Cultura

"Para nós que sempre lutamos pela sobrevivência, comemoramos nossas próprias vidas"

12/08/2019
O dia 9 de agosto fixa o Dia Internacional dos Povos Indígenas. Diferente do Dia do Índio (19 de abril), a data internacional marca uma conquista para os povos indígenas de todo o mundo. A agenda foi criada em 1995 pelas Nações Unidas e busca garantir a liberdade de escolha e os direitos humanos de quase cinco mil grupos em mais de 70 países. O Dia Internacional dos Povos Indígenas dá voz a cidadãos em constante luta pelo reconhecimento de suas tradições, identidade e cultura. De acordo com o Censo IBGE 2010, só no Brasil existem mais de 240 povos indígenas remanescentes, dos quais 43 estão no estado de Mato Grosso, mais de 42 mil índios. Em entrevista, Soilo Urupe Chue, uma das lideranças do povo chiquitano, falou com exclusividade sobre questões indígenas que discutem demarcação de terras, políticas públicas e sobre respeito aos povos tradicionais. Soilo é formado em psicologia pela Universidade Federal de Mato Grosso, atuou como liderança jovem e professor. Foi presidente da Comissão Representativa dos Estudantes Indígenas de Mato Grosso e assessor da Federação dos Povos e Organizações Indígenas do Estado. Atualmente é superintendente de Assuntos Indígenas na Casa Civil de Mato Grosso. Confira a entrevista. Secom/MT - Neste Dia Internacional dos Povos Indígenas, o que os povos tradicionais têm a comemorar? Soilo – Na atual conjuntura, se existe algo a se comemorar, para nós que sempre lutamos pela sobrevivência, comemoramos nossas próprias vidas. Hoje, 519 anos depois da chegada dos portugueses, nossas lideranças continuam sendo assassinadas. Da mesma forma que tivemos algumas conquistas ao longo do tempo, em pleno século 21, percebemos que ainda não acabou o período de perseguição aos nossos direitos. Secom/MT - Mais de 30 anos após a aprovação da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, o que mudou na prática para os povos tradicionais? Soilo – A partir da constituição de 1988, nos foi garantido o direito de viver conforme nossas tradições, línguas, crenças e nossas práticas ritualísticas. Mas temos um direito que vem antes da constituição, que é o direito à vida. Os acordos internacionais garantem o direito de sermos respeitados como pessoas. Estamos lutando todos os dias por esse direito, lutamos pela sobrevivência e enfrentamos todo tipo de violência. Temos um direito originário que vem muito antes da própria democracia. E é por esse direito originário que lutamos desde sempre. As outras questões são marcos históricos para assegurar esses direitos, como a própria convenção 169. Secom/MT – A constituição também garante a demarcação das terras indígenas. Como lidar com essa questão que se arrasta por gerações? Soilo –Tivermos um período para realizar as demarcações das terras indígenas, outra garantia da constituição de 1988, mas isso nunca ocorreu na integralidade. E algumas pessoas dizem que o período para isso já passou. Mas eu pergunto, como já passou se nunca fomos contemplados? As terras nunca foram demarcadas de fato e a necessidade continua, ano após ano. Hoje é ainda mais importante, porque estamos limitados. O território é muito mais que uma demarcação de terras, entende? Secom/MT – Fale mais sobre isso... Soilo - Para nós, povos indígenas, o território é a nossa casa, não apenas a oca em que vivemos. Todo o território é nosso lar. Quando não temos territórios demarcados, ficamos expostos, sujeitos a violações de todo tipo, como tem ocorrido nesses últimos anos. Nossos direitos estão sendo violados por gerações. Secom/MT – E quais são os maiores desafios dessa luta? Soilo – Talvez, nosso maior desafio hoje seja garantir o respeito, todo o resto é consequência disso. Superar o preconceito, descriminação e a violações dos nossos direitos... E a própria luta pela demarcação dos territórios indígenas, claro. Outro grande desafio é conseguir manter nossa própria cultura, nossa forma de ser, fazer e viver, dentro desse contexto. Os povos indígenas precisam ser mais respeitados, na sua integralidade dentro do processo histórico. Secom/MT – Então a luta maior é por respeito, certo? Soilo – Sim, respeito. O respeito é a base de tudo. Com respeito conseguiremos todos os avanços sociais e políticos. É preciso ainda, respeitar a cronologia de contato. No Brasil existem povos com muito tempo de contato com o não índio, povos de recente contato e os povos isolados. Todos os povos indígenas estão na luta pela sobrevivência. Alguns com iniciativas de produção sustentável, povos que tiveram contato com produção mecanizada e industrial e existem povos que ainda vivem de maneira bem tradicional. A luta é por sobrevivência, para manter o que somos e fazemos, sem discriminação. Sempre digo que enquanto existir um índio vivo, manteremos viva nossa cultura. Secom/MT – E como atua a Superintendência de Assuntos Indígenas do Estado na construção de políticas públicas? Soilo - A superintendência foi criada em 1986 como uma coordenadoria de políticas indígenas. De lá para cá, ocupa um espaço dentro do governo, independente do governador. Iniciou-se, desde então, um diálogo entre os povos indígenas e o governo do Estado. Estamos caminhando com muito esforço e ainda assim percebemos que as políticas que existem na pratica não chegam até a base, nos territórios. Entretanto, a superintendência procura fazer essa articulação junto aos povos indígenas, uma vez que fui indicado pela Federação que representa os 43 povos existentes em Mato Grosso. Nós, povos indígenas, estamos por todo o Estado de Mato Grosso. Secom/MT - Conclua com um breve panorama sobre a atuação da Superintendência no primeiro semestre de 2019. Soilo - Não medimos esforços para que esse diálogo seja mantido e para que as articulações garantam os direitos dos povos indígenas. Precisamos pensar dentro de um cenário geral, de sete regionais indígenas em Mato Grosso e também ver como de fato criar políticas públicas e fortalecer as que já existem. Enquanto superintendente, trabalho para que as delegações que vêm das regionais sejam atendidas, bem como suas demandas sejam ouvidas e contempladas. Num Estado como o nosso que tem muitos povos indígenas, cada povo tem sua especificidade que deve ser respeitada e não generalizada. Para além desse espaço no Governo, que garante o diálogo, queremos estar presentes e ativos nas construções das políticas públicas.