Brasil

Da Baixada Fluminense à Califórnia: o jovem cientista brasileiro selecionado para estudar o coronavírus

08/06/2020

Quando criança, os filmes da série Jurassic Park encantaram Rômulo, ajudando-o a saber, já aos 13 anos, que gostaria de ser biólogo no futuro.

Hoje, aos 27 anos, Rômulo Neris não estuda dinossauros gigantescos extintos no passado — na verdade, ele está arregaçando as mangas para investigar o coronavírus microscópico responsável pela atual emergência global na saúde, uma pandemia que já infectou mais de 6 milhões de pessoas, matando mais de 380 mil delas.

Nascido e criado em Duque de Caxias, na Baixada Fluminense, Neris voltou no final de maio da Califórnia, nos Estados Unidos.

Doutorando em imunologia e inflamação na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), ele estava desde agosto de 2019 fazendo um doutorado sanduíche na University of California Davis, estudando o arbovírus chikungunya, tema da sua tese.

Mas além de terminar de escrever sua tese sobre o chikungunya para defesa neste ano, Neris está apenas esperando acabar seu isolamento no quarto anexo de um amigo, por conta da viagem internacional, para pesquisar também o novo coronavírus.

Ele foi um dos sete pesquisadores brasileiros selecionados para estudar a covid-19 com uma bolsa da Dimensions Sciences, uma organização fundada nos Estados Unidos pela brasileira Marcia Fournier, executiva na área de biotecnologia residindo em Washington.

Com a bolsa, que tem duração de três meses, Neris vai atuar em duas frentes. Uma, a mais imediata, colocando a mão na massa e ajudando a processar testes moleculares que estão sendo feitos no Centro de Triagem Diagnóstica para covid-19 criado pela UFRJ — afinal, a capacidade de fazer e analisar testes tem sido um dos principais gargalos em todo o país no combate ao coronavírus.

"Temos uma grande defasagem de testes no Brasil. Os casos estão sendo subnotificados, já não conseguimos nem mais estimar muito o quão subnotificada é a situação no país", diz o jovem, em entrevista à BBC News Brasil por telefone.

Na outra frente, o pesquisador, graduado em ciências biológicas e mestre em microbiologia pela UFRJ, vai se debruçar sobre o coronavírus em laboratório.

"Vou estudar a genética do vírus e suas mutações, mas também alterações observadas no indivíduo durante a infecção, como metabólicas e pulmonares. A ideia é entender como o vírus infecta células de diferentes tecidos e por que há quadros tão diversos e às vezes tão graves — em alguns, sem nenhum tipo de comorbidade."

"Uma das linhas mais prováveis é que a infecção pelo coronavírus levaria a uma exacerbação da resposta imune. Ou seja, a infecção poderia causar uma inflamação muito grande, principalmente no tecido pulmonar, e esta inflamação seria extravasada para outros tecidos, causando diferentes manifestações."

Bolsa no ensino fundamental e escola pública no médio

 

Muito antes de procurar como cientista respostas sobre o novo coronavírus, Rômulo se divertia na infância com os paleontólogos dos filmes e também catando bichos no quintal de casa.

Com pai ferroviário e mãe auxiliar administrativa, que se formou mais tarde em pedagogia, ele lembra que dentro de casa a conversa sempre foi franca sobre as condições para o investimento financeiro na educação dele e da irmã, hoje formada em direito.

No ensino fundamental, Rômulo estudou em uma escola particular com bolsa e, no ensino médio, foi para o Colégio Estadual Círculo Operário, em Caxias. E, em relação ao incentivo dos pais à leitura e ao estudo em casa, este sempre foi integral, lembra.

De uma parceria entre a Secretaria de Educação local e o Instituto Nacional de Metrologia, Qualidade e Tecnologia (Inmetro), veio a oportunidade de fazer, durante o ensino médio, um curso técnico em metrologia e qualidade industrial em um turno, enquanto continuava frequentando normalmente a escola estadual no outro.

"Um amigo da família recomendou este curso técnico, eu li sobre e gostei bastante porque vi que teríamos aulas diversas, de física, química, elétrica, mecânica. E o curso me ajudou muito no preparo para entrar na faculdade, porque na minha época o pré-vestibular popular não era tão comum e minha família não tinha condições de pagar um curso preparatório", conta Neris, que passaria então no vestibular regular da UFRJ.

