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Equador-México: o que está por trás da crise diplomática e quais suas possíveis consequências
Após a operação policial, o presidente do México, Andrés Manuel López Obrador, ordenou o rompimento das relações diplomáticas com o Equador
Um grupo de policiais equatorianos invadiu a embaixada mexicana em Quito e prendeu o ex-vice-presidente do país Jorge Glas nesta sexta-feira (5/4), levando o México a romper as relações diplomáticas com o governo do Equador, em uma crise diplomática bilateral inédita.
Glas, que ocupou a vice-presidência do Equador entre 2013 e 2018 e é um aliado do ex-presidente Rafael Correa, foi condenado pela Justiça equatoriana por corrupção e estava refugiado na embaixada mexicana desde dezembro. Na última semana, o México lhe concedeu asilo político.
Após a operação policial, o presidente do México, Andrés Manuel López Obrador, ordenou o rompimento das relações diplomáticas com o Equador.
"Se trata de uma violação flagrante ao direito internacional e à soberania do México", disse o mandatário mexicano.
Embaixadas estrangeiras estão protegidas pela inviolabilidade prevista na Convenção de Viena, o que significa que as autoridades locais não podem entrar nas instalações diplomáticas sem o consentimento do país responsável por elas.
O governo equatoriano de Daniel Noboa, no entanto, acusou o México de exceder suas prerrogativas diplomáticas e criticou a concessão de asilo.
O governo brasileiro condenou "nos mais firmes termos" a ação dos agentes equatorianos na embaixada do México e chamou o incidente de "grave precedente". Colômbia, Venezuela e Cuba também apoiaram os mexicanos.
Entenda abaixo os antecedentes da crise, a legislação internacional relacionada ao tema e suas possíveis consequências.
Para analistas, a ação na embaixada do México é rara, especialmente na tradição da América Latina, e pode trazer consequências para o Equador.
Prisão na embaixada e antecedentes
A invasão à embaixada do México em Quito aconteceu horas depois de o governo de López Obrador informar que havia concedido asilo político a Jorge Glas.
"O direito de asilo é sagrado e estamos agindo em plena conformidade com as convenções internacionais", escreveu a chanceler mexicana Alicia Bárcena no X, o antigo Twitter.
"Ao conceder asilo a Jorge Glas, confio que o governo do Equador disponha do salvo-conduto (autorização para que Glas viajasse para o México) o mais rápido possível."
No entanto, o governo do presidente Daniel Noboa se negou a entregar o salvo-conduto e horas depois a polícia entrou na sede diplomática do México em Quito.
O encarregado de negócios da embaixada do México no Equador, Roberto Canseco, estava na sede diplomática quando a operação policial começou e confrontou os agentes.
"Pondo em risco minha própria vida, defendi a honra e a soberania do meu país. Isso não pode acontecer, é incrível que tenha acontecido algo assim", disse ele à imprensa.
"Estou muito preocupado porque podem matá-lo. Não há nenhum fundamento para fazer isso. Estávamos prestes a sair e de repente nos encontramos com policiais, com ladrões que entraram na embaixada à noite", acrescentou.
De acordo com a chanceler mexicana, vários trabalhadores da embaixada foram agredidos durante o incidente.
Um comunicado da presidência do Equador confirmou a prisão de Glas e disse que o ex-vice-presidente tinha sido colocado "à disposição das autoridades competentes".
O texto também acusou a embaixada mexicana de ter "abusado das imunidades e privilégios" e denunciou que o asilo diplomático concedido a Glas era "contrário ao marco jurídico convencional".
"O Equador é um país soberano e não vamos permitir que nenhum delinquente fique impune", disse o comunicado.
Condenado por corrupção duas vezes na Justiça equatoriana - em um dos casos relacionados à empreiteira Odebrecht -, Jorge Glas estava na embaixada mexicana desde dezembro do ano passado.
Segundo a Secretaria de Relações Exteriores do México, Glas pediu ajuda à embaixada mexicana em 17 daquele mês expressando "temor por sua segurança e liberdade pessoal".
As autoridades judiciais do Equador haviam convocado o ex-vice-presidente a depor em um caso relacionado à reconstrução da província costeira de Manabí após um terremoto de 2016.
Seu advogado, Eduardo Franco Loor, denunciou então uma perseguição política.
"Há uma perseguição política desde o ano de 2017, escalada ultimamente pela Procuradora-Geral do Estado, que arbitrariamente pretende processar e deter Jorge Glas, sendo ele uma pessoa inocente", disse o advogado à agência de notícias Reuters.
Além de ser vice-presidente durante os governos de Rafael Correa e Lenin Moreno, considerados à esquerda, Glas ocupou vários cargos durante o governo de Correa - que, segundo analistas, chegou a considerá-lo como sua "mão direita". Também condenado por corrupção no Equador, Correa vive na Bélgica sob asilo político.
As medidas do México e a reação dos vizinhos
Além de anunciar o rompimento das relações com o Equador, o governo do México afirmou que vai levar o caso à Corte Internacional de Justiça.
O comunicado da chancelaria mexicana também fala de acionar "instâncias regionais e internacionais pertinentes".
