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O que está em jogo no México com eleição sem precedentes de juízes do país pelo voto popular

Às 8 horas da manhã deste 1º de junho, acontece no México uma eleição inédita no mundo

PEDRO RIBEIRO/DA EDITORIA/COM BBC 31/05/2025
O que está em jogo no México com eleição sem precedentes de juízes do país pelo voto popular
O movimento encabeçado pela presidente Claudia Sheinbaum promoverá eleições para o Judiciário | Getty Imagens

Às 8 horas da manhã deste 1º de junho, acontece no México uma eleição inédita no mundo.

Cem milhões de eleitores estão aptos a participar da escolha de ministros da Suprema Corte, magistrados regionais e juízes de distrito, um tipo de votação que não existe em nenhum outro país.

Bolívia é o país com o sistema de escolha do Judiciário mais semelhante, mas o voto popular só é permitido para os cargos dos tribunais superiores. Outros países, como os Estados Unidos, limitam a votação a alguns juízes estaduais.

No México, a eleição por voto popular de todos os membros do Judiciário se tornou uma das bandeiras políticas mais importantes do movimento político Quarta Transformação (4T), liderado pelo ex-presidente Andrés Manuel López Obrador.

Durante seu governo (2018-2024), López Obrador defendeu a ideia de "democratizar" o Judiciário, permitindo que os próprios cidadãos escolhessem diretamente os integrantes desse poder.

Na época, contudo, ele não tinha votos suficientes no Congresso para levar a proposta adiante.

Isso mudou após a vitória avassaladora da coalizão da 4T em 2024, que elegeu a presidente Claudia Sheinbaum, e uma nova composição no Congresso, com votos suficientes para promover uma reforma constitucional no Judiciário.

Os que apoiam a medida a veem como um modelo pioneiro, que submete ao escrutínio popular as decisões e a atuação dos juízes em todos os níveis, dando aos cidadãos o poder de destituí-los se não fizerem bem o seu trabalho.

Já para os críticos, é uma ameaça ao contrapeso que o Poder Judiciário exerce frente ao Executivo e ao Legislativo, com potencial de abrir as portas para a atuação de juízes vinculados a poderes paralelos, incluindo o crime organizado.

Claudia Sheinbaum e López Obrador com os braços levantados

Crédito,Getty Images

Legenda da foto,López Obrador foi um dos grandes defensores da reforma no Judiciário, que foi retomada por Sheinbaum ao assumir a presidência em 2024

"Para mim, tem sido um grande desafio intelectual tentar entender a reforma sem preconceitos", disse à BBC Mundo — serviço em espanhol da BBC — a analista mexicana Viri Ríos, doutora pela Universidade de Harvard e especialista em políticas públicas e governo.

"Estamos vivendo um momento marcante na história do México. E é um momento para questionarmos muitos dos dogmas sobre os quais se sustenta a democracia liberal", acrescenta.

Para a acadêmica, a partir da votação de domingo, Sheinbaum e o movimento da Quarta Transformação poderão ser responsabilizados pelo desempenho do Poder Judiciário.

"É o início de um momento muito complexo para a coalizão governista, porque, antes, o Judiciário não funcionava bem, mas ninguém atribuía o problema a uma coalizão política, e sim ao próprio Poder Judiciário", alerta.

"Mas, a partir do 1º de junho, essa responsabilidade cairá em cima da coalizão governista. Porque foram eles que criaram essa fórmula e promoveram a ideia de que a impunidade seria reduzida."

Para o analista político Héctor Alejandro Quintanar, a nova fase do Poder Judiciário mexicano vai além da disputa política atual no país.

"Acredito que o que está em jogo vai além da Quarta Transformação. É a ideia de que vivemos uma nova fase no México, mais politizada, em que o voto popular toma outra dimensão e assume um novo papel", afirma Quintanar, que é professor da Universidade Nacional Autônoma do México.

"É verdade que o Judiciário é um contrapeso ao Executivo e ao Legislativo, mas parece que o Judiciário, por si só, não tem contrapesos. E é aí que entra a variável do voto popular, que pode se tornar esse contrapeso e representar um passo rumo à eliminação de suas elites", pontua.

