Brasil

A história do primeiro brasileiro eleito para governar o país, há 190 anos

Em 7 de abril de 1835, pela primeira vez, o país elegia alguém como governante

PEDRO RIBEIRO/DA EDITORIA/COM BBC 07/04/2025
A história do primeiro brasileiro eleito para governar o país, há 190 anos
A abdicação de D. Pedro em obra de Aurélio de Figueiredo, feita em 1911 | Domínio Público

Era um Brasil de cerca de 5 milhões de pessoas aquele de 190 anos atrás. Destas, apenas 6 mil tinham direito a voto — a elite era quem elegia deputados e senadores naquele excludente e censitário regime imperial.

Em 7 de abril de 1835, pela primeira vez, o país elegia alguém como governante. Era a primeira vez, aliás, que o poder ficaria nas mãos não de um português, mas de alguém nascido em solo brasileiro. Tratava-se de um sacerdote católico chamado Diogo Antônio Feijó (1784-1843), padre paulista que havia construído uma sólida carreira política.

Mas um governante eleito dentro de um regime monárquico? Pois é. Houve uma espécie de hiato entre os dois imperadores brasileiros, Pedro I e Pedro II. Tudo porque o primeiro abdicou do trono quando o herdeiro ainda era uma criança.

Feijó se tornaria regente do império, assumindo o posto em 12 de outubro de 1835 até sua renúncia, em 19 de setembro de 1837.

Para entender como isso foi possível é preciso primeiro recordar o momento histórico em que aquele Brasil de poucos anos após a independência de Portugal vivia.

Regente Feijó, em pintura feita por Oscar Pereira da Silva em 1925.

Crédito,Domínio público

Legenda da foto,Regente Feijó, em pintura feita por Oscar Pereira da Silva em 1925

Abdicação e regência

Em 1831, Pedro I (1798-1834), o primeiro imperador do Brasil, deixou para trás o Brasil para lutar pela coroa portuguesa. Ficou seu filho homônimo como herdeiro. Mas Pedro II (1825-1891) era uma criança de apenas cinco anos.

A renúncia abrupta do imperador fez com que a jovem nação brasileira experimentasse um período político turbulento. Como previa a Constituição de 1824, formou-se um governo provisório com três senadores: a chamada Regência Trina. Alguns meses depois, a Assembleia Geral Legislativa elegeu três outros nomes que formariam a Regência Trina Permanente.

"Foi no susto", comenta à BBC News Brasil Paulo Rezzutti, biógrafo de diversas personalidades do período imperial e autor de, entre outros livro, 'D. Pedro II: A História Não Contada', cuja reedição revista e atualizada chegou às livrarias no mês passado. "A ideia de três governantes era para tentar equilibrar as forças políticas para conseguir um certo equilíbrio entre os grupos diferentes da sociedade.

"O contexto era de incerteza, de riscos e de indefinição. A abdicação do Imperador Pedro I abriu a temporada de caça ao poder, aos recursos econômicos e financeiros nas províncias dos Império", diz à BBC News Brasil o historiador Paulo Henrique Martinez, professor na Universidade Estadual Paulista (Unesp).

"A forma assumida pela regência foi resultado da reacomodação política e da concentração de poder decisório e de autoridade forte diante de uma realidade social em decomposição e que enfrentava rápidas transformações na dinâmica econômica, cultural e das relações internacionais", analisa o professor.

"Era tripla para evitar uma usurpação do poder político. Os três regentes se controlavam mutuamente", explica à BBC News Brasil o cientista político Paulo Niccoli Ramirez, professor na Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo.

D. Pedro 2º aos 12 anos de idade.

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Legenda da foto,O imperador Pedro 2º aos 12 anos de idade vestindo o uniforme imperial de gala, em pintura de Félix Émile Taunay, feita em 1838

A ideia era que o triunvirato permanecesse no poder até que Pedro II se tornasse maior de idade. Mas o que se viu foi uma grave instabilidade que colocava em risco até mesmo a unidade territorial do país. De um lado, os cofres públicos enfrentavam escassez. De outro, revoltas pipocavam de norte a sul, geralmente insufladas por oligarquias regionais que queriam autonomia.

