Brasil

Marcados por tiros em Cid Gomes, grevistas do Ceará tentam angariar apoio e se livrar de punições

01/03/2020

Dez dias depois de o senador Cid Gomes ser baleado ao tentar entrar com uma retroescavadeira em um batalhão de policiais aquartelados em Sobral, os grevistas do Ceará tentam angariar apoio popular e sair da paralisação sem punições. O foco da batalha saiu dos quartéis —ainda há três ocupados em Sobral, Caucaia e Fortaleza, assim como uma escola da capital, tomada por eles neste final de semana— e passou para a esfera política. O governador Camilo Santana (PT) tentou aprovar neste sábado às pressas uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC) estadual que proíbe a anistia dos policiais amotinados, a principal reivindicação atual do grupo para colocar um fim ao movimento. Mas o deputado opositor André Fernandes (PSL), apoiador do movimento, pediu vistas e a votação acabou adiada.

 

O movimento já dura 13 dias e repensa estratégias para tentar angariar apoio popular. Os grevistas chegaram a gravar vídeos distribuindo alimentos e tentam explicar à população suas reivindicações, defendendo-as como legítimas. As marcas do episódio que levaram ao violento atrito com Cid Gomes, entretanto, ainda são profundas e abalaram um movimento que já não tinha grande apoio popular.

 

Naquele 19 de fevereiro, policiais encapuzados obrigaram os comerciantes a fecharem suas lojas e transformaram Sobral em uma cidade-fantasma. “Aqui sempre aconteceram coisas graúdas, mas eu nunca tinha visto a cidade mudar como aquele dia”, conta Francisco Belarmino de Lima, de 56 anos, dono de um bar na mesma rua do batalhão ocupado, no centro da cidade. Ele se preparava para ir para casa quando as sirenes da polícia começaram a soar com insistência. Pelo menos três carros oficiais circulavam por várias ruas do centro. Deles, homens encapuzados gesticulavam nervosos para que lojistas fechassem as portas. “Sobral parecia uma cidade em guerra. Vivemos uma hora de pânico, mas pensamos que era um arrastão de bandidos. Só depois entendemos que era a própria polícia, quando escutamos as notícias pela rádio”, conta uma mulher que preferiu não se identificar.

 

O toque de silêncio imposto pelos agentes levou o senador, da família política mais tradicional da cidade, a sair pelas ruas da cidade dirigindo uma retroescavadeira. Convidava a população a segui-lo até o batalhão da PM, onde chegou pouco depois das 17h e deu um ultimato aos policiais. Ninguém se moveu. Depois de discutir com os manifestantes, arremeteu o trator contra as grades do portão que o separava dos grevistas e contra os próprios policiais. Acabou levando dois tiros no tórax. “Não imaginamos que o senador ia avançar contra nós. Ficamos na frente do portão e achávamos que assim ele iria se retirar. Mas tudo saiu do controle”, conta um grevista de pouco mais de 20 anos, com o rosto coberto por uma balaclava. Ele argumenta que quem atirou o fez para tentar controlar a situação, não para matar. E diz que autores dos disparos agiram em legítima defesa.

 

No dia seguinte, a cidade retomou a rotina. As lojas voltaram a funcionar normalmente, embora alguns comerciantes ainda trabalhassem com medo. E o presidente Jair Bolsonaro enviou o Exército a pedido do Governo estadual para auxiliar as forças de segurança, mas, com a situação em Sobral sob controle, somente agentes das polícias municipal e estadual permanecem na cidade. Nas ruas, poucos carros da PM circulam. “Quase não vemos policiais. Nem os encapuzados, nem os que estão trabalhando. Venho trabalhar com medo todo dia, mas a cidade leva a vida normal”, afirma a vendedora Francisca Alves.

 

As imagens do episódio viralizaram nas redes sociais e o movimento, que já não tinha apoio popular, se viu ainda mais alijado. A adesão dos policiais ao movimento caiu. E os que se mantiveram em greve deixaram o batalhão do centro de Sobral e ocuparam outro na periferia da cidade. A ideia era aumentar a reclusão para evitar que fossem identificados. Eles se dividem em escalas para manter a unidade sempre ocupada, mas há relatos de que alguns trabalham durante o dia e voltam para dormir por medo de serem punidos. Mais de 200 policiais já foram afastados por motim no Estado. As deliberações sobre a greve agora estão aglutinadas em Fortaleza.