O que estará em votação?

Ainda que o objetivo da reforma judicial seja a renovação total do Poder Judiciário através do voto popular, o Congresso estabeleceu que a votação seria realizada de forma escalonada.

Por isso, a nível federal, serão eleitos apenas 386 juízes e a metade dos magistrados do circuito (464) neste domingo (01/06),.

A Suprema Corte de Justiça da Nação também, será renovada por completo, mas passará a ter 9 integrantes em vez dos atuais 11.

Serão eleitos ainda dois magistrados da Sala Superior do Tribunal Eleitoral, que conta com outros quatro membros. Além disso, serão renovadas todas as 15 cadeiras de magistrados das salas regionais desse tribunal.

E os eleitores escolherão os cinco magistrados do Tribunal de Disciplina Judicial, órgão criado para fiscalizar o desempenho dos juízes, magistrados e ministros.

Em 19 dos 32 estados do México, haverá ainda eleição para juízes locais (quase 1.700), além de votações para prefeituras e outros cargos regionais. Desta forma, alguns eleitores receberão até 13 cédulas diferentes para preencher.

Os cargos para os quais os mexicanos votarão no dia 01 de junho:

  • 9 ministros da Suprema Corte de Justiça da Nação
  • 2 magistrados da Sala Superior do Tribunal Eleitoral
  • 15 magistrados regionais do Tribunal Eleitoral
  • 386 juízes de distrito
  • 464 magistrados de circuito
  • 5 magistrados do Tribunal de Disciplina Judicial
mão com cédulas de votação

Crédito,Bloomberg via Getty Images

Legenda da foto,México se prepara para sua primeira votação popular para escolher juízes

Com regras bastante rígidas para as campanhas, conhecer os perfis dos centenas de candidatos que concorrem às eleições tem sido um desafio.

O Instituto Nacional Eleitoral (INE), que organiza a eleição dos juízes federais, estima que os eleitores vão levar cerca de 9 minutos para escolher seus candidatos.

No México, o voto não é obrigatório, o que se reflete nas altas taxas de abstenção registradas nas eleições anteriores como a presidencial (38%) e ainda mais nas intermediárias (47%) e nas consultas populares (82%).

Por isso, a expectativa é de baixa participação nas eleições de 1º de junho. O INE prevê que entre 8% e 15% dos eleitores comparecerão às urnas.

A autoridade eleitoral também determinou a suspensão da distribuição dos chamados "acordeones" — uma espécie de santinho, como é conhecido no Brasil —, entregue por partidos políticos com instruções sobre em quais candidatos votar.

A rejeição e o dilema do voto

A reforma judicial foi um dos temas principais das eleições de 2024 no México, com a coalizão governista da 4T fazendo uma defesa firme de seus benefícios, frente às críticas dos partidos de oposição e de um amplo setor formado pelos atuais ministros, juízes e funcionários do Poder Judiciário.

Esse último grupo tem insistido que o objetivo final da reforma de López Obrador é "se apoderar" da Supreme Corte e de outros tribunais que, durante seu governo, declararam inválidas diversas leis e iniciativas, desde a nacionalização do setor energético até mudanças no sistema eleitoral.

Houve protestos e intensos debates no Congresso, nos quais os opositores da reforma alertaram que os cargos de magistrado exigem especialização da carreira judicial, e que uma votação popular permitiria a entrada de juízes que respondem a interesses de partidos políticos, grupos econômicos e do crime organizado.

A organização Defensorxs, que analisou o perfil dos candidatos que disputam as eleições neste domingo, identificou 19 aspirantes de "alto risco", por possíveis vínculos com narcotraficantes ou por denúncias de violência e corrupção.

A oposição também criticou o fato de que a maioria absoluta da coalizão da 4T garantiria o controle sobre a aprovação das candidaturas que, embora tenham se originado a partir de indicações do Executivo, Legislativo e Judiciário, passaram por um filtro final no Congresso.

Também alertaram que o país poderia passar uma imagem ruim para o exterior, especialmente diante de agências que avaliam negativamente o risco de investimento em países sem independência judicial.

