Opinião

A reforma administrativa, também conhecida como reforma seletiva

Valdir Barranco 07/09/2020
A reforma administrativa, também conhecida como reforma seletiva
Foto: Assessoria
Um dos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil é construir uma sociedade livre, justa e solidária. Ocorre que mais um ataque a essa estrutura foi protocolado na Câmara dos Deputados: a Proposta de Emenda à Constituição (PEC 32/2020) que “altera disposições sobre servidores, empregados públicos e organização administrativa”, apresentada pelo Ministro da Economia, Paulo Guedes. Ela modifica consideravelmente, o Capítulo VII -  da administração pública, do Título III - da organização do estado, da Constituição Cidadã de 1998, apenas para agradar ao mercado financeiro demonstrando um interesse de redução da máquina pública.
A reforma que abrange funcionários públicos dos três poderes e todos os entes federados (11,4 milhões de pessoas) é carregada pelo conceito de estado liberal e aprofunda a desigualdade, precariza o serviço público, além de falsamente justificar o corte de privilégios; uma vez que as mudanças não atingem militares e representantes das carreiras do alto escalão do funcionalismo público: juízes, promotores, procuradores e desembargadores.
A primeira fase da reforma permite que o presidente faça a extinção de órgãos do Executivo por decreto, sem o aval do parlamento, como as agências reguladoras dos serviços públicos de vigilância sanitária, energia elétrica e telefonia, além das autarquias, fundações, institutos de fiscalização ambiental e reforma agrária. Outras duas fases estão prometidas para os próximos meses.
A "reforma seletiva" trata de quatro pilares fundamentais para qualquer mudança na área: fiscal, flexibilidade das contratações, gestão das carreiras e a avaliação de desempenhos. Para o presidente Jair Bolsonaro, servidores "são parasitas" e a proposta acaba com o regime jurídico único dos servidores para criar cinco outros distintos. A manutenção da estabilidade será apenas para carreiras de estado, mas sem definir quais.
O objetivo do governo é flexibilizar as regras de estabilidade de novos servidores públicos por meio da contratação de empregados sob regime CLT e de funcionários temporários, não necessariamente por concurso público.
Entre as mudanças também estão o corte de benefícios dos futuros servidores, o fim de férias superiores a 30 dias por ano, adicional por tempo de serviço, aumentos retroativos, aposentadoria compulsória como punição, adicional ou indenização por substituição não efetiva, parcelas indenizatórias sem previsão legal, redução de jornada sem redução de remuneração, salvo por questões de saúde. Incorporação ao salário de valores referentes ao exercício de cargos e funções, progressão ou promoção baseada exclusivamente em tempo de serviço e a licença prêmio.
Cabe registrar que a PEC trata ainda da acumulação de cargos públicos por militares, além da aposentadoria compulsória aos 75 anos para empregados de consórcios públicos, empresas públicas e sociedades de economia mista, e o absurdo de proibir que medidas do governo venham a favorecer estatais em nome da livre concorrência no mercado, fragilizando não somente o servidor público, o serviço público mas também os bens públicos, é o desmonte total do que se entende por estado.
Convém analisar ao aumento de princípios expressos no artigo 37, da CF/88 que tinha legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência, passando a ser legalidade, impessoalidade, imparcialidade, moralidade, publicidade, transparência, inovação, responsabilidade, unidade, coordenação, boa governança pública, eficiência e subsidiariedade, sob a justificativa de “modernização da concepção do Estado”.
Segundo a justificativa apresentada, a imparcialidade exigirá que todo agente público “no exercício do seu mister funcional, se conduza de modo absolutamente imparcial, ainda que possua valorações internas pré-concebidas a respeito do tema sob exame”. A transparência ensinará “não apenas estar disponível ao público, mas ser compreensível pelo público, com clareza e fidedignidade”. Inovação
seria “símbolo de uma nova era do estado brasileiro, deixando para trás a mera conservação burocrática, que, desconectada dos tempos atuais, tem se revelado ineficiente para atender aos anseios do povo brasileiro.”
E segue dizendo que o princípio da responsabilidade “ampla configura uma atuação íntegra não apenas sob o ponto de vista objetivo ou formal, mas também materialmente responsável.” O princípio da coordenação é “harmonizar todas as atividades da Administração, submetendo-se ao que foi planejado e poupando-a de desperdícios em qualquer de suas modalidades.”
Para Paulo Guedes, o princípio da subsidiariedade “visa a garantir que as questões sociais sejam sempre resolvidas de maneira mais próxima ao indivíduo-comunidade, e só subsidiariamente pelos entes de maior abrangência, ressaltando, no âmbito da Administração pública, o caráter do federalismo”. E com o princípio da boa governança “é possível sublinhar a posição de destaque do cidadão, como centro de toda a atuação administrativa, incluindo o direito de ser ouvido antes de qualquer decisão administrativa que o afete desfavoravelmente, de ter acesso aos processos que tratem de seus interesses, bem como a obrigação, por parte da Administração, de fundamentar suas decisões, que devem ser imparciais e proferidas num prazo razoável."
Para a professora e coordenadora do Núcleo de Estudos da Burocracia, da Fundação Getulio Vargas, Gabriela Lotta, “é uma reforma muito abstrata”,  além de passar um “cheque em branco para o presidente fazer o que bem entender”, e para o auditor e presidente do Fórum Nacional Permanente das Carreiras Típicas de Estado), “o governo não conseguiu dimensionar o impacto orçamentário nem demonstrar em que medida essa proposta vai melhorar o serviço público”. “Do jeito que está, os funcionários do Ibama, da Receita Federal, da Polícia Federal, dos órgãos de controle não teriam a estabilidade adequada para exercerem suas funções.”
Dados colhidos em 2015, da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), apontam que o Brasil tem 12% de sua força de trabalho no poder público. E que a média dos 32 países pesquisados por esse organismo internacional é de 21%. Quem está no topo é a Dinamarca, com 35% e, na base, a Colômbia, com 4%, os EUA de economia neoliberal possui 15,2% e o Reino Unido 16,4%, derrubando por terra o argumento de que há uma profusão de servidores.
O Fórum Nacional Permanente de Carreiras Típicas de Estado expressou "preocupação" com uma reforma administrativa em meio à pandemia da Covid-19, não sendo possíveis audiências, reuniões e discussões. Ou seja, "sem qualquer diálogo com os servidores públicos, sociedade civil e entidades representativas do setor", "em nenhum momento houve diálogo ou consulta por parte do governo para compartilhamento de diagnósticos, alternativas ou caminhos da proposta."
Uma reforma administrativa precisa ser plural, participativa e inclusiva para que as lutas travadas nas discussões concretizem em mudanças que representem o anseio social de maneira a englobar a necessidade de melhorias com a valorização do que já funciona e dá certo.
Somente um Estado fortalecido é capaz de promover os outros objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil, que são garantir o desenvolvimento nacional; erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; e promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.
*Valdir Barranco é deputado sstadual, presidente do PT-MT e pré-candidato ao Senado