O governo brasileiro divulgou uma nota na qual condena "nos mais duros termos" a ação equatoriana.
O Itamaraty, como é conhecida a chancelaria brasileira, afirmou que a operação é "uma clara violação à Convenção Americana sobre Asilo Diplomático e à Convenção de Viena sobre Relações Diplomáticas".
O presidente da Colômbia, Gustavo Petro, também criticou e pediu que tanto a OEA (Organização dos Estados Americanos) como a Celac (Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos) façam reuniões de urgência para debater o tema.
Xiomara Castro de Zelaya, presidente de Honduras, escreveu em sua conta no X que a invasão da embaixada do México "com o objetivo de sequestrar" Glas "constitui um ato intolerável para a comunidade internacional, dado que ignora o histórico e fundamental direito ao asilo".
Castro repudiou o que considera uma "violação da soberania do Estado mexicano e do direito internacional". Honduras exerce a presidência rotatória da Celac neste ano.
Cuba e Venezuela também criticaram o governo de Noboa.
De sua parte, o ex-presidente equatoriano Rafael Correa afirmou que "o que o governo de Noboa fez não tem precedentes na história da América Latina".
"Não vivemos em um Estado de Direito, mas sim em um Estado de barbárie, com um improvisado que confunde a pátria com uma de suas fazendas de banana", acrescentou ele no X, em referência ao império empresarial da família do presidente equatoriano.
Correa também responsabilizou Daniel Noboa pela segurança e integridade física e psicológica de Glas.
O governo do Equador afirma, porém, que defende a soberania nacional ao não permitir que ninguém interfira nos assuntos internos do país.
Possíveis consequências do conflito
Para analistas ouvidos pela BBC News Brasil, a ação equatoriana na embaixada do México em Quito não chega a ser inédita, mas é rara e descumpre preceitos básicos do direito internacional, como a Convenção de Viena sobre representações diplomáticas e a concessão de asilo político.
Ao longo de décadas, as missões diplomáticas têm sido territórios respeitados como invioláveis entre os países, inclusive durante regimes ditatoriais na América Latina.
Para citar casos célebres mais recentes, o ex-presidente hondurenho Manuel Zelaya ficou por meses na embaixada do Brasil em Tegucigalpa entre 2009 e 2010, enquanto reivindicava sua volta ao poder.
Já o ativista Julian Assange, fundador do site WikiLeaks, morou por 7 anos na embaixada equatoriana no Reino Unido após o Equador lhe ter concedido asilo político - benefício que o país retiraria em 2019.
"Essa decisão não só viola a soberania, porque o território da embaixada deve ser inviolável, como também viola o asilo, porque retirou da embaixada uma pessoa que já estava sob proteção do governo mexicano", afirma Elaini Silva, doutora em direito internacional pela USP e professora da PUC de São Paulo.
Na sexta, o governo do México havia anunciado a concessão de asilo político a Jorge Glas e pedia para ele um salvo conduto, que é uma espécie de passe livre para que ele deixasse o Equador em segurança.
A repercussão do caso tende ser importante, segundo Silva, porque "o que está sendo discutido são normas básicas de relação entre Estados".
"Se a sua embaixada não é inviolável, você não tem condição mínima de manter representação no outro Estado", analisa a professora.
O professor de Política Comparada e Internacional na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) Dawisson Belém Lopes considera o episódio uma "transgressão grave" e que deve trazer consequências para o Equador no âmbito de organismos como a Celac.
"Na América Latina a atenção a essas normas é ainda mais importante já que, até pelo histórico de golpes de Estado, de perseguição política, se firmou um entendimento entre as elites políticas de que era necessário proteger as pessoas que, por ventura, se refugiassem em embaixadas", afirma Belém.
O professor da UFMG lembra o contexto doméstico equatoriano, no qual o presidente Noboa, no poder desde novembro de 2023, ganhou popularidade ao decidir declarar estado de "conflito armado interno" no país para combater as facções criminosas com uso de militares e restrição de alguns direitos.
"Talvez no rescaldo disso, ainda surfando essa popularidade recém-conquistada, Noboa pode ter feito um cálculo político equivocado, superestimado a capacidade dele e cruzado uma linha nessa ação", afirma.
A operação policial do Equador na embaixada mexicana em Quito acontece dias depois de o jornal New York Times revelar que o ex-presidente brasileiro Jair Bolsonaro passou duas noites na embaixada da Hungria em Brasília depois de ter seu passaporte retido pelas autoridades brasileiras em meio a investigações contra ele.
A estadia na embaixada em Brasília levou a especulações de que Bolsonaro estaria cogitando a possibilidade de pedir asilo político à Hungria, o que o ex-presidente negou.
Na ocasião, os representantes diplomáticos húngaros foram chamados ao Itamaraty para prestar esclarecimentos.
Para Dawisson Belém Lopes, ao se posicionar sobre o crise entre o Equador e México, o Brasil envia também uma mensagem sobre sua conduta caso Bolsonaro decida pedir asilo político.
"O Brasil, ao emitir uma nota como essa, sinaliza que numa eventual fuga de Bolsonaro da lei, refugiando-se numa embaixada ou repartição consular, o Brasil não ultrapassará os limites ditados pelas convenções de Viena", conclui.