 

O movimento

Os policiais estão descontentes com seus salários e suas escalas de trabalho. O governador Camilo Santana (PT) havia prometido acatar algumas das reivindicações dos policiais para tentar aplacar os protestos. Embora algumas associações ligadas aos policiais tenham aceitado chegar a um acordo, parte da base o rejeitou e se rebelou. Desde então, um clima de insegurança se apoderou do Estado, que já contabiliza 220 homicídios desde o início da paralisação— uma média diária que é o triplo da observada no mesmo período do ano passado. O pânico também se alastra pelas redes sociais, onde se compartilha o tempo todo notícias falsas sobre crimes.

 

O conflito em Sobral foi o auge da escalada de tensão pela greve policial, uma situação que segue latente no Ceará. Embora a Constituição brasileira proíba a greve de policiais militares, pelo caráter essencial de sua atividade e por portarem armas, estes movimentos são cíclicos no país. Há oito anos o Ceará viveu uma paralisação que impulsionou vários PMs a cargos de vereadores e deputados. Aquela greve durou seis dias, e os participantes foram anistiados.

 

A categoria tem uma representatividade mais forte nos espaços de poder, mas esses líderes já não têm tanta centralidade na tomada de decisões. Agem sob seus interesses eleitorais (neste ano há eleições municipais), dialogando com um setor mais radicalizado, que continua amotinado em pelo menos três quartéis. São principalmente jovens soldados que não participaram da greve anterior e que veem o discurso de pulso firme do ultradireitista Bolsonaro como a saída para a segurança pública. O movimento não é homogêneo, mas policiais ouvidos pelo EL PAÍS interpretam a ausência de críticas públicas por parte do presidente como apoio indireto. “Se fosse qualquer outro presidente no poder, seríamos tratados como criminosos. O presidente não solucionou nosso problema porque o sistema não lhe permite. O Governo do Estado tem que resolver”, diz um dos manifestantes de Sobral.

Desde o início da greve, em 18 de fevereiro, o Governo Federal mandou mais de 2.000 agentes do Exército para o Estado a pedido do governador Camilo Santana. Eles devem auxiliar na segurança até a próxima sexta-feira porque o prazo, que terminou no dia 28 de março, foi renovado. Antes, o presidente havia cogitado retirá-los, o que soou à parte da opinião pública como uma aprovação indireta à greve. No batalhão de Sobral, os manifestantes também interpretaram o fato como um aceno positivo de Bolsonaro. Uma live feita pelo presidente em que ele diz que cabe a Camilo resolver a situação foi compartilhada exaustivamente nos grupos de WhatsApp policiais do Ceará. “Sabemos que ele faz o que pode porque, como presidente, não pode dizer que está de acordo com um movimento ilegal”, afirma um policial grevista. Representantes do Congresso e do Supremo Tribunal Federal agiram nos bastidores para garantir que as tropas permanecessem ali.

 

No começo da sua carreira militar, o próprio Bolsonaro também liderou um motim. Foi assim que conseguiu o apoio das forças policiais e criou uma base que ajudou a mantê-lo por 30 anos no Congresso Nacional, onde sempre defendeu reivindicações da categoria. A segurança pública foi uma de suas principais bandeiras da campanha presidencial. Nesse contexto, Bolsonaro é enérgico ao defender o excludente de ilicitude, que pode considerar atos de policiais em serviço como legítima defesa. A proposta é vista por especialistas como uma licença para matar. Suas ideias são latentes no setor mais radicalizado dos policiais amotinados cearenses. “Nossa geração sabe que só se faz segurança se pudermos disparar. A criminalidade está imensa, mas usamos a arma em último recurso”, defende um policial amotinado em Sobral.

 

Uma comissão com representantes dos três poderes (Executivo, Legislativo e Judiciário) e dos policiais tenta negociar uma saída para a crise. Os manifestantes pedem anistia administrativa, algo que o Governo do Estado vem tratando como inegociável. É este agora o grande ponto de inflexão da crise. E os movimentos dos últimos dias ampliaram ainda mais a tensão. O Ministério Público começou a investigar os policiais amotinados, primeiro passo para responsabilizá-los criminalmente pelos seus atos. Neste momento em que governadores de outros estados temem vivenciar crise semelhante pela insatisfação de seus policiais, a condução da situação no Ceará ganha os holofotes.