Manifestante segura um cartaz contra a reforma judicial. O cartaz diz: "Cidadãos com o Poder Judiciário. Paremos a ditadura. Ministros, vocês não estão sós".

Crédito,Getty Images

Legenda da foto,Muitos partidos políticos e grupos da sociedade civil rejeitam a votação popular para escolha de juízes

"Para mim, a população está sendo enganada. Não vão escolher seus juízes e magistrados. Isso é falso", disse nesta semana o ministro da Suprema Corte Javier Laynez, um dos principais críticos da reforma.

"Desde o início, apontei que existe um risco de cooptação da justiça federal e local. Eles não gostam que alguém lhes diga 'isso está mal feito', 'isso é ilegal', 'isso é inconstitucional'", declarou em entrevista à Rádio Fórmula.

Entre os que rejeitam a reforma, ganhou força nos últimos dias o debate sobre comparecer ou não às urnas. O ministro Laynez afirmou que não há garantias sobre a contagem correta dos votos e, por isso, ele não pretende votar.

Outros, no entanto, argumentam que a abstenção não vai ajudar em nada no objetivo de reverter a reforma do Judiciário, nem vai garantir a eleição de ministros e juízes que fazem contrapeso às decisões dos outros poderes.

Um teste para a 4T e a cidadania

López Obrador argumentou durante muito tempo que o Poder Judiciário era "alheio" aos interesses do povo e que submetê-lo à votação permitiria que ele se "limpasse, purificasse".

Ao sucedê-lo, a presidente Sheinbaum continuou a defender as mudanças, argumentando que o modelo anterior lhe permitia indicar os juízes da Suprema Corte, e que a coalizão da 4T tinha a maioria para aprová-los, mas que seu objetivo não era controlar o Poder Judiciário.

"As pessoas que forem votar vão decidir quem vai estar no Poder Judiciário. E aqueles que saírem vitoriosos dessa eleição, eleitos pelo povo, vão responder ao povo. Essa é a grande diferença", disse a presidente mexicana na quarta-feira.

Segundo membros da 4T, a criação de um tribunal para fiscalizar a atuação de juízes permitirá identificar casos de corrupção e punir os magistrados como nunca antes.

Mulher em pé segurando um microfone. Atrás dela há uma tela que mostra exemplo de uma cédula de votação

Crédito,Getty Images

Legenda da foto,Sheinbaum defende que os ministros da Suprema Corte sejam escolhidos pela população e não por indicações do Executivo

Para uma parte dos analistas do país, a eleição do Poder Judiciário já superou a fase de discussão de prós e contras, uma vez que, para reverter a reforma, a oposição teria que conseguir maioria de votos no parlamento.

Assim, o país caminha para um cenário inédito.

Viri Ríos afirma que a coalizão 4T já promoveu essa mudança constitucional com a promessa de "reduzir a impunidade" no país e, caso isso não aconteça, os resultados não serão atribuídos apenas ao Poder Judiciário. "Vai cair em cima da coalizão governista. Porque foram eles que criaram essa reforma", sustenta.

Na opinião da analista, o novo Poder Judiciário será um reflexo do país, como são os outros poderes. "Vamos ter narcotraficantes sendo juízes? Façamos um exercício de honestidade intelectual: temos prefeitos no México que respondem ao narcotráfico? Claro que sim, não há dúvidas."

"Quando me dizem que vão destruir o Poder Judiciário puro e profissional que tínhamos, eu penso: em que país vive essa gente?", questiona.

Já Quintanar argumenta que a baixa participação prevista para as eleições deste domingo não será um reflexo da rejeição dos cidadãos à reforma judicial, já que, na avaliação dele, esta foi legitimada pela votação expressiva em 2024 a favor da coalizão governista.

Para ele, está se abrindo um novo espaço de escrutínio popular sobre o Poder Judiciário, que tradicionalmente esteve fechado.

"Claro que a reforma judicial e a votação de domingo são amplamente passíveis de críticas. Vai ser difícil para o cidadão, pelas cédulas e pela quantidade de candidatos para escolher. É um processo que tem muito a melhorar. Mas a democracia é assim", avalia.

"Vivemos uma nova fase no México, mais politizada, em que o voto popular toma outra dimensão e assume um novo papel", opinou.