Cotidiano
Escravizados, feridos e abandonados: O Horror silenciado de uma obra em MT
Um verdadeiro campo de exploração humana foi desmascarado no coração do Mato Grosso.

Mais de 500 operários recrutados no Norte e Nordeste foram submetidos a condições desumanas por uma das maiores construtoras do estado; escândalo revela esquema de aliciamento, jornadas de 22 horas, comida estragada e incêndio provocado em protesto
Um verdadeiro campo de exploração humana foi desmascarado no coração do Mato Grosso. Ao menos 563 trabalhadores foram resgatados em situação análoga à escravidão em uma obra da TAO Construtora, em Porto Alegre do Norte, extremo nordeste do estado. O caso, revelado por uma força-tarefa do Ministério do Trabalho e do Ministério Público do Trabalho, expõe um esquema criminoso de aliciamento, servidão por dívida, jornadas exaustivas e total desprezo pela dignidade humana.
Recrutados sob promessas falsas no Norte e Nordeste do país, os trabalhadores foram levados para o canteiro de obras de uma usina de etanol e alojados em condições degradantes: quartos superlotados, sem ventilação, sem água potável e comida contaminada por larvas.
O caos chegou ao limite quando um incêndio destruiu os alojamentos. A suspeita é de que o fogo tenha sido iniciado pelos próprios operários em ato de revolta diante do abandono e da omissão da empresa.
A operação de resgate revelou ainda a existência de um esquema de controle paralelo de jornada, conhecido como 'ponto 2', no qual trabalhadores cumpriam turnos de até 22 horas diárias sem registro formal e recebiam pagamentos 'por fora', configurando grave violação às leis trabalhistas e sonegação fiscal.
A alimentação era precária, com relatos de refeições estragadas e presença de insetos. Os trabalhadores eram obrigados a tomar banho com canecas, em meio à falta de água potável, e muitos dormiam no chão, sob mesas, ou em colchões em estado deplorável.
Após o incêndio, diversos trabalhadores foram realocados para casas improvisadas, hotéis e até um ginásio de esportes, mas continuaram em situação de abandono. Alguns perderam todos os seus pertences, e a TAO Construtora ainda não indenizou os danos causados.
O Ministério Público do Trabalho exige agora que a empresa assine um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC), com previsão de pagamento de rescisões, indenizações por danos morais, restituição de despesas e garantia dos direitos dos trabalhadores escravizados.
O caso continua sendo investigado, e novas inspeções não estão descartadas. Parte dos operários já recebeu o seguro-desemprego em modalidade especial, prevista para vítimas de trabalho análogo à escravidão. A TAO Construtora mantém outras obras em andamento no estado e emprega cerca de 1.200 pessoas.
As inspeções realizadas pela força-tarefa nos alojamentos e locais de trabalho constataram condições degradantes e inúmeras violações às normas de saúde e segurança do trabalho. Durante as audiências administrativas realizadas entre 30 de julho e 5 de agosto de 2025, foram ouvidos trabalhadores e representantes da empresa, cujos depoimentos confirmaram as violações dos direitos trabalhistas.
Condições extremamente precárias
As condições dos alojamentos eram extremamente precárias. Os trabalhadores dormiam em quartos superaquecidos, com apenas um ventilador para quatro pessoas, recebendo apenas um lençol fino para cobrir colchões usados e de má qualidade. Não eram fornecidos travesseiros, fronhas ou roupas de cama adequadas. A superlotação era evidente, com alguns trabalhadores chegando a dormir no chão, sob mesas, quando não havia camas disponíveis.
A situação se agravou nas semanas que antecederam o incêndio, quando problemas no fornecimento de energia elétrica se tornaram frequentes. A falta de energia causava a interrupção do bombeamento de água dos poços artesianos para as caixas d'água, deixando os trabalhadores sem água para consumo e higiene pessoal. Os depoimentos revelaram que, nos dias anteriores ao incêndio, os trabalhadores precisaram tomar banho com canecas e enfrentaram filas enormes para usar os banheiros, que estavam sujos devido à falta de água.
