Política
'Só bolsonarismo entendeu importância das eleições para o Congresso', diz cientista política
Na avaliação da pesquisadora, apenas o bolsonarismo compreendeu a centralidade da eleição legislativa. "Quem não entendeu ainda foram outros campos ideológicos."
A cena de jornalistas e parlamentares agredidos na última terça-feira (9/12) na Câmara dos Deputados assustou a cientista política Beatriz Rey, doutora em Ciência Política pela Syracuse University e pesquisadora no Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa.
Agentes do Departamento de Polícia Legislativa tentaram a remoção, à força, do deputado federal Glauber Braga (PSOL-RJ) da Mesa Diretora da Casa. Ele ocupava a cadeira do presidente em protesto contra a tentativa de cassação de seu mandato.
A Associação Brasileira de Imprensa anunciou que vai acionar a Procuradoria-Geral da República para investigar um possível crime de responsabilidade do presidente da Casa, Hugo Motta (Republicanos-PB).
A pesquisadora, que há 15 anos estuda o fortalecimento do Congresso e prepara um livro sobre a presidência da Câmara, afirma que o tumulto expõe um processo mais profundo.
"O que chamo de desinstitucionalização da Câmara ocorre justamente quando o Congresso está imponderado, causando transtorno ao sistema político", disse. "Mas isso não começou agora."
Para Rey, o cenário é agravado pelo acirramento da tensão entre Legislativo e Supremo Tribunal Federal (STF). A aprovação, na madrugada de 10 de dezembro, do projeto que altera a dosimetria aplicada aos crimes de tentativa de golpe de Estado, é um exemplo.
Outro ponto de atrito é o caso de Carla Zambelli (PL-SP).
A Primeira Turma do Supremo decidiu, por unanimidade, confirmar a ordem do ministro Alexandre de Moraes que determinou a perda automática do mandato da deputada — que anulou a decisão de quinta-feira (11/12) da Câmara, que havia optado por mantê-la no cargo, apesar da condenação criminal.
Ela renunciou ao cargo neste domingo (13/12).
"O caso da não cassação de Zambelli é um exemplo primoroso de como a Câmara não está cumprindo seu papel. Ela está perdendo a capacidade de se autogovernar", afirmou.
Ela também liga essa dinâmica à disputa de 2026. Na avaliação da pesquisadora, apenas o bolsonarismo compreendeu a centralidade da eleição legislativa. "Quem não entendeu ainda foram outros campos ideológicos."
Abaixo, confira a entrevista.

Crédito,Reprodução/Instagram/@naia.dandrea_arte
BBC News Brasil – Você publicou que as imagens de violência da Polícia Legislativa na semana passada, que agrediu jornalistas e removeu o deputado federal Glauber Braga à força do plenário, não é um episódio isolado, mas sintoma de um processo profundo de desinstitucionalização da Câmara. O que significa essa desinstitucionalização?
Beatriz Rey – Esse termo, na verdade, quem usou primeiro foi a [a cientista política] Magna Inácio. Eu já tinha isso na cabeça, sem dar ao fenômeno o nome de desinstitucionalização. E, já há algum tempo — eu diria que nos últimos quatro anos — vejo esse fortalecimento se dando de maneira institucionalizada em um sentido, e desinstitucionalizada em outro.
Por exemplo: quando pensamos que o Congresso vem se tornando um ator cada vez mais importante na proposição e aprovação de normas jurídicas, isso é um processo institucionalizado.
Os parlamentares propõem projetos de lei e os conduzem ao longo do processo legislativo. Eles têm mais condições de fazer isso ao longo dos anos, a ponto de, em 2009, termos o primeiro ano em que o Congresso aprova mais leis e leis complementares de autoria parlamentar do que do Executivo.
Esse é um processo institucionalizado, porque tudo ocorre nas instituições formais: apresentação de projetos de lei, decisão coletiva de aprovação no plenário ou nas comissões.
Outro processo institucionalizado é a profissionalização da consultoria legislativa. Temos cientistas políticos que estudam isso e mostram que, ao longo dos anos, ela se profissionaliza.
O que chamo de desinstitucionalização da Câmara ocorre justamente quando o Congresso está imponderado, causando transtorno ao sistema político e ficou evidente nos episódios da semana passada. Mas o processo não começou agora; os últimos dias apenas revelaram a parte visível do problema.
Quando o presidente da Câmara, fortalecido politicamente, mas sem controle sobre o próprio plenário, decide recorrer à força; quando um deputado — a meu ver equivocadamente — sobe na Mesa Diretora e se recusa a descer; e quando, diante dessa perda de controle, o presidente entende que precisa reagir e escolhe a violência como saída… Sempre que a força vira instrumento para resolver conflitos sociais, é sinal de que as instituições falharam em cumprir seu papel.
Foi a primeira vez que me senti tão frustrada, porque nunca vi uma cena assim: a Polícia Legislativa sendo acionada para tirar um deputado do plenário, para retirar jornalistas, policiais socando repórteres.
