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Com Musk excluído, lítio coloca Bolívia no centro de disputa entre China, Rússia e EUA
Chineses, russos e americanos vêm travando uma disputa pelo acesso às reservas de lítio do país.
A Bolívia chamou a atenção do mundo após uma tentativa frustrada de golpe de Estado, mas o país já está no radar internacional bem antes disso, por outro motivo.
Chineses, russos e americanos vêm travando uma disputa pelo acesso às reservas de lítio do país.
A Bolívia detém as maiores reservas deste mineral do mundo, atrás apenas da Argentina e do Chile, segundo o Serviço Geológico dos Estados Unidos.
A entrada do país no Mercosul faz, portanto, com que o bloco regional tenha dois dos maiores detentores de reservas da matéria-prima usada em baterias elétricas e considerada essencial para a transição para uma matriz energética baseada em fontes renováveis.
A Bolívia foi incorporada como integrante pleno do Mercosul durante a cúpula do bloco que começou na segunda-feira (8/7) em Assunção, no Paraguai.
Após participar da cúpula, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) fez uma visita oficial à Bolívia na terça-feira (9/7), onde chamou atenção, dentre outros temas, para o potencial da indústria do lítio no país.
Especialistas e diplomatas ouvidos pela BBC News Brasil reconhecem que o potencial do lítio boliviano tem atraído as atenções de super-potências.
Mas eles avaliam que as dificuldades para explorar o tipo de lítio presente no território boliviano e a instabilidade política levantam dúvidas sobre se o mineral poderá alavancar a economia boliviana e o desenvolvimento do país, como vem sendo prometido por políticos locais há mais de uma década.
Musk de fora da corrida pelo lítio boliviano
Segundo dados do governo americano, a Bolívia possui em torno de 21 milhões de toneladas de lítio. Estimativas mais recentes do governo boliviano apontam que o país teria 23 milhões de toneladas.
A Argentina aparece em segundo lugar, com 19 milhões, e em terceiro vem o Chile, com 9 milhões.
Segundo o Ministério de Minas e Energia (MME), o Brasil é o 7° maior detentor de reservas de lítio no mundo, com 1,23 milhão de tonelada e, atualmente, é o 5° maior produtor mundial do minério.
A maioria das reservas bolivianas se concentra na região do Salar de Uyuni, no Oeste do país.
O lítio vem sendo apontado por especialistas como um dos minérios estratégicos mais importantes para o futuro do planeta por conta de seu uso na fabricação de baterias elétricas.
Essas baterias equipam carros elétricos ou híbridos e são apontadas como cruciais para reduzir suas emissões de carbono produzidas pela queima de combustíveis fósseis, como a gasolina e o diesel.
Diante do crescimento da produção de carros elétricos no mundo, investidores de todo o planeta passaram a buscar novas fontes de lítio.
Para explorar suas reservas, o governo boliviano abriu em 2021 uma série de leilões internacionais para dar início à exploração no país.
Em um deles, o governo pré-selecionou oito empresas de quatro países: Estados Unidos, Rússia, China e Argentina.
O governo boliviano fechou acordos com empresas da Rússia e da China para instalar plantas-piloto de extração do mineral no país.
Os investimentos previstos são de US$ 1,4 bilhão (R$ 7,6 bilhões).
Nenhuma das empresas americanas e argentinas foi selecionada. Entre as americanas excluídas estava a EnergyX, que faz parte do conglomerado comandado pelo empresário Elon Musk.
Musk também comanda a Tesla, uma das principais fabricantes de carros elétricos do mundo e que, por isso, tem interesse em ter acesso ao lítio boliviano.
A Yacimientos de Lítio Bolivianos (YLB), estatal criada para administrar as reservas do mineral, afirmou que a exclusão da empresa de Musk ocorreu porque ela enviou sua proposta fora do prazo. Em comunicado, a EnergyX admitiu a falha.
Manifestações de Musk sobre a política boliviana foram bastante criticadas nos últimos anos.
Em julho de 2020, Musk se manifestou na sua rede social X (então Twitter) sobre uma suposta conspiração que teria levado à renúncia do ex-presidente boliviano Evo Morales em 2019 para que o empresário tivesse acesso às reservas de lítio do país.
Ao responder a um usuário, ele disse: "Vamos dar um golpe em quem quisermos. Lidem com isso". O tweet foi apagado depois.
No perfil de Musk, ainda há outro comentário em que ele parabeniza o povo boliviano pela queda de Morales em 2019.
Em 2023, a preocupação dos Estados Unidos com as reservas de lítio da Bolívia e de outros países da região também causou reações.
Durante uma sessão no Congresso dos Estados Unidos em março de 2023, a general Laura Richardson, chefe do Comando Sul dos Estados Unidos, responsável por operações de segurança e defesa na América do Sul, mencionou o chamado "Triângulo do Lítio" (formado pela Bolívia, Argentina e Chile) como um ponto de atenção à medida que empresas de países como a China passaram a atuar na região.
