Política
Omissão dos EUA com futuro do planeta nos obriga a trabalhar dobrado, diz Marina Silva à BBC
Na capital vietnamita, Hanói, e em Tóquio, no Japão, a ministra integrou a comitiva do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT)

A quase 20 mil quilômetros do Acre, a ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, diz que se sente "em casa" no calor úmido e na vegetação do norte do Vietnã, um país que também conta com floresta tropical.
Na capital vietnamita, Hanói, e em Tóquio, no Japão, a ministra integrou a comitiva do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), que convidou as autoridades dos dois países para a Conferência das Nações Unidas sobre as Mudanças Climáticas de 2025, a COP30, que ocorrerá em novembro em Belém (Pará).
Ao fim de uma viagem marcada por discursos de Lula em defesa do multilateralismo, Marina disse à BBC News Brasil que a COP ganha muita importância "nesse contexto geopolítico tão difícil".
A ministra afirmou, ainda, que a postura de "omissão com o futuro do planeta" dos Estados Unidos obriga outros países, como o Brasil, a "trabalhar dobrado".
Sobre a aguardada decisão sobre a exploração de petróleo na margem equatorial, Marina voltou a dizer que será feita com rigor técnico e que "o Ibama nem facilita, nem dificulta".
A ministra concedeu entrevista à BBC News Brasil no jardim do hotel Sofitel Legend Metropole, onde estava hospedada a comitiva brasileira, poucas horas antes de embarcarem de volta a Brasília.
A seguir, leia os principais trechos da entrevista, editada por concisão e clareza.
BBC News Brasil - A COP 30 vai acontecer neste momento da geopolítica, em que o multilateralismo está ameaçado, como falou o próprio presidente. Como garantir que a COP não perca importância neste contexto e realmente conquiste avanços ambiciosos?
Marina Silva - Na verdade, a COP ganha muita importância, porque nesse contexto geopolítico tão difícil, em que os Estados Unidos saem do acordo de Paris, isso requer de países como Brasil, África do Sul e Índia, China, União Europeia, Reino Unido, todos os países que não têm essa visão negacionista, que façam esforço dobrado para fortalecer o multilateralismo, esforço dobrado para viabilizar meios de implementação, que além de estarmos alinhados para não ultrapassar 1,5°C de elevação da temperatura da Terra, temos que estar alinhados também com o balanço global feito antes da reunião dos Emirados Árabes Unidos, fazendo da COP30 a COP da implementação.
Implementação do que foi decidido lá nos Emirados Árabes, que é triplicar [energia] renovável, duplicar a eficiência energética, fazer a transição para o fim do uso de combustível fóssil, viabilizar os meios de implementação.
BBC News Brasil - A senhora disse que o contexto geopolítico aumenta a importância da COP30, dá força. Do outro lado, o que a senhora avalia que é o principal desafio?
Marina Silva - Tem um grande desafio de fortalecer o multilateralismo. Tem o grande desafio de liderar pelo exemplo, e é um prejuízo, sim, a saída dos Estados Unidos [do Acordo de Paris].
Eles são o segundo maior emissor, a maior potência econômica e tecnológica do mundo e, com a sua omissão com o futuro do planeta e a vida de todos nós, está nos obrigando a ter que trabalhar dobrado. E criando um prejuízo, porque à medida em que o conflito geopolítico em termos das guerras se agrava, mais recursos estão sendo drenados para a parte de segurança bélica, em lugar de mais recursos para segurança climática.
Em vez de fazer guerra contra a mudança do clima, a pobreza e o negacionismo, está se fazendo guerra uns contra os outros. Então, o desafio é que a gente possa sair dessa COP com o sentido de urgência da emergência climática, com muita determinação em trabalhar juntos, em cooperar.
O Brasil tem o compromisso de desmatamento zero até 2030, temos uma NDC [meta climática] ambiciosa, estamos trabalhando para ampliar cada vez mais a nossa matriz energética de base renovável, e nos dispondo a ajudar outros países a fazerem suas transições energéticas, porque o Brasil pode ser um grande supridor de energia limpa, um endereço para investimentos verdes, porque temos energia limpa. Não faz sentido produzir carro elétrico com matriz energética fóssil, então o Brasil pode ser esse lugar.
