Política
Voto de Fux abre caminho para defesa de Bolsonaro anular processo?
Segundo o ministro, o caso deveria ser analisado na primeira instância da Justiça comum

O ministro Luiz Fux, do Supremo Tribunal Federal (STF), defendeu a anulação do processo que julga o ex-presidente Jair Bolsonaro e outros réus, questionando a competência do STF para conduzir a ação.
Para Fux, Bolsonaro não tem foro privilegiado — o direito de ser julgado diretamente pelo STF devido ao cargo que ocupava — porque não ocupa mais cargo com prerrogativa de ser julgado no Supremo. Segundo o ministro, o caso deveria ser analisado na primeira instância da Justiça comum.
"A prerrogativa de foro deixa de existir quando os cargos foram encerrados antes da ação (penal)", afirmou o ministro, explicando que, como os réus não ocupavam mais os cargos públicos no momento em que o processo foi iniciado, o Supremo não teria competência para julgá-los.
"Estamos diante de uma incompetência absoluta" para julgar a ação. Fux defende, portanto, "anular o processo por incompetência" do Supremo.
A maioria dos ministros da Primeira Turma do STF discordou de Fux quando esse tema foi debatido na chegada do processo ao colegiado. Para eles, a prerrogativa de foro continua para Bolsonaro porque os crimes imputados teriam sido cometidos quando ele ainda era presidente e teriam ligação direta com a função ele exercia.
O ministro Fux também criticou a decisão de encaminhar o caso para a Primeira Turma, em vez de mantê-lo no plenário.
Segundo ele, ao reduzir a análise para apenas alguns ministros, estariam sendo silenciadas vozes importantes que poderiam influenciar a avaliação dos fatos.
"A Constituição Federal não se refere às Turmas, ela se refere ao plenário, e seria ideal que tudo fosse julgado pelo plenário do STF com a racionalidade funcional", disse. Fux afirmou ainda que, como os demais casos envolvendo os fatos foram julgados em plenário, o restante do julgamento deveria seguir a mesma lógica. "Ou o processo deve ir para o plenário ou tem de descer para a primeira instância", completou.
Já a maioria dos ministros da Primeira Turma entende que, com base em resolução de 2023 do tribunal, apenas presidentes em exercício devem ser julgados diretamente no plenário. Como Bolsonaro não está mais no cargo, ele deveria, segundo esses ministros, ser julgado pela turma. E como o relator do processo, Alexandre de Moraes, é da Primeira Turma do STF, o caso de Bolsonaro foi para lá.
Especialistas ouvidos pela BBC News Brasil apontam que o voto de Luiz Fux pode abrir caminho para a defesa de Bolsonaro tentar anular o processo, mas apenas se mais algum ministro acompanhar a posição de Fux. Faltam votar os ministros Cármen Lúcia e Cristiano Zanin.
"O voto do ministro Fux, se for o único nesse sentido, não altera o resultado do julgamento. Para que a defesa pudesse recorrer ao plenário por meio de embargos de divergência — recurso que busca fazer com que o colegiado analise a questão — seriam necessários pelo menos dois votos no mesmo sentido", explica Pierpaolo Bottini, advogado e professor de direito penal da USP.
A advogada criminalista Juliana Bertholdi, professora na pós-graduação da PUC do Paraná, reforça que, além de outro ministro acompanhar Fux, a defesa precisaria apresentar a argumentação durante a sustentação oral para tentar levar o processo ao plenário.
"O momento para a defesa se manifestar sobre nulidade seria durante a sustentação oral. Para ter algum caminho, seria necessário que outro ministro acompanhasse o Fux, abrindo possibilidade de embargos infringentes e levando o processo ao plenário", explica.
Para Clara Borges, professora do Departamento de Direito Penal e Processual Penal da UFPR (Universidade Federal do Paraná), julgamentos feitos apenas pela turma podem beneficiar a defesa. "Isso porque se houver embargos infringentes [um recurso que leva a discussão para o plenário do STF] o colegiado maior poderá reanalisar o caso. Para que isso aconteça, são necessários pelo menos dois votos favoráveis ao réu".