"A questão central é que a abdicação, a eleição e o governo da regência permanente eram resultados de conflitos sociais e políticos que vinham desde a Independência e antagonizavam diferentes grupos de poder, especialmente os setores mais poderosos, associados ao tráfico de escravizados, ao açúcar e ao café, que haviam apoiado o governo de Pedro I, e os setores que, desde 1808, tinham aproveitado as condições abertas com a presença da corte portuguesa, com a abertura comercial e a inserção internacional da produção brasileira para incrementar seus negócios que estavam vinculados, em grande parte, ao mercado interno", contextualiza à BBC News Brasil a a historiadora Cecilia Helena de Salles Oliveira, professora na Universidade de São Paulo (USP) e autora do livro Ideias em Confronto − Embates pelo Poder na Independência do Brasil.

"As iniciativas governamentais mais expressivas do momento […] indicavam a elevação da temperatura política e social dos conflitos e da disputa pelo controle e a condução do Estado e das instâncias de governo nacional, provincial e local", comenta Martinez.

Nesse contexto o padre Diogo Feijó foi apresentado como um nome de pulso firme que poderia ajudar a controlar os ânimos. A regência o nomeou Ministro da Justiça. Sua passagem pela pasta foi marcada por rigor e eficiência. Mas sua tendência liberal e, em alguns momentos, flertando com o abolicionismo, fez com que ele não tivesse apoio dos aristocratas que eram a maior parte dos deputados.

Em julho de 1832, logo após completar um ano no cargo, Feijó apresentou carta de renúncia. Era mais um ingrediente para tumultuar o ambiente político.

Participação popular muito restrita

O pesquisador Rezzutti conta que o processo eleitoral era realizado em dois níveis. Os eleitores paroquiais escolhiam os eleitores provinciais. E estes podiam votar para postos de relevância nacional — como deputados e senadores. E foi este o modelo seguido para a eleição do regente. "Para ser eleitor paroquial era preciso ter certos rendimentos. Para ser provincial, era preciso rendimentos ainda maiores", comenta.

Apesar de ter sido, portanto, uma participação popular bastante elitista e limitada, é preciso ressaltar que foi um primeiro momento de uma certa "democracia" no Brasil que havia se tornado país independente 13 anos antes.

"Houve uma eleição e isso foi um grande diferencial. Ainda que tenha sido muito restrita, foi de certa forma participativa. Foi o primeiro momento de participação eleitoral que não fosse para escolher somente os deputados", afirma à BBC News Brasil o historiador Victor Missiato, pesquisador no Instituto Mackenzie.

"Feijó era a encarnação do simbolismo histórico da monarquia portuguesa e da colonização iniciada no século XVI, a cruz e a coroa, a religião e a monarquia", sintetiza Martinez. "A legitimidade e a autoridade de ambas as instituições estavam ancoradas na fé e na crença da infalibilidade de seus dirigentes supremos, a vontade divina e a ação de seu representante: o monarca."

"A eleição de Feijó partiu de um corpo eleitoral integrado por representantes das províncias, constituído com a finalidade de designar o futuro Regente. Era expressão das províncias mais afinadas com o projeto político de 1822 e autonomia do Brasil", completa o historiador.

O nome de Feijó fazia sentido para aquele contexto político. "Os grupos que obrigaram Pedro I a abdicar estavam ligados a esses novos segmentos emergentes que queriam não só poder político, mas leis e apoio institucional para ampliar seus negócios dentro e fora do país. Feijó estava ligado a eles. Eram conhecidos como 'liberais moderados'", conta a historiadora Oliveira. "O problema é que essa sigla reunia gente de vários matizes e várias condições, entre eles cafeicultores e produtores de açúcar, assim como produtores de gêneros de abastecimento e gado, com ampla rede de contatos no interior do país."

Ela lembra que, quando Ministro da Justiça, Feijó havia buscado atuar para "refrear conflitos armados, revoltas militares e manifestações populares que defendiam pautas como a descentralização do poder, a ampliação do poder dos governos locais, a ampliação do direito de cidadania, entre outras".

D. Pedro 2º aos 4 anos

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Legenda da foto,Pedro 2º aos 4 anos, em obra de Arnaud Pallière feita em 1830

A eleição foi em 7 de abril de 1835, mas a posse mesmo só ocorreria em 12 de outubro.

"As datas nos remetem ao ciclo da formação do próprio Império: o 7 de abril, era o marco do novo começo, a abdicação de Pedro I; o 12 de outubro, a sua reafirmação, foi a data de aclamação do príncipe regente dom Pedro e, logo, Imperador do Brasil, em 1822. Significava: rei morto, rei posto. A continuidade da tradição política e a perpetuação da ordem social", analisa Martinez.