Das escolas pelas quais passou, Neris lembra de professores "inspiradores" que o incentivavam a seguir a carreira científica, e também de estímulos no colégio estadual como aulas de reforço para o ensino técnico e olimpíadas internas de matemática.

Fora do colégio, ele também participou de competições, ficando entre os melhores colocados da Olimpíada Brasileira de Astronomia e da Prova Brasil em 2009.

Esforço pessoal como 'catalisador'

 

Dos incentivos, bolsas e premiações em sua trajetória, Neris aponta que estes tiveram um papel motivacional, mas também material, para seguir estudando.

"Eu fiz uma prova de matemática organizada pelo governo estadual do Rio que premiava com um notebook os 1.000 alunos com melhores notas, e eu fiquei entre os melhores colocados. E esse notebook foi o que eu usei para estudar nos meus dois primeiros anos de faculdade."

"No final do ensino técnico, eu tive uma bolsa de estágio — a minha primeira bolsa. Lembro que usei esse dinheiro para pagar o transporte, o almoço e outras despesas com a faculdade."

E sobre o debate recorrente na educação sobre méritos pessoais e incentivos externos, o cientista aponta que a equação é complexa.

"Quando comento minha trajetória, tem tanta coisa, tanto detalhe e evento paralelo que confluiu para onde estou que é impossível que eu atribua só ao meu mérito. Para começar, desde pequeno lembro dos meus pais investindo na minha educação da maneira que podiam, me incentivando a ler..."

"Tenho consciência de que, se eu comparar minha trajetória com a de pessoas que cresceram comigo, estou numa posição singular considerando as oportunidades que eu tive. Mas eu não atribuo a maior parte desta minha história a meu mérito pessoal, nem de perto."

"Posso dizer que de certo modo o sucesso é proporcional ao esforço... O sucesso é consequência do esforço, na verdade. Mas não é o esforço que vai determinar o tamanho desse sucesso — este é completamente proporcional ao contexto. Isso é algo que muita gente não considera nessa equação, as pessoas acham que o esforço leva diretamente ao sucesso"

"Penso meu esforço como um catalisador, mas o sucesso é completamente dependente do contexto. Você pode ser fisicamente muito forte e trabalhar na construção civil a vida inteira, ou ser um lutador. Isso não depende do esforço da pessoa, mas do contexto."

Cientista no Brasil como 'eterno estudante'

 

Se no passado bolsas e prêmios contribuíram com passagens de ônibus e um notebook, para um doutorando, elas são como um salário.

Entretanto, após sua experiência nos Estados Unidos, onde foi bolsista do programa Fullbright, financiado pelo governo americano, Neris voltou com a impressão que o pós-graduando brasileiro é encarado como um "eterno estudante".

"O Brasil ainda lida, principalmente na ciência, de um jeito muito amador com os pesquisadores. Quem faz mestrado, doutorado, quem está produzindo em laboratório, é visto como um eterno estudante — e isso não é demérito aos estudantes, mas fazer ciência também é uma profissão."

"Para muitos de nós, a bolsa que recebemos é o nosso salário. Então, quando alguém me pergunta: 'como é estar sem bolsa'? Digo: é o equivalente a um jovem de 27 anos, a minha idade, que tem um emprego mas não recebe um salário."

No início do doutorado, o pesquisador conta ter recebido por um período uma bolsa da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), do Ministério da Educação. Mas, tendo sido contemplado com a bolsa nos Estados Unidos, a bolsa do Brasil foi remanejada dentro de seu programa.

Consultada pela reportagem, a Capes informou que o programa de pós-graduação em Imunologia e Inflamação da UFRJ, do qual Neris é discente, teve em 2020 acréscimo de oito bolsas de doutorado e três de mestrado.

Hoje, de volta ao Brasil, o pesquisador comemora a seleção para a bolsa da Dimensions Sciences, que envolve reuniões e relatórios periódicos sobre o andamento dos seus estudos. Com a pandemia de coronavírus, ele também tem participado com sua orientadora, Iranaia Assunção Miranda, e seu grupo de pesquisa, de projetos especificamente sobre a nova doença, em parceria com outros laboratórios e grupos da UFRJ.