Crédito,Gustavo Moreno/STF
Julgamento deveria ou não ser feito pelo STF?
O tema do foro privilegiado e da competência judicial tem gerado debates sobre por que Bolsonaro está sendo julgado diretamente no STF, enquanto o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva foi julgados desde a primeira instância no caso da compra e reforma de um apartamento em Guarujá, no litoral de São Paulo.
De acordo com Bottini, o regimento interno do Supremo permite que o relator envie um caso ao plenário quando considera que há relevância jurídica na discussão. No caso de Bolsonaro, o relator entendeu que, apesar da grande repercussão política, os temas jurídicos já foram debatidos pelo plenário anteriormente. Por isso, segundo ele, não seria necessário julgar o caso novamente nesse colegiado.
Na avaliação de Bertholdi, o termo "foro privilegiado" não seria o mais adequado: "Acho que o melhor nome seria 'prerrogativa de função', porque não necessariamente há um privilégio. Na prática, essa questão favorece a defesa dos réus, pois o julgamento correu muito rápido. Mais do que nunca, ficou claro que não temos um foro privilegiado, mas sim uma prerrogativa de função."
Ela detalha que existem diferentes formas de interpretar a prerrogativa de foro.
"Pode estar ligada à pessoa ou ao cargo. Se estiver ligada à pessoa, acompanha mesmo depois que o indivíduo deixa o cargo. Já se estiver ligada ao cargo, ela acaba automaticamente quando o mandato termina."
Há ainda, explica Bertholdi, uma terceira interpretação: mesmo que a pessoa não ocupe mais o cargo, se o crime foi cometido enquanto ela exercia a função, o foro por prerrogativa de função ainda se aplicaria, garantindo que o julgamento seja feito na instância competente para esse tipo de caso.
"A competência do STF é inquestionável, porque, de acordo com a Constituição e o princípio do juiz natural, a competência é fixada no momento da consumação do crime. No caso do julgamento de Bolsonaro, isso teria ocorrido durante as eleições, com a obstrução da votação. Mesmo que depois a pessoa deixe o cargo, ela continua a ser julgada pelo STF. Esse tem sido o posicionamento da Corte", acrescenta Clara Borges.
Prevalece atualmente no Supremo o entendimento de que o foro privilegiado permanece mesmo após a autoridade deixar o cargo, quando os crimes julgados tiverem sido cometidos durante o mandato e tiverem ligação com a função. Esse entendimento foi estabelecido para evitar que autoridades renunciassem aos mandatos penas para escapar de serem julgados no Supremo.
Bertholdi se alinha a essa posição: "Entendo que, como os acusados cometeram os delitos enquanto detinham prerrogativa de foro, deveriam responder no STF."
Sobre a argumentação de Fux, a advogada reconhece que há racionalidade jurídica, mas não considera o melhor fundamento. "Entendo que, a partir do momento em que o crime é cometido durante o exercício do cargo, deve haver a prerrogativa de função acompanhando o agente."
Quanto às chances de a defesa de Bolsonaro conseguir anular o processo com base no voto de Fux, Bertholdi avalia que seria necessário o apoio de outro ministro para abrir caminho a embargos infringentes e levar o processo ao plenário.
Ela destaca ainda que a posição de Fux não é isolada, mas o desfecho do caso continua incerto.
"Um voto que chama atenção é o da ministra Carmen Lúcia. Na ADI 2797, ela afirmou que o foro por prerrogativa de função deve ser interpretado de acordo com princípios republicanos e democráticos, restringindo a prerrogativa apenas ao período em que a pessoa está exercendo o cargo. [Essa posição estaria alinhada à do ministro Fux.] Durante o julgamento atual, a posição da ministra parece convergir com o voto do ministro Alexandre de Moraes, o que mantém o desfecho ainda incerto."

Crédito,Gustavo Moreno/STF
Revisões do julgamento no futuro?
O voto de Fux sobre a anulação do processo e a discussão sobre foro privilegiado e competência abrem espaço para reflexões sobre o que pode acontecer mais adiante. Especialistas lembram que, diante de divergências jurídicas e da composição variável do Supremo, decisões do caso Bolsonaro poderiam ser contestadas ou até mesmo anuladas no futuro.
"Eu acredito que sim. Nossa jurisprudência é muito instável, sobretudo da Suprema Corte. Muitas vezes a mesma composição do Supremo dá várias interpretações diferentes aos mesmos dispositivos legais e constitucionais", afirmou a advogada Maíra Beauchamp Salomi, do escritório Salomi Advocacia Criminal e vice-presidente da Comissão de Estudos de Direito Penal do Instituto dos Advogados de São Paulo, em entrevista publicada no início de setembro.
Por outro lado, Salomi ressalta que, como a decisão está sendo tomada pelo colegiado mais graduado do país, é mais difícil que haja uma revisão profunda do resultado agora.
Juristas também destacam que o julgamento de Bolsonaro ocorre em condições excepcionais, com ataques institucionais internos e pressões externas, como sanções internacionais e medidas de governos estrangeiros. "O Supremo mais acertou do que errou. Temos que ter uma visão um pouco sistêmica", afirma Salomi.
Ela acrescenta: "Não podemos nos esquecer que tudo isso é uma briga institucional. Se o Supremo não corre, estamos vendo o que está acontecendo no Congresso com a PEC da Blindagem. Tivemos tarifaço, estamos tendo a pressão de uma grande potência atacando os nossos ministros. E isso é inequívoco."
Segundo a advogada, o STF precisa equilibrar cautela e rigor: "O Supremo fica em uma situação muito delicada entre seguir esse processo da maneira adequada, de modo a não trazer uma excepcionalidade para o caso, mas também não pode relaxar em relação ao julgamento, porque temos ataques de outras ordens."