No dia do incêndio, a situação atingiu um ponto crítico quando a empresa foi obrigada a utilizar caminhões-pipa para buscar água do Rio Tapirapé, fornecendo água turva e inadequada para consumo nos bebedouros. A precariedade das condições de trabalho e alojamento, somada à falta de água e energia por dias consecutivos, criou um ambiente insustentável que culminou na destruição dos alojamentos masculino e feminino, parte da panificadora e da guarita de entrada.
Após o incêndio, a empresa foi obrigada a alojar os trabalhadores em hotéis e casas alugadas na cidade. Foram registradas 18 demissões por justa causa, 173 pedidos de rescisão antecipada de contratos por prazo determinado e 42 pedidos de demissão. Cerca de 60 trabalhadores perderam todos os seus pertences pessoais no incêndio.
Foto: Vagner Teixeira Maciel - GSI/PGT
Foto: Vagner Teixeira Maciel - GSI/PGT
Pagamento “por fora” e aliciamento
Além das condições degradantes de alojamento e trabalho, as investigações revelaram graves irregularidades na jornada de trabalho. Os trabalhadores eram submetidos ao sistema denominado "cartão 2", em que laboravam além da jornada contratual de 8 horas e 48 minutos diárias, chegando a trabalhar até as 22 horas e aos domingos. As horas extras eram controladas em planilhas separadas e pagas em cheques ou dinheiro, "por fora" da folha de pagamento oficial, caracterizando sonegação fiscal e precarização das relações trabalhistas.
Os depoimentos indicaram que muitos trabalhadores foram aliciados através de intermediários em suas cidades de origem, pagando do próprio bolso as passagens para chegar ao local de trabalho, sendo os valores posteriormente descontados em seus salários. Aqueles que não passavam no exame médico ou não eram aprovados no processo seletivo ficavam sem recursos para retornar às suas cidades.
Larvas e moscas na comida
A alimentação fornecida também era inadequada e repetitiva, com trabalhadores relatando encontrar larvas e moscas na comida, além de alimentos requentados e deteriorados. O refeitório era quente e sem ventilação adequada, obrigando muitos trabalhadores a fazerem refeições em condições precárias.
As inspeções ainda revelaram graves violações às normas de segurança do trabalho no canteiro de obras. Os trabalhadores estavam expostos a condições insalubres, com refeitórios inadequados, locais de trabalho sem refrigeração e com excesso de poeira. Foram constatados acidentes de trabalho não registrados adequadamente, incluindo trabalhadores que sofreram lesões nas mãos e pés, além de doenças de pele causadas pelos produtos manuseados. A falta de equipamentos de proteção individual (EPIs) adequados e as condições precárias de trabalho colocavam em risco a saúde e segurança de todos os empregados.
Providências
As investigações da força-tarefa prosseguem com análise de documentos e não está descartada a necessidade de novas inspeções no local. A ação de resgate dos 563 trabalhadores exemplifica a importância do combate ao trabalho em condições análogas à escravidão e da fiscalização rigorosa das condições de trabalho em grandes obras de infraestrutura no país.
A empresa TAO Construtora possui atualmente quatro obras em Mato Grosso, empregando aproximadamente 1,2 mil trabalhadores, sendo a de Porto Alegre do Norte a maior delas.
O MPT está em processo de negociação de Termo de Ajuste de Conduta (TAC) com a empregadora, a fim de assegurar o pagamento das rescisões, indenizações por dano moral individual e coletivo, indenizações pelos gastos com o deslocamento para Mato Grosso, pagamento das despesas de retorno e alimentação às cidades de origem dos trabalhadores resgatados, além de reparações pelos bens materiais dos trabalhadores destruídos no incêndio.
O MPT também está atuando para garantir a correção de todas as irregularidades encontradas nos alojamentos e na obra.