Mundo

A mulher que se aproximou de líder de milícia sanguinária em busca da paz

18/08/2019
No final dos anos 1950, Betty Bigombe caminhava mais de 6 km todos os dias para ir à escola no norte de Uganda. Ela sabia que estudar era a única forma de mudar de vida e ajudar sua comunidade. Trinta anos depois, a "contribuição" seria carregar o destino de sua nação nos ombros, ao tentar negociar a paz com Joseph Kony, o famoso líder do Exército de Resistência do Senhor (LRA), grupo guerrilheiro que surgiu em Uganda em 1986 e depois expandiu sua atuação para outros países, como Sudão, Congo e República Centro-Africana.

Bigombe era a oitava dentre 11 crianças e cresceu numa sociedade onde a poligamia é praticada até hoje.

"Sem educação, eu provavelmente teria 20 crianças numa área rural, realizaria as tarefas diárias de ir ao campo para cavar, colher, com um bebê nas costas e outro engatinhando. Seria uma das muitas esposas", disse ela.

Mas sua família recebeu apoio financeiro e moral de uma igreja para que Bigombe pudesse continuar estudando durante a adolescência, e ela acabou ganhando uma bolsa para estudar na Universidade Harvard, nos EUA.

Ela só voltaria a Uganda no começo dos anos 1980, casada, mãe de duas crianças. Seu país estava no meio de uma guerra que opôs as forças do presidente Milton Obote contra o movimento de Yoweri Museveni.

"Naquela época estava escondendo algumas pessoas que apoiavam Museveni. Trabalhei com uma alemã que estava com a agência da ONU para refugiados e nós levavámos para o Quênia pessoas cujas vidas estavam em perigo. Com a bandeira da ONU, tudo bem. Nós podíamos passar por rodovias bloqueadas e levá-los em segurança. Então, foi isso que desencadeou a luta contra as injustiças."

Missão suicida

Em 1986, Museveni virou presidente, cargo que ele ainda ocupa hoje. E recompensou Bigombe, nomeando-a como ministra.

"Fiquei muito decepcionada quando fui nomeada porque só havia homens. Tudo que eles fizeram foi me pedir para ficar sentada lendo jornais. Fui ao presidente e disse a ele que queria renunciar porque não poderia ficar fazendo palavras cruzadas no escritório. Não dava para levar um romance para ler no escritório. Eu queria trabalhar. Ele ficou chocado com o fato de eu querer renunciar. Ministros africanos não renunciam, especialmente mulheres", relata Bigombe.

Ela decidiu então apresentar uma proposta: como uma guerra havia estourado no norte do país, ela se ofereceu para ir até lá e descobrir onde rebeldes estavam e onde eles guardavam suas armas.

Só que Museveni fez uma contraproposta: Bigombe deveria viajar ao norte de Uganda para negociar com as facções uma trégua da guerra.

A missão foi considerada suicida por amigos e familiares.

"Muita gente me disse: renuncie, ele quer você morta. Amigos falaram que não era um trabalho para uma mulher. 'Por que ele te mandou fazer isso? Você não tem experiência'."

Dificilmente outra pessoa teria coragem suficiente para negociar com Joseph Kony, o líder do LRA, um ex-coroinha que passou a dizer que era o mensageiro de Deus.

Este dizia aos membros de seu culto messiânico para sequestrar e estuprar meninas, e treinou meninos e meninas para matar.

Bigombe recebeu uma carta do LRA dizendo que o presidente Museveni tinha insultado o grupo mandando uma mulher para negociar. Ameaçaram a matá-la, mas ela ficou - estava determinada a acabar com a guerra.

Mandaram uma vítima da violência imposta por Kony para entregar uma segunda carta pessoalmente.

"Esse cara apareceu. Não sei como ele não morreu. Não tinha vacina antitetânica, nada. Lábios cortados, membros cortados, encharcados de sangue. A tal carta foi endereçada a mim, mas era puro sangue. Claro, nem toquei nela."

Bigombe decidiu responder Kony por escrito. No texto, se referiu a ele como "meu filho" e usou a religião como uma forma de se conectar com ele.

Encontro na floresta

Kony, em dado momento, concordou em se encontrar com ela, que temia ser torturada. Bigombe planejava se matar caso fosse capturada pelo líder do LRA.

Encontraram-se pela primeira vez na floresta.

"Ele tinha seguranças, música de igreja, homens vestidos de freiras e armados. Eles cantavam hinos e caíam, dizendo que o demônio estava saindo de dentro deles. A cena era inacreditável. Ele vestia uniforme militar. Definitivamente, veio pronto para intimidar."

Nos 18 meses seguintes, foram diversos encontros presenciais, e Kony começou a chamar Bigombe de "mamãe".

Ele acabou concordando em sair da floresta para conversar sobre um possível acordo de paz com presidente Museveni.

Bigombe foi ao presidente e disse a ele que era preciso definir as condições para as tratativas do acordo de paz. Mas Museveni fez um comício e ameaçou Kony - disse a ele para aparecer imediatamente e encarar a ira das tropas do governo.

Kony e sua tropa responderam com um massacre de 300 pessoas em um centro de comércio na fronteira com o Sudão.

Bigombe renunciou e foi para os Estados Unidos.

"Eu estava destruída. Tive uma crise no avião. Foi uma derrota muito dolorosa, mas não por mim. Era pelo sofrimento das pessoas", diz ela.

Ela voltou para Harvard e depois foi trabalhar no Banco Mundial em Washington, na unidade pós-conflito. Então, numa manhã de 2004, ela liga a televisão e tudo muda.

Era uma notícia de última hora na CNN: o LRA tinha entrado em um acampamento e assassinado mais de 300 pessoas.

"E então, de repente, minha foto - a única pessoa que quase acabou com a guerra, a única pessoa que conheceu esse líder rebelde. Eu achei que era um chamado".

Bigombe voltou para Uganda e tentou um novo encontro com Kony.