velho da região, existia em número muito maior antes de a proibição da caça no Brasil.

Servidor aposentado do Ibama e do Parque Nacional do Pantanal Matogrossense, Oíses Falcão de Arruda, conhecido como Tutu, tinha pouco mais de 20 anos quando, em 1967, o Brasil criminalizou a caça aos animais silvestres.

Com a proteção da lei, a onça voltou a retomar seu espaço original, e a população cresceu. Ambientalistas também viram crescer os conflitos entre o predador máximo do Pantanal e os fazendeiros que se dedicam à pecuária, e viam no animal uma ameaça para o seu gado.

Embora os números não se comparem aos registrados em décadas anteriores, onças continuam a aparecer mortas com tiros, e os obstáculos da fiscalização dificultam que os casos sejam punidos.

Nos últimos anos, porém, uma aliança entre conscientização, tecnologia e alternativas econômicas têm exercido um papel fundamental para impedir que capatais das fazendas abatam as onças que deixam rastros pelas propriedades privadas. ONGs como a Panthera, em Porto Jofre, e o Instituto Homem Pantaneiro (IHP), baseado em Corumbá, desenvolveram projetos para mitigar o conflito entre o pecuarista e o predador que ocupa o topo do ecossistema local.

Entre as medidas estão a instalação de cercas elétricas no entorno dos currais onde ficam os bezerros – o grupo mais visado pelas onças –, além de luzes piscantes e intermitentes do lado de fora dos currais e incluir búfalos junto ao rebanho do gado para afastar o grande felino. O veterinário Diego Viana lidera o Projeto Felinos Pantaneiros, do IHP, e diz que, há cerca de cinco anos, o projeto já conseguiu reduzir em sete vezes o índice de perda do rebanho provocada pelos ataques de onça.

Onça viva vale mais do que morta

Além de proteger seu gado de maneira mais eficiente, os pecuaristas e empresários da região estão cada vez mais mirando o turismo como forma de geração de renda e mais empregos e, por tabela, conservar a onça.

"Muitos desses bichos só existem porque tem o ecoturismo, se não teria acabado tudo", diz Haberfeld, do Onçafari, que foi piloto de automobilismo, com passagens pela Fórmula 1 e Fórmula Indy. Após a sua aposentadoria, ele decidiu se dedicar à conservação de animais após a aposentadoria, e importou para o Pantanal um modelo que já transformou algumas regiões da África.

Enquanto em Miranda o projeto mais difundido de ecoturismo envolve o safári de carro para observar onças, em Porto Jofre o modelo principal é o de avistamentos em barco. Isso acontece porque as onças costumam ocupar o território do Parque Estadual Encontro das Águas, por onde passam o rio São Lourenço, que divide Mato Grosso e Mato Grosso do Sul, e seus afluentes.

Acostumadas às pequenas voadeiras de pescadores navegando pelo rio no entorno da área protegida, as onças foram se comunicando e repassando aos filhotes a noção de que os humanos ao redor são inofensivos.

Ailton Lara, de 39 anos, é um deles. O cuiabano adotou a biodiversidade como ganha-pão há duas décdas. Nesse período, ele foi de motorista de viajantes a proprietário da pousada Jaguar Camp – os nomes e sites de divulgação dos locais costumam ser em inglês pela alta frequência de turistas estrangeiros.

Um estudo feito pelo biólogo Fernando Tortato, da ONG Panthera, com dados de 2015, mostra que a pousada de Lara e outros seis estabelecimentos hoteleiros da região tiveram renda de quase 7 milhões de dólares naquele ano (cerca de R$ 28 milhões, na conversão atual, sem considerar a inflação). Rafael Hoogesteijn, que também trabalha para a Panthera, ressalta que, ao contrário da pecuária, o turismo tem espaço para empregar a mulher e os filhos dos peões, o que pode fazer multiplicar a renda das famílias locais.

Lotação na alta temporada

Na Jaguar Ecological Reserve, quem quiser reservar um quarto entre os meses de junho e início de novembro, quando ocorre o período de seca, vai ter poucas chances neste ano, tamanha é a procura de visitantes de dentro e fora do Brasil.

Eduarda Fernandes de Amaral, de 19 anos, é uma das responsáveis por tocar a empresa durante a baixa temporada, além de organizar e guiar passeios e de tocar uma agência de turismo paralelamente. Nascida em Cuiabá, ela trocou a capital pelos brejos do Pantanal depois que terminou o ensino médio, e não tem planos de fazer faculdade ou deixar a região.

Nos últimos dois anos, ela fez um curso de inglês e outro de observação de pássaros. A jovem é nora de Eduardo Arruda, atual dono da pousada e sobrinho de Tutu. Ela e o namorado João Paulo representam a terceira geração da família Arruda que trocaram a pecuária pelo ecoturismo em Porto Jofre.

Avistamentos o ano todo

Uma das apostas de Ailton Lara, agora, é expandir o turismo na região para o ano todo, em vez de concentrá-lo no período da seca. Essa é a época em que o rio baixa, e é mais propícia para avistar animais, pois há mais praias e espaços para os bichos.

Mas o aumento de onças identificadas é um indício, segundo ele, de que começa a ser cada vez mais fácil avistá-las em pontos de mais fácil acesso nos meses de cheia.

Além do aumento da receita, ele diz que é importante diluir a quantidade de turistas, para evitar o turismo predatório, a aglomeração de barcos e a ceva de onça, que é a prática de oferecer comida ao animal para atraí-lo – a medida é ilegal, porque mexe com a dieta da fauna silvestre, e também perigosa, porque a onça passa a associar o homem à ideia de comida.