BBC News Brasil - O Brasil e esses outros países vão ter que trabalhar nesse para proteger o meio ambiente 'pelo' Estados Unidos?
Marina Silva - Não é pelos Estados Unidos, porque eles têm que fazer o dever de casa, e eu tenho certeza que a sociedade americana vai reagir a essa atitude negacionista do presidente Trump, porque nesse momento eles são os mais prejudicados.
São prejudicados com tufões que se agravam, com furacões, com incêndios, com situações extremas de seca, de tornados… Que não querem ver suas vidas e seus negócios sendo comprometidos em função de que o segundo maior emissor do mundo não quer contribuir para resolver um problema que ameaça a vida de todos nós, os empreendimentos de todos nós, a prosperidade de todos nós.

Crédito,Jemal Countess/Getty Images
BBC News Brasil - Há uma expectativa no Brasil de decisão sobre a exploração de petróleo na a área da margem equatorial. Quando a senhora espera que essa decisão saia?
Marina Silva - Essa decisão obedece o tempo da avaliação e das análises técnicas feitas pelo Ibama. O Ibama é uma autarquia, que tem autonomia para fazer o seu processo de licenciamento.
Obviamente que é um licenciamento altamente complexo, já teve três negativas, a Petrobras apresentou novos aportes, e o Ibama está concluindo a avaliação sobre o relatório técnico e, no tempo oportuno, de acordo com todo o rigor que a instituição tem, será feita uma manifestação.
BBC News Brasil - Estamos falando de uma semana, um mês, um ano? Com qual cenário a senhora trabalha?
Marina Silva - O Ibama vai seguir aquilo que é o seu calendário em termos técnicos. O Ibama tem no seu processo de licenciamento quase 4 mil empreendimentos.
Costumo dizer que o Ibama nem facilita, nem dificulta. O Ibama tenta dar agilidade aos processos sem a perda de qualidade, que é verificar o aspecto da conformidade ambiental dos empreendimentos, seja ele em relação à área de hidrovias, de rodovias, de ferrovias, ou de exploração de petróleo.
BBC News Brasil - Sobre isso, vimos o presidente Lula dizer no mês passado que a decisão pelo Ibama tá numa 'lenga-lenga', que o órgão parece estar contra o governo. Como a senhora ouviu essa declaração?
Marina Silva - O presidente disse que parece que o órgão está contra, é diferente de dizer que o órgão está contra.
A opinião pública nem sempre compreende que a Anvisa, o Ibama, eles têm responsabilidades técnicas de dar as licenças em conformidade com aquilo que prevê a legislação brasileira.
Obviamente, no caso da margem equatorial, como eu disse, é um empreendimento altamente complexo, de alto impacto ambiental, portanto, o Ibama tem que ter o tempo necessário para fazer a suas avaliações em cima dos dados e dos estudos que foram apresentados.
BBC News Brasil - A ex-ministra Izabella Teixeira falou em entrevista à BBC News Brasil que essa discussão sobre o licenciamento foi politizada de forma antecipada. A senhora concorda?
Marina Silva - No caso do Ibama e do Ministério do Meio Ambiente, nós tratamos tecnicamente. Se há algum debate político, é feito pelos políticos, pela dinâmica natural de um país democrático quando se trata de um empreendimento com essa complexidade.
E não é a primeira vez que você tem debate. Você teve debate em relação a Belo Monte, você teve debate em relação a outros empreendimentos igualmente complexos, [como a] transposição do rio São Francisco.
Na democracia, a sociedade tem o direito de debater. Caberá aos técnicos e às instituições públicas não se deixar influenciar por qualquer tipo de conjuntura política.

Crédito,Ricardo Stuckert / PR
BBC News Brasil - No ano passado, uma coisa que chamou muita atenção, tanto no Brasil quanto fora, foi como o Brasil ficou coberto por fumaça de incêndio. O que o governo aprendeu e o que o governo está fazendo para garantir que isso possa ser diferente nesse ano?
Marina Silva - O esforço maior que temos que fazer não é só o governo brasileiro, é o mundo inteiro. Nesse momento, temos incêndios no Chile, temos incêndios que foram assolando vários países do mundo, na Europa, nos Estados Unidos, no Canadá, em função do agravamento da mudança do clima.