Uma outra percepção que mudou na experiência nos Estados Unidos foi na questão racial. Hoje se identificando como preto, Neris reconhece que este foi um reconhecimento seu recente, depois de muitos anos se identificando como pardo.

"Percebi lá que é um assunto tratado mais abertamente do que no Brasil. Aqui, usamos outros termos, 'moreninho', 'pardo', mas no meu caso. eu de fato me considero preto, depois de ter me inteirado de debates a respeito."

"Lá (nos EUA), vi muitas pessoas debatendo sobre representatividade negra em diversos espaços, inclusive muitas pessoas que possivelmente não seriam consideradas negras pelo senso comum no Brasil. Exatamente porque a gente tende a fazer mais essa separação, essa subseparação de cor."

Arboviroses e coronavírus

 

Ainda nos Estados Unidos, Neris viu o coronavírus provocar uma pandemia, e a partir daí, começou a estudá-lo.

É um vírus como muitos outros, mas também diferente dos arbovírus — aos quais se dedica há alguns anos e que não configuram uma classificação taxonômica, como um gênero ou espécie, mas um grupo genérico daqueles vírus transmitidos por insetos — como o mosquito Aedes aegypti — e aracnídeos.

"Sempre trabalhei com arboviroses: dengue, febre amarela, zika, chikungunya, o mayaro... Mas apesar de serem causadas por vírus, as síndromes respiratórias são muito diferentes. Então, passei os últimos dois meses estudando bastante sobre a biologia de vírus respiratórios. Dentro da virologia, é todo um novo mundo."

O cientista explica diferenças, por exemplo, nos "sítios de replicação" — ou seja, os locais em que o vírus se replica.

"Nas arboviroses, na maior parte das vezes, o vírus replica nas camadas superficiais da pele, depois alcançando a corrente sanguínea e migrando para outros tecidos; já o coronavírus replica principalmente no epitélio do pulmão. Assim, o modo como as células respondem e morrem é diferente; o tempo de replicação é outro."

"Só isso já é o suficiente para mudar toda a nossa abordagem para tratamentos", aponta, destacando também a diferença entre os principais transmissores nos dois casos, o mosquito e o próprio ser humano, no caso do coronavírus.

Em seu doutorado, o pesquisador foca em um conjunto de proteínas presente em muitas das nossas células, o imunoproteassoma. Ele pode explicar por que muitos indivíduos infectados com chikungunya continuam sentido dor nas articulações e nos músculos mesmo depois do vírus não ser mais detectado no corpo.

"O imunoproteassoma tem várias funções, mas uma das principais é servir como um triturador de lixo da célula. Temos encontrado evidências de que, em uma infecção por chikungunya, o vírus causa uma ativação aberrante do imunoproteassoma, e com isso ele começa a perder o controle do que está degradando. Muito possivelmente começa a degradar coisas que são importantes para a própria célula infectada, mesmo depois da infecção controlada."

A importância da divulgação científica

 

A entrevista à BBC News Brasil não foi a primeira vez que o cientista precisou explicar em poucas palavras sua tese de doutorado. Em 2018, Neris foi semifinalista do FameLab Brasil, uma competição de divulgação científica organizada pelo British Council em que cientistas precisam explicar em poucos minutos para uma plateia conceitos científicos.

Em fevereiro deste ano, Neris escreveu no Twitter sobre medidas de prevenção contra o coronavírus e… viralizou. Suas mensagens foram retuitadas e curtidas dezenas de milhares de vezes.

"Eu não esperava — acordei no dia seguinte, vi que tinha viralizado e muita gente estava mandando mensagens e dúvidas. Foi uma experiência muito legal."

"Foi um baque também, porque as coisas que eu escrevi nos tuítes eram simples para mim. Surpreendeu porque grande parte do que estava ali não era de conhecimento geral do público."

"Sempre procurei divulgar minhas pesquisas — quando tenho algum artigo publicado, faço alguma postagem nas minhas redes sociais resumindo o artigo de maneira simples. Mas, de dois anos para cá, tenho entendido mais a divulgação científica como um dever da minha atribuição como pesquisador."