É a volta, de certa maneira, ao estado de natureza de Hobbes. Saímos do contrato social criado para mediar relações sociais e voltamos à violência.
BBC News Brasil – Também foi uma semana marcada pela tensão entre STF e Câmara: o PL da dosimetria e a não cassação do mandato de Carla Zambelli contrariando decisões da Corte. Como você avalia essa tensão?
Rey – Quando a Câmara se recusa a fazer o papel que lhe cabe — cassar o mandato da deputada Carla Zambelli — outro ator terá de aparecer e fazer o que ela não fez.
Li o relato de um deputado muito frustrado com o presidente da Câmara, dizendo que bastaria o Motta cassar o mandato da Zambelli por faltas, como espero que seja feito em relação a Eduardo Bolsonaro e Alexandre Ramagem.
Ou seja, não precisaria ter sido discutida a cassação naquele âmbito: bastaria uma cassação por faltas. Foi uma opção do Motta agir como agiu.
Ele é um presidente incapaz de costurar acordos antes da votação — algo que Arthur Lira fazia muito bem — e deixou que o mandato não fosse cassado. Quando isso acontece, e lembrando que Carla Zambelli foi condenada pelo STF, o Supremo é obrigado a agir.
E isso inaugura mais um capítulo da crise entre os poderes. Não é a primeira vez. Continuaremos vendo isso enquanto cada poder não fizer sua parte.
O caso da não cassação de Zambelli é um exemplo primoroso de como a Câmara não está cumprindo seu papel. Ela está perdendo a capacidade de se autogovernar. E isso fica ainda mais evidente com um presidente como Hugo Motta.

Crédito,Bruno Spada/Câmara dos Deputados
BBC News Brasil – Hugo Motta e Arthur Lira têm perfis bastantes diferentes. Qual o impacto disso na Câmara?
Rey – Essa pergunta é interessante porque tenho certeza de que muitos colegas cientistas políticos vão estranhar discutirmos atributos de liderança — geralmente não modelamos isso, é algo muito particular de cada parlamentar. Mas começamos a observar padrões.
Arthur Lira era muito centralizador, e isso ouvi de muitos deputados. Estou trabalhando em um livro sobre isso, conversando com parlamentares e ex-presidentes da Câmara. Lira era centralizador e truculento. Tratava deputados no dia a dia com gritos. Tinha um poder coercitivo muito grande e também o respeito dos pares. Em raros momentos descumpriu acordos; em geral, cumpria mais do que, por exemplo, o Hugo Motta.
Ele tinha controle do plenário, baseado no respeito dos pares e na truculência. Quando colocava algo para votar, já sabia o efeito prático. Não levaria a plenário algo cujo resultado não dominasse.
Isso não acontece com Motta. Ele frequentemente muda o que ele mesmo decidiu. Não tem respeito dos pares, em parte por não ter palavra. Mas é mais aberto, menos autoritário.
Em tese, esperaríamos isso de um presidente da Câmara: mais abertura, menos autoritarismo. Na gestão Lira, sequer tínhamos acesso ao que acontecia no Colégio de Líderes. Agora temos com Motta.
Mas vem o lado ruim: a falta total de controle do plenário e dos deputados; falta de prestígio; falta de comando. Lembro do caso Rodrigo Maia: ele não era truculento, mas tinha respeito dos pares — algo que falta a Motta.
O presidente da Câmara precisa ter controle do plenário. A fonte desse controle varia. No caso de Hugo Motta, ele não é autoritário nem respeitado. Está numa situação muito complicada.
BBC News Brasil – Parlamentares governistas disseram que Hugo Motta colocou o PL da dosimetria em votação pela demora no pagamento das emendas. E a Polícia Federal apontou indícios de que o "orçamento secreto" ainda existe. Como isso entra neste cenário?
Rey – A questão das emendas é outro sintoma da desinstitucionalização. Se a votação está atrelada ao atraso nas emendas, então elas não estão cumprindo sua função.
A função óbvia é ajudar o presidente a formar base, mas isso não está acontecendo porque o governo terá dificuldade de construir base legislativa quando o legislador mediano está muito distante da média ideológica do governo Lula. Sempre será difícil.
As emendas têm papel na construção de base, mas não estão sendo usadas para isso, e sim para votações específicas, barganhas, inclusive em temas de altíssima relevância, como a responsabilização de quem atentou contra a democracia.
O jornal O Globo mostrou conversas entre parlamentares mostrando a relação explícita entre emendas e a votação. Quem está pressionando por essas emendas? Para mim, a questão central é o Centrão. É o Centrão que tem essa sede por poder orçamentário, especialmente pelas emendas.
A votação da dosimetria aconteceu pelas emendas, em parte, mas também porque o Centrão não aceita o nome de Flávio Bolsonaro como candidato. O Centrão atuou nas duas esferas: quer controlar quem será candidato à Presidência, nem que seja indicando um vice, e quer continuar tendo acesso às emendas.
Os parlamentares têm direito a acessar as emendas. Mas o modo como estão sendo usadas hoje, elas estão servindo apenas para estancar sangria. Isso sem falar na questão de transparência ou legalidade.