Desde que o presidente Lula assumiu, reforçamos as equipes do Ibama, e só foi possível fazer o enfrentamento no ano passado porque conseguimos reduzir desmatamento na Amazônia, nos diferentes biomas, ampliamos as nossas equipes de combate ao fogo, conseguimos recursos extraordinários para fazer esse enfrentamento, trabalhamos conjuntamente com vários governos estaduais, mas infelizmente essa junção de incêndios criminosos com alta temperatura e, ao mesmo tempo, um processo de precipitação que cada vez mais vai se tornando escasso, tem criado uma situação de risco e perigo no mundo inteiro.
E, além das medidas que tem que se fazer para fazer a gestão do risco, o enfrentamento dessas situações, é fundamental combater a raiz do problema, que é diminuir a emissão de CO2, oriunda, sobretudo, de carvão, petróleo e gás.
As [emissões resultantes do desmatamento de] florestas respondem por 10% das emissões globais. Mesmo que a gente consiga zerar desmatamento, como é o nosso compromisso e estamos caminhando na direção de alcançar essa meta em 2030, se o mundo não reduzir suas emissões de CO2 em função do uso de carvão, petróleo e gás, as florestas serão igualmente destruídas.
BBC News Brasil - Durante a viagem ao Japão e ao Vietnã, o avanço mais evidente foi na agropecuária, com o anúncio da liberação da importação de carne brasileira no Vietnã. No que mais o Brasil avançou durante essa viagem, em termos de meio ambiente, e no que o Brasil poderia ter avançado mais?
Marina Silva - Foi uma reunião de trabalho muito profícua nas várias áreas que o governo está tratando – desde infraestrutura, agricultura, mudança do clima, e com o olhar muito focado também na COP 30.
O presidente Lula convidou as lideranças políticas aqui do Vietnã, tanto o presidente quanto o secretário-geral do partido, o primeiro-ministro, para que possam comparecer na COP 30 em Belém, e tratamos de questões relacionadas a como fazer o enfrentamento da mudança do clima na realidade de países em desenvolvimento, voltado sobretudo para ter NDC's [metas climáticas] que sejam ambiciosas, porque precisamos estar alinhados com o 1,5 °C, a questão do financiamento para a ação climática, e o reconhecimento de que é fundamental ter uma cooperação também voltada para a proteção dos ecossistemas marinhos.
O Brasil faz agora o seu planejamento espacial marinho, bem, e a gente pode aportar essa experiência aqui em relação ao Vietnã. Eles têm cerca de 3.400 km de zona costeira, e o Brasil tem uma extensão que é praticamente o dobro de tudo isso.
Também tratamos de temas como bioeconomia, porque aqui nós temos uma floresta tropical – inclusive a seringueira que é explorada aqui veio do Brasil, da Amazônia – e tratamos também de como fazer para que a nossa ação climática tenha financiamento, tanto financiamento público quanto privado e, nesse sentido, o Brasil tá ajudando a liderar a iniciativa de um fundo global para pagamento por serviços ecossistêmicos, pagando por hectare de floresta em pé. E isso vai beneficiar os 70 países que são detentores de florestas tropicais, inclusive o Vietnã.
BBC News Brasil - Tive a chance de acompanhar lá em Tóquio e aqui em Hanói algumas das reuniões e uma coisa que me chamou atenção foi que a senhora muitas vezes, se não era única, era uma das duas únicas mulheres em mesas com cerca de trinta autoridades dos dois países.
Marina Silva - Em todo o mundo, temos lutado para ampliar a participação das mulheres na liderança, seja dos governos, das empresas, dentro da academia ou até mesmo dentro das redações dos jornais.
E, infelizmente, ainda que sejamos a maior parte da população – no caso do Brasil, com certeza –, ainda não temos a representação na quantidade que faz jus à nossa qualidade em termos político, acadêmico, de liderança empresarial, em todas as frentes. Mas as mulheres participam desses fóruns com a clareza de que nós estamos ali não para sermos a exceção. Nós queremos ser a regra.
