Mundo

A polêmica por trás da autoria de uma das fotos mais famosas da história

A imagem marcante da Guerra do Vietnã, "Garota Napalm" também tem sido motivo de orgulho e aspiração para fotojornalistas vietnamitas

PEDRO RIBEIRO/DA EDITORIA/COM BBC 02/08/2025
A polêmica por trás da autoria de uma das fotos mais famosas da história
Nick Ut ganhou um Pulitzer e diversos outros prêmios pela foto chamada "O terror da guerra", conhecida popularmente como "A menina de napalm" | AP

Uma menina nua, junto com outras crianças, corre com a pele queimada e gritando de dor após ser atingida por napalm.

A imagem marcante da Guerra do Vietnã, "Garota Napalm" também tem sido motivo de orgulho e aspiração para fotojornalistas vietnamitas: seu criador, Nick Ut, tornou-se o primeiro e único fotógrafo vietnamita a ganhar um Prêmio Pulitzer.

"Nick Ut foi o escolhido", declarou um fotógrafo vietnamita que preferiu não ser identificado. Reverenciado como "Mestre", Ut mora nos Estados Unidos e viaja frequentemente para seu país natal, onde orientou gerações de fotojornalistas vietnamitas.

Mas, mais de 50 anos depois, a autoria da imagem icônica foi questionada por um novo documentário intitulado The Stringer, que estreou no Festival de Cinema de Sundance em janeiro.

Com a ajuda da tecnologia moderna, o documentário lançou uma alegação explosiva: afirma que a imagem foi tirada por Nguyen Thanh Nghe, um fotógrafo freelancer que agora tem 87 anos.

Nguyen Thanh Nghe aparece na foto segurando uma câmera parecida com uma Pentax à esquerda; Nick Ut, usando um capacete, aparece no vídeo à direita.

Crédito,Getty Images

Legenda da foto,Em outra imagem do mesmo momento, Nguyen Thanh Nghe pode ser visto segurando uma câmera parecida com uma Pentax (esquerda); à direita, uma figura usando equipamento de proteção que poderia ser Nick Ut pode ser vista no vídeo (direita).

Após o documentário, a World Press Photo (WPP) iniciou uma investigação e decidiu suspender a atribuição da imagem a Ut, gerando profunda controvérsia na comunidade fotojornalística.

"Para derrubar um herói, uma figura lendária, é preciso haver provas convincentes e suficientes", disse outro fotojornalista vietnamita à BBC.

Na era digital, é "raro" que uma única imagem tenha tanto impacto, acrescentou. "Devemos ter cuidado. Não devemos permitir que a controvérsia prejudique o legado de uma foto tão importante ou cause mais sofrimento."

A autenticidade da imagem não está em dúvida, mas a controvérsia se tornou emocionalmente carregada porque o nome do fotógrafo também faz parte do registro histórico, disse Keith Greenwood, professor associado de fotojornalismo na Universidade do Missouri.

"A Guerra do Vietnã tem uma história complexa e ainda pode gerar sentimentos fortes. É natural que questionar a foto também alimente alguns desses sentimentos", concluiu.

Imagens de vídeo mostrando uma figura borrada, que se acredita ser Ut, a alguma distância, logo após a foto ter sido tirada.

Crédito,Getty Images/World Press Photo

Legenda da foto,Imagens de vídeo mostram uma figura borrada, que se acredita ser Ut, parada a alguma distância logo após a foto ter sido tirada.

A foto

A imagem icônica foi tirada após a Força Aérea Sul-Vietnamita lançar um ataque de napalm que atingiu acidentalmente a vila de Trang Bang em 8 de junho de 1972. Kim Phuc, a pessoa fotografada, brincava com o irmão e os primos no pátio de um templo.

Ut trabalhava para a Associated Press (AP) na época. O fotógrafo relatou que os moradores corriam por uma estrada próxima após a explosão. Após fotografar uma avó segurando uma criança, Ut viu Phuc correndo com os braços levantados. Ele correu para tirar fotos até ver a pele dela descascando. Então, jogou água no corpo dela e levou as crianças para um hospital.

Antes das câmeras digitais, os fotógrafos — tanto funcionários de agências quanto freelancers — tinham que deixar seus filmes no escritório. O editor da câmara escura registrava os créditos e revelava o filme. O fotógrafo-chefe então decidia qual foto enviar para a sede da AP.

"Quando voltei ao escritório, gritei: 'Tenho uma foto muito especial!' Todos se viraram para olhar", disse Ut à BBC em janeiro.

Ut disse que ficou ao lado do editor da câmara escura, Yuichi "Jackson" Ishizaki, enquanto revelava o filme. Ishizaki rotulou o filme com o nome de Ut e trouxe a imagem para a área principal.

"Todos viram a foto, e alguém chamou meu chefe, o fotógrafo-chefe Horst Faas, para voltar do almoço imediatamente", disse Ut.

De acordo com Ut, Faas chegou antes do editor de fotografia Carl Robinson, e os dois discutiram sobre a publicação da foto. Robinson, responsável pelas legendas, considerou a imagem inadequada por conter nudez. Sua objeção foi rejeitada.

Nguyen Thanh Nghe e Carl Robinson na estreia do documentário "The Stringer" em janeiro de 2025 em Utah, EUA.