"Quando falamos com embaixadores americanos no Chile e Argentina, as companhias [chinesas] que estão lá, a agressividade da China com relação ao lítio é muito avançada", disse Richardson.
Em seguida, o ex-presidente Evo Morales classificou a fala de Richardson como uma "ameaça".
"Repudiamos as ameaças da chefa do Comando Sul dos Estados Unidos, Laura Richardson, que repete o interesse predador do seu país sobre o 'Triângulo do Lítio' na Bolívia, Argentina e Chile", disse Morales em seu perfil no X.
O suposto interesse internacional em uma mudança de regime no país voltou à tona no dia 27 de junho, quando militares liderados pelo general Juan José Zúñiga tentaram entrar à força na sede do governo boliviano, o que foi classificado pelo atual presidente, Luis Arce, como uma "tentativa de golpe".
Sem mencionar Musk, Lula relacionou a tentativa de golpe ocorrida na Bolívia a atores interessados nas reservas de lítio do país.
"A Bolívia é um país que tem muitos interesses internacionais focados lá porque é a maior reserva de lítio do mundo e outros minerais críticos de muita importância, além de ter gás. É preciso que a gente tenha em mente que tem interesse em dar golpe", disse o presidente brasileiro.
Os entraves para o 'milagre econômico' do lítio
Em sua campanha à Presidência, Arce chegou a prometer que a Bolívia conseguiria ganhar até US$ 4,5 bilhões (R$ 24,5 bilhões) por ano com as exportações de lítio.
Mas dados do Instituto Nacional de Estatísticas (INE) da Bolívia apontam que, em 2023, o país exportou apenas US$ 14,6 milhões (R$ 79,4 milhões).
Isso foi equivalente a pouco mais de 0,13% de todas as exportações do país naquele ano.
De acordo com um relatório da Agência Internacional de Energia (AIE), em 2023, os maiores produtores de lítio do mundo foram Austrália, Chile e China.
Karla Calderón, que é presidente da YLB, a estatal boliviana responsável pela exploração de lítio, disse à BBC News Brasil que compreende uma certa impaciência da população do país com a demora para que a economia do lítio decole.
“A preocupação é completamente compreensível. O tema do lítio tem sido abordado pela América Latina e, em especial pela Bolívia, há aproximadamente 14 anos com experiencias boas e ruins”, disse.
Ela afirmou que os primeiros três anos do governo Arce foram utilizados para estabelecer uma estratégia sobre como explorar o lítio e dar início às fábricas-piloto instaladas no país.
“Tudo que se relaciona a processos industriais e, em especial de indústrias novas como a do lítio, tem seu próprio ritmo, seus passos e etapas. Passamos alguns anos trabalhando na fase exploratória, procurando as melhores alternativas tecnológicas”, explicou.
Ela defendeu a ideia que havia sido aventada inicialmente por Luis Arce de criar uma espécie de “Opep do Lítio” formada por países da região como a Bolívia, Argentina, Chile e Brasil. O termo “Opep do Lítio” é em alusão à Organização dos Países Exportadores de Petróleo.
“Isto seria ideal porque deveríamos somar forças para chegar ao desenvolvimento e à industrialização (do lítio) trocando experiências em diversas áreas, inclusive na parte logística”, disse a presidente da YLB.
Uma das razões apontadas pela demora na consolidação da indústria do lítio na Bolívia é a localização do mineral no país.
A maioria das reservas bolivianas está concentrada em salares e não em minas, como ocorre em outros países, como o Brasil.
O diretor de sustentabilidade do Instituto Brasileiro de Mineração (Ibram), Júlio Nery, explica que isso dificulta a extração do mineral.
"Isso requer uma tecnologia sofisticada que é diferente da usada na extração em minas. É preciso retirar a matéria-prima do salar e submetê-la a processos físico-químicos para que o lítio seja extraído", explica.
Um representante do governo boliviano que falou com a BBC News Brasil em caráter reservado admite que o país não tem a tecnologia necessária para desenvolver, sozinho, essa indústria. Por isso, o país tem buscado atrair investidores externos.
Mas a Bolívia enfrenta dificuldade para atrair investidores estrangeiros para explorar o lítio, em parte, por conta do ambiente político local, diz Maurício Santoro, cientista político e professor de Relações Internacionais do Centro de Estudos Políticos-Estratégicos da Marinha do Brasil.
A maioria dos investidores preferiria, segundo ele, colocar seus recursos em países menos turbulentos e que tenham um marco regulatório mais claro.
"Isso acontece pelas mesmas dificuldades enfrentadas pela indústria do gás natural. A Bolívia tem um cenário político instável e um governo com viés muito nacionalista sobre os recursos naturais e com um histórico conflituoso com as multinacionais que querem explorar esses recursos", afirma Santoro.
Lucas Mesquita, professor de Relações Internacionais da Universidade Federal da Integração Latino-Americana (Unila), segue a mesma linha de Santoro.