BBC News Brasil - Nos dois países, muitas vezes na mesa das autoridades do outro lado só havia homens. Isso é mais desafiador de alguma forma?
Marina Silva - É um desafio civilizatório. Em algumas regiões do mundo, essa situação é mais dramática em relação à não participação das mulheres em diferentes oportunidades das sociedades em que elas vivem, mas temos que trabalhar com muito afinco para superar essas dificuldades.
Por isso que no debate climático é fundamental ouvir as mulheres e buscar olhar para a questão da justiça climática associada à injustiça climática de gênero, além de raça e outras situações em que agravam o problema. Olhar para o enfrentamento da questão da pobreza e a busca por igualdade de oportunidade para que possamos desenvolver e exercitar nossas capacidades.
BBC News Brasil - As reuniões aqui na Ásia aconteceram nesse contexto do comércio exterior afetado pelo tarifaço dos Estados Unidos. A senhora sentiu nessas reuniões um receio de que o Trump anuncie novas medidas? Como isso permeou as discussões?
Marina Silva - O que senti foi um espírito de fortalecimento dos países em desenvolvimento, de cada vez mais estarem próximos, de fortalecer as relações comerciais, evitando essa guerra tarifária, que não é boa para ninguém.
No curto prazo, pode até parecer que cria alguma vantagem para quem tá buscando esse caminho, mas no médio e longo prazo se revelará um grave problema, inclusive do ponto de vista dos interesses até mesmo dos Estados Unidos. E quanto mais formos capazes de encontrar caminhos, da cooperação, do fortalecimento do multilateralismo, mais as respostas serão duradouras.
Duradouras do ponto de vista econômico, duradouras do ponto de vista comercial, duradouras do ponto de vista do enfrentamento da crise ambiental e climática.

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BBC News Brasil - Voltando para o Brasil, a senhora tem reunião dos ministros de meio ambiente do Brics nesta semana. O que espera de definição nesse encontro?
Marina Silva - Que a gente possa debater os temas que nos propusemos no grupo de trabalho específico do segmento ministerial de alto nível da área de meio ambiente. Vamos debater temas, como é o caso da questão do combate à desertificação, degradação de terras e secas.
Vamos fazer o debate também em relação a serviços ecossistêmicos, e aí nós temos uma contribuição a aportar, que é o debate que o Brasil vem fazendo sobre criar um mecanismo global de financiamento por área de floresta protegida, e temos também a questão do combate à poluição plástica, sobretudo pensando a preservação dos oceanos.
E, obviamente, a agenda climática, buscando cada vez mais fazer uma ponte entre esses temas e a COP 30.
BBC News Brasil - Os desastres naturais que a senhora citou nos Estados Unidos também estão acontecendo, de forma diferentes, no Brasil e em diversas outras partes do mundo. A senhora, que atua há tanto tempo na área, acha que a população em geral tá tendo uma 'virada' por causa desses problemas que tão afetando as pessoas muito diretamente?
Marina Silva - Uma grande parte da população, sim. As pessoas estão vivendo nesse momento o que chamo de pedagogia da dor, pedagogia do luto, pedagogia do prejuízo econômico, social, ambiental da vida das pessoas.
Fenômenos naturais que aconteciam a cada 50, 70 anos, estão acontecendo a cada 10 anos, 9 anos. No Rio Grande do Sul, aconteceu seguidamente em três anos.
Na Amazônia, temos sucessivos períodos de seca, e isso está potencializando inclusive os incêndios que estão acontecendo no mundo, as ondas de calor, as cheias.
Só em relação às ondas de calor, são mais de 146 mil pessoas que morrem por ano em todo o mundo em função de esse problema não estar sendo encarado como deveria.
As pessoas idosas e as crianças são as que pagam o preço mais alto.
No Brasil, com as ondas de calor, tivemos cerca de 20 milhões de crianças, adolescentes e professores em sala de aula que não estão climatizadas.
O que está fazendo com que eu, o ministro Camilo [Santana, da Educação], o ministro Padilha, da Saúde, estaremos investindo muito rapidamente no processo de climatização dessas escolas. Não só colocar ar-condicionado, mas processo de arborização, de uma arquitetura que promova mais conforto térmico para as nossas crianças, jovens e adolescentes.