Crédito,Getty Images

Legenda da foto,Nguyen Thanh Nghe e Carl Robinson na estreia do documentário The Stringer.

No entanto, Robinson relatou uma história muito diferente à BBC.

Ele disse que só encontrou Ishizaki e um técnico dentro da câmara escura depois do almoço. Segundo Robinson, os filmes já haviam sido revelados e preparados para análise. Havia duas fotos da mesma cena — uma de lado e outra de frente — em rolos diferentes, enviados por dois fotógrafos.

Robinson viu um nome desconhecido no diário de bordo porque o jornalista freelancer não trabalhava regularmente para a AP. "Tínhamos muitos correspondentes vietnamitas. Podiam ser civis ou, às vezes, soldados que ganhavam um dinheiro extra", disse ele.

Robinson observou que Faas retornou mais tarde e não houve discussão sobre qual foto enviar. Ele também insistiu que Ut não estava presente durante o processo de seleção das fotos.

Robinson contou que, enquanto escrevia a legenda, Faas se aproximou e sussurrou em seu ouvido para dar crédito a Ut, um funcionário da AP. "Não tive coragem de desafiá-lo porque queria ficar em Saigon com minha esposa vietnamita e meus dois filhos pequenos", afirmou.

Tanto Faas quanto Ishizaki morreram.

Nick Ut com Kim Phuc. O fotógrafo mostra a icônica foto da Guerra do Vietnã enquanto aguardam o encontro com o Papa Francisco no final de sua audiência geral semanal na Praça de São Pedro, Cidade do Vaticano, em 11 de maio de 2022.

Crédito,Getty Images

Legenda da foto,Nick Ut e Kim Phuc se encontraram com o Papa Francisco em 2022 para comemorar o 50º aniversário da "Napalm Girl".

A consciência de Robinson ficou abalada nas décadas seguintes. Ele queria se desculpar com o fotógrafo, mas não conseguia se lembrar do nome dele. Em 2015, com a ajuda de um ex-colega da AP, encontrou o nome de Nghe, mas não conseguiu localizá-lo.

Sete anos depois, Ut e Kim se encontraram com o Papa Francisco para celebrar o 50º aniversário da foto. "Finalmente decidi que precisava encarar tudo isso. Não podia continuar virando as costas e esquecendo."

Robinson contatou o colega fotojornalista Gary Knight, que concordou em entrevistá-lo, marcando o início de The Stringer.

Pouco depois, a equipe de produção do documentário localizou Nghe, que havia se mudado para os Estados Unidos como refugiado após a queda de Saigon, mas havia retornado ao seu país de origem em 2002.

"Ele estava em silêncio, sem voz, ansioso e com dor — emoções profundamente reprimidas", disse Nghe. "Nada é mais importante do que a verdade."

As investigações

Após saber que o documentário estava em andamento, a AP iniciou sua própria investigação com base nas imagens disponíveis, entrevistas com testemunhas e uma inspeção das câmeras de Ut.

A AP publicou duas reportagens em janeiro e maio e concluiu que não havia evidências definitivas para remover Ut da foto. No entanto, a agência de notícias reconheceu que havia "questões significativas".

A AP afirmou que a foto provavelmente foi tirada com uma câmera Pentax, o que contradiz o relato de Ut. Ele alegou que tinha quatro câmeras consigo naquele dia (duas Leica e duas Nikon) e que usou uma Leica para capturar a imagem. Quando questionado pela AP, Ut alegou que não prestou atenção no modelo e acrescentou que Faas explicou que a imagem veio de um rolo usado em uma Leica.

No dia da imagem, Nghe foi fotografado segurando uma câmera semelhante a uma Pentax.

Tanto o documentário quanto a AP tentaram reconstruir uma linha do tempo com base em filmagens, fotos e imagens de satélite. Imagens de vídeo gravadas logo após a foto ser tirada mostram uma figura borrada, que se acredita ser Ut, bem distante das crianças. O documentário afirma que Ut estava a 60 metros da câmera que fez essas imagens em vídeo, o que significa que ele teria tido que correr após tirar a foto.

A AP contestou essa estimativa, situando a figura borrada em uma faixa de 28,8 a 48 metros, com uma margem de erro de 20%. A agência argumentou que o cálculo da distância poderia ser afetado por diversas variáveis e que o documentário também ignorou outras imagens de vídeo e não teve acesso a dois conjuntos de imagens que utilizou em sua investigação.

O que acontece agora?

Nem a AP nem a World Press Photo afirmam ser capazes de determinar a identidade do fotógrafo. A World Press Photo chegou a sugerir que um terceiro fotógrafo pode ter capturado a imagem.

As dúvidas persistem: vários jornalistas presentes no local rejeitaram a versão do documentário como infundada e se recusaram a participar da filmagem.

E quanto à foto impressa? Nghe disse que Faas lhe deu uma, mas sua esposa a rasgou, frustrada.

Ut afirma ser o fotógrafo legítimo e planeja entrar com uma ação por difamação.

"As pessoas naturalmente querem saber a verdade por trás da foto", disse o primeiro fotógrafo vietnamita anônimo citado neste artigo. "Precisamos de mais tempo e evidências para saber o que realmente aconteceu", acrescentou.

Não há dúvidas sobre o poder que "Napalm Girl" mantém décadas após ter sido tirada, mas as alegações em torno de sua autoria adicionaram uma camada de mistério.