Oliveira pontua ainda que essa demora entre eleição e posse indicavam que Feijó "estava indeciso", pois "conhecia os enormes obstáculos que seu governo enfrentaria".

Seu curto governo foi marcado por uma intensa tentativa de garantir a unidade nacional. "Feijó havia se destacado como parlamentar e ministro da Justiça, mas sua regência foi bastante contestada e ele enfrentou oposições de antigos apoiadores", diz a historiadora.

"Foram os últimos suspiros do reformismo de inspiração ilustrada, nascido no século XVIII, […] a tentativa de afirmação de um governo forte e seguro na condução das ações do Estado", diz Martinez. "Não por acaso, Feijó foi celebrado durante a ditadura do Estado Novo, no centenário de sua morte. A mensagem: depois de mim, o caos, o fim das reformas e a perpetuação da instabilidade política e da insegurança econômica."

Rezzutti diz que Feijó "era muito autoritário" e tentou "colocar ordem na casa". "Com isso, criou muitos inimigos. Mas buscou fortalecer o poder central em um cenário de várias revoltas nas províncias", pontua.

"Ele tentou sedimentar um Estado mais uno e coeso. O Estado que Pedro II recebeu quando assumiu o trono foi fruto dessa tentativa de unificação do Brasil em torno de um poder centralizado", analisa o biógrafo.

"Seu governo foi marcado como uma tentativa de conter as rebeliões separatistas que eram contestatórias em relação à centralização do poder político", afirma Ramirez.

Pedro II

Enquanto isso tudo acontecia, o menino Pedro II era uma figura simbólica e meramente decorativa, "sem poder decisório algum", como enfatiza o historiador Martinez. "Era apenas um símbolo ostentado pelos monarquistas, uma espécie de fundo de reserva político da dinastia, da centralização política e do próprio regime monárquico", prossegue.

"Um elo entre o passado e o futuro, da perpetuação do escravismo, da concentração da terra e do mandonismo senhorial como pilares do Estado nacional e fundamentos da Nação. A promessa da origem e do vínculo com a civilização europeia nos trópicos."

"Nessa época ele era uma peça de enfeite", resume o biógrafo Rezzutti. "Era um símbolo nacional e vinha sendo tratado como tal, mas sem nenhuma função executiva nem mesmo consultiva."

Mas, evidentemente, ele recebia uma educação própria para em algum momento assumir o império. "Ele estava no gabinete de instrução e vinha sendo preparado para se tornar o futuro imperador", diz Missiato.

Regente Feijó

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Legenda da foto,Feijó, em retrato feito por Sébastien Auguste Sisson em 1850

De 'enjeitado' a primeiro governante eleito

Feijó teve uma infância difícil. Foi o que se costumava chamar de "enjeitado", ou seja, filho provavelmente tido em situação fora do casamento que acabou abandonado criança na casa de um padre. Este o batizou e o criou como padrinho.

Acabou recebendo sólida formação e sendo ordenado ele também sacerdote. Foi professor de gramática e escreveu ele próprio um compêndio de gramática latina. Quando tinha 29 anos vivia em São Carlos, onde começava a ser bem-sucedido. Segundo registros do recenseamento da época, chegou a ter no município paulista uma propriedade rural com 13 escravizados que produziam açúcar, cachaça, milho, feijão e arroz.

De lá, mudou-se para Itu onde, autorizado pelo bispo, dava aulas particulares de filosofia. Foi ali que ele começou a se imiscuir no meio político, passando a integrar a chamada junta eleitoral da cidade — que congregava os poucos e abastados eleitores.

Seu primeiro cargo eletivo foi como deputado enviado às cortes gerais e extraordinárias de Lisboa, naquele Brasil ainda parte do Reino de Portugal.

Após a Independência, foi deputado por São Paulo em duas legislaturas. Mais tarde seria também senador.

Seus últimos anos de vida foram marcados por problemas de saúde. Ele teve um acidente vascular cerebral e acabou hemiplégico, chegando a usar com frequência uma cadeira de rodas.

Quando ele tinha 59 anos e enfrentava uma crise nervosa, decidiu sair para caminhar, caiu e bateu a cabeça em uma pedra. No hospital, acabou morrendo de parada cardiorrespiratória em 10 de novembro de 1843.