BBC News Brasil – Esse era nosso próximo ponto. Há tensão do Centrão com a pré-candidatura de Flávio Bolsonaro. E também há dúvidas sobre como fica a relação do Centrão com Lula. O Centrão está em atrito com Lula e com o bolsonarismo?
Rey – Acho cedo para afirmar. Vejo um afastamento do Centrão em relação à família Bolsonaro, e parte do que vimos esta semana vem disso: a tentativa de buscar outro nome. Ontem saiu a notícia de que Gilberto Kassab deixaria o governo de São Paulo nas próximas semanas; hoje cedo, já há notícia de que tenta articular um nome com Ratinho Júnior e Zema.
Ainda não temos evidência empírica de ideologização do Centrão. Alguns pesquisadores, como Marcos Nobre, defendem que houve; eu ainda não vi evidência científica disso.
Ideologizado ou não, o Centrão está imponderado. E aqui falo de PP, PSD, União Brasil — não daquela configuração antiga com MDB. Esses partidos querem controle sobre o processo eleitoral que começa no próximo ano.
É cedo para saber se vão fechar com o governo ou com Flávio Bolsonaro. Vejo um afastamento de Bolsonaro e uma busca por alternativa. Há também a questão de Tarcísio de Freitas em São Paulo — não me surpreenderia se ele fosse candidato com um vice escolhido pelo Centrão.
A estratégia de Flávio Bolsonaro fez sentido para ele: pautou a agenda da família. A dosimetria estava natimorta até terça-feira [9 de dezembro]; de repente, o clima mudou completamente.
Mas essa candidatura esbarra no Centrão. Não é à toa que, no domingo, ele já se reúne com Valdemar Costa Neto, Rogério Marinho, Antônio Rueda e Ciro Nogueira para costurar 2026. Mas é cedo, ainda tem muita água para rolar debaixo da ponte.
BBC News Brasil – Quem são os grandes nomes do Centrão hoje, pré-2026?
Rey – Tarcísio é um nome de interesse do Centrão. Ratinho Júnior e Romeu Zema também. Algumas pessoas citam Ronaldo Caiado. A candidatura do Flávio fez emergir governadores com mais viabilidade para 2026. Isso já aparece. A notícia sobre Kassab articulando uma chapa Ratinho Júnior–Zema vai nessa linha.
Flávio pautou a eleição antes da hora. Ao anunciar-se candidato, fez os demais atores se moverem. Não dá para analisar o movimento de um ator sem analisar o movimento dos outros. Tudo o que Bolsonaro pensa depende do movimento do Centrão, do governo, e assim por diante. O fim do ano será atribulado para quem mira 2026.
BBC News Brasil – Sobre a decisão do ministro Moraes em relação a Zambelli, o deputado federal Nikolas Ferreira disse que isso mostraria uma "ditadura" do STF e ironizou que seria "melhor fechar o Congresso". Como você avalia esse argumento?
Rey – O simples fato de ele poder falar isso mostra que não há ditadura. Se houvesse uma ditadura, ele nem poderia se expressar. Se fosse "ditadura da toga", alguém do STF o silenciaria.
O que existe é um desajuste na relação entre os três poderes. O caminho é resolver esse desajuste — nunca fechar o Congresso.
Há crise entre os poderes? Há instabilidade, sim. Mais uma vez: porque cada poder não está cumprindo o papel que lhe cabe. Quando isso acontece, outro poder entra e faz o que não deveria ter que fazer.
No caso da Zambelli: como a Câmara não atuou, o STF atuou. Isso está acontecendo repetidamente.
Não sei se a Constituição dá conta disso. A própria Constituição está sendo usada para movimentar interesses de cada poder. Exemplo: emendas impositivas, distribuição igualitária das individuais e de bancada — tudo isso foi constitucionalizado em 2015 e 2019. A Constituição está sendo remexida para dar conta dessas mudanças no balanço de poder.
Não estou dizendo que precisamos de uma nova Constituinte. Mas precisamos de uma conversa séria entre os três poderes, e não aquela conversa patética que vimos quando aprovaram a lei complementar para tentar melhorar a questão das emendas — uma lei cheia de buracos.
É preciso sentar e resolver, pensando em 2026 e além.
BBC News Brasil – E qual o principal desafio para o Congresso, pensando nas eleições de 2026?
Rey – O que vimos na Câmara esta semana acontece porque elegemos esses parlamentares. Falta consciência no país sobre a importância da eleição legislativa. Precisamos dedicar um tempo para entender em quem votamos para deputado federal e senador.
O bolsonarismo já entendeu completamente isso e está tentando formar maioria no Senado. Quem não entendeu ainda foram outros campos ideológicos, como a esquerda e o centro.
É preciso um esforço cidadão para melhorar o voto no Legislativo. E não estou falando de votar "em alguém do meu campo", mas em parlamentares comprometidos com sua função, que tratem a instituição com seriedade. Isso está faltando.
Meu sonho é que o Brasil dê tanta importância a essa eleição quanto à presidencial.