"O potencial do lítio para a economia boliviana é enorme, mas o recurso ainda é muito pouco explorado. Parte disso é resultado das dificuldades de infraestrutura", afirma Mesquita.
"Mas também há questionamentos relacionados aos possíveis danos ao meio ambiente causados por essa indústria e receio sobre a estabilidade do país. Empresas, em geral, buscam locais estáveis para investir."
Júlio Nery, do Ibram, diz que o Brasil não aparece como um parceiro óbvio para o desenvolvimento da indústria de lítio boliviana.
"Isso faria pouco sentido, porque, na prática, estaríamos contribuindo para a redução do preço do nosso próprio lítio [ao ajudar a aumentar a produção boliviana]", explica.
"O Brasil tem uma vantagem sobre países como a Bolívia, porque o nosso lítio não vem de salar. Está na forma de rochas. Isso barateia a extração."
Os interesses do Brasil na Bolívia
Em sua visita à Bolívia, após reunir-se com Arce, Lula destacou o potencial das reservas de lítio do país.
"Felicitei a Bolívia pela opção em investir em biocombustíveis e reiterei a disposição do Brasil de compartilhar sua experiência e tecnologia, de modo a contribuir para a transição justa da Bolívia. No centro dessa transição também estarão os minerais críticos", disse o presidente brasileiro.
"A Bolívia tem grandes reservas de lítio, enquanto o Brasil possui terras raras, nióbio, cobalto, entre outros. Há pouco tempo descobriu-se em solo brasileiro o terceiro maior depósito de manganês do planeta. Como bem descreveu Eduardo Galeano, pelas veias abertas da América Latina correram o ouro de Minas e a prata de Potosí, que enriqueceram outras partes do mundo."
O principal foco de Lula no encontro foi a manutenção e possível ampliação do acesso brasileiro ao gás natural do país vizinho.
O gás natural boliviano é considerado estratégico pelo governo Lula para a segurança energética do Brasil, mas o país vive um declínio na sua capacidade de exportação da matéria-prima.
De acordo com a Empresa de Pesquisa Energética (EPE), vinculada ao MME, o gás natural é responsável por 10,5% da matriz energética do Brasil. A maioria é importada da Bolívia.
Autoridades do governo brasileiro afirmaram na segunda-feira (8/7) que Brasil e Bolívia estudam a possibilidade de ampliar em até 22% o envio de gás natural para o Brasil a partir de outubro.
O aumento viria de uma redução nas exportações do país à Argentina. A estimativa é de que entre 2 e 4 milhões de metros cúbicos por dia de gás natural que iam para os argentinos possam ser desviados ao Brasil.
Isso é visto, no entanto, como uma medida de curto prazo em meio a uma tendência de queda da capacidade boliviana de produzir gás natural, que preocupa autoridades brasileiras.
Em 2023, o governo boliviano anunciou que a produção caiu de 59 milhões de metros cúbicos de gás por dia para 37 milhões nos últimos nove anos.
Segundo a TBG, empresa responsável pelo gasoduto entre os dois países, a estrutura é capaz de transportar até 30 milhões de metros cúbicos por dia de gás natural, mas, em 2023, transportou apenas 18 milhões.
O resultado se reflete no valor das exportações de gás ao Brasil.
Dados do Ministério do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços (MDIC) apontam que a Bolívia exportou US$ 3,9 bilhões (R$ 21,2 bilhões) em gás natural para o Brasil em 2013. Em 2023, o valor caiu 65%, para US$ 1,34 bilhão (R$ 7,3 bilhoes).
Segundo a fonte do MME ouvida pela BBC News Brasil, a queda se deve à falta de investimento em pesquisas em novos campos ou no desenvolvimento de tecnologias nos campos bolivianos.
Ainda segundo a mesma fonte, isto se deve ao marco regulatório adotado no país em que a maior parte dos lucros decorrentes da produção é destinada ao governo, o que, em tese, afastaria empresas privadas interessadas em explorar as reservas de gás natural.
O governo boliviano prometeu em 2023 reforçar a produção por meio de obras e procedimentos nos campos já existentes.
O governo boliviano também teria acenado com a possibilidade de alterar o seu marco regulatório para atrair investimentos estrangeiros nos próximos anos, segundo a fonte ouvida pela BBC News Brasil.
Mas essas mudanças ainda não foram feitas, o que deve atrasar a análise de viabilidade de novos projetos.
Outro tema que está na agenda do governo brasileiro é a ampliação da produção e exportação de fertilizantes da Bolívia para o Brasil.
O Brasil importa em torno de 85% de todo fertilizante que consome, e o governo quer ampliar o rol de fornecedores para evitar entraves enfrentados no passado.
Em 2022, por exemplo, o Brasil enfrentou dificuldades para importar fertilizantes da Rússia, que, à época, era responsável por em torno de 28% do produto que chegava ao Brasil.