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'A crueldade parece ser o princípio central da política de hoje'

As palavras do presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, com as quais ele anuncia a ampliação do centro de detenção de migrantes da base de Guantánamo

PEDRO RIBEIRO/DA EDITORIA/COM BBC 15/03/2025
'A crueldade parece ser o princípio central da política de hoje'
O tratamento dado aos imigrantes indocumentados faz parte do que o acadêmico Henry A. Giroux chama de 'cultura da crueldade' | REUTERS

O vídeo publicado na conta oficial da Casa Branca na rede social X (antigo Twitter) mostrando migrantes deportados com as mãos algemadas e os pés acorrentados.

As palavras do presidente dos Estados UnidosDonald Trump, com as quais ele anuncia a ampliação do centro de detenção de migrantes da base de Guantánamo para receber "os piores criminosos estrangeiros ilegais".

Para o acadêmico Henry A. Giroux, tudo isso faz parte do que ele chama de "cultura da crueldade".

Teórico fundador da pedagogia crítica e diretor do Centro de Pesquisa de Interesse Público da Universidade McMaster, no Canadá, Giroux vem se aprofundando no conceito há anos.

"A crueldade parece ser o princípio organizador central da política hoje", diz o americano-canadense à BBC News Mundo, serviço de notícias da BBC em espanhol, se referindo também à ideia de que os EUA poderiam assumir a "propriedade" de Gaza para construir ali "a Riviera do Oriente Médio", e ao desmantelamento da USAID, a agência de ajuda internacional dos EUA, uma das maiores organizações de ajuda humanitária do mundo.

Não apenas nos EUA, acrescenta ele, mas cada vez mais a nível global.

A BBC News Mundo conversou com o intelectual de esquerda, que chama Trump de "testa de ferro de uma oligarquia".

Henry A. Giroux

Crédito,Cortesia da Universidade McMaster

Legenda da foto,'O que estamos vendo agora é uma fusão de crueldade e política de formas nunca antes vistas e celebradas, uma crueldade que emerge no dia a dia', diz Henry A. Giroux

BBC News Mundo - O título do seu artigo mais recente é 'O Teatro da Crueldade de Trump'. Você poderia ter descrito a nova presidência dele de diferentes maneiras. Por que você escolheu defini-la assim?

Henry A. Giroux - Escolhi porque é uma palavra muito poderosa que, de certa forma, aponta para uma mudança importante na política dos EUA.

É que de repente nos encontramos numa era dominada pelo que eu chamaria de formas extremas de crueldade, formas que também não estão ocultas, e que parecem ser recebidas com um certo nível de alegria, para não dizer uma recusa abjeta em reconhecer quão malvadas estas políticas são.

E, de certa forma, acho que se tornaram o centro da política. A crueldade parece ser o princípio organizador central da política.

BBC News Mundo - Mas a crueldade não é novidade na história política dos EUA. Basta olhar para as leis Jim Crow de segregação racial, por exemplo. O que há de diferente ou novo hoje?

Giroux - Os EUA têm, de fato, um longo histórico de crueldade. Poderíamos começar falando da eliminação da população indígena, ou da escravidão, ou do aprisionamento dos japoneses (em campos de concentração)...

Tudo isso está aí, esse é o legado, embora em muitos casos pareça oculto. As pessoas tentam não se lembrar desses momentos da política americana.

O que acredito que estamos vendo com Trump não é um incidente isolado de crueldade, um momento específico baseado em 'racialização' ou em uma forma específica de nativismo, como na época da Segunda Guerra Mundial.

O que estamos vendo é um princípio de crueldade que afeta todos os aspectos da vida americana, seja na forma de ataques a escolas, a imigrantes indocumentados ou a pessoas trans.

BBC News Mundo - Mas, na sua opinião, é uma época mais cruel apenas na forma, na linguagem usada, que é mais óbvia e menos acanhada, ou é mais uma questão mais profunda?

Giroux - Hoje, a crueldade não surge apenas na forma de linguagem desumanizadora. Ela também surge nas políticas.

E para falar da natureza histórica desta crueldade e de onde ela vem, me parece que é preciso remontar aos anos 1980.

BBC News Mundo - O que aconteceu nos anos 1980?

Giroux - O neoliberalismo surge, e inicia-se um processo de divórcio do conceito de responsabilidade social. O que importa são os lucros, todo o resto é visto como uma forma de fraqueza.

O conceito de política como possibilidade de comunidade começa a morrer, assim como qualquer noção viável do social.

Donald Trump mostrado ordem executiva assinada na Casa Blanca em 14 de fevereiro de 2025 em Washington DC (Foto de Andrew Harnik/Getty Images)

Crédito,Getty Images

Legenda da foto,Para Henry A. Giroux, Donald Trump é testa de ferro de uma oligarquia

BBC News Mundo - E a crueldade de que você fala, na sua opinião, é um método? Uma estratégia política? Um mecanismo de união, como sugerem alguns analistas? Há especialistas que dizem até que é um fim em si mesmo.

Giroux - É uma ótima pergunta. Acredito que seja um princípio organizador central.

Vemos isso na linguagem desumanizadora que Trump usa, mas também nas suas políticas: na decisão de enviar deportados para Guantánamo, um símbolo absoluto da tortura que agora está sendo ressuscitado; vemos isso nas suas políticas relativas a programas de diversidade, equidade e inclusão (destinados a promover a igualdade nos locais de trabalho e na educação, especialmente para comunidades historicamente marginalizadas, e que ele pretende eliminar); Já vimos o que ele fez com a USAID…

É um princípio central, uma forma de fazer política que se alimenta do ódio e da intolerância. E não é por acaso nem é um traço de personalidade.

O que estamos vendo agora é uma fusão de crueldade e política de formas nunca antes vistas e celebradas, uma crueldade que emerge no dia a dia.

BBC News Mundo - Como você definiria a forma de governar de Donald Trump? Que tipo de presidência é a dele?

Giroux - Eu definiria como um governo fascista. A grande imprensa não está chamando assim, embora por vezes se fale de autoritarismo. Mas Joe Biden, ao deixar a presidência, alertou que Trump era fascista, algo que generais aposentados como John Kelly também disseram na época.

(Em entrevistas ao The New York Times e ao The Atlantic em outubro, e depois de anos compartilhando suas críticas a Trump com os jornalistas de uma forma mais ponderada, Kelly, que foi chefe de gabinete de Trump na Casa Branca e secretário do Departamento de Segurança Nacional, alertou sobre o suposto perigo para a democracia americana se o republicano fosse reeleito.

Em declarações sem precedentes para um ex-funcionário americano de alto escalão, Kelly disse que Trump se enquadra na definição de fascista. "Certamente o ex-presidente está na ala da direita radical, ele é certamente um autoritário, admira ditadores, ele mesmo disse isso. Portanto, ele certamente se encaixa na definição geral de fascista, isso é certo", disse ele ao The New York Times.)

BBC News Mundo - Se este termo pode ou não ser aplicado a Trump tem gerado debate entre historiadores e analistas praticamente desde a sua primeira campanha presidencial em 2016, e há quem alerte que é politicamente imprudente rotulá-lo desta forma.

Giroux - O governo dele é fascista, e vou te dizer por quê.

É porque não acredita no Estado de direito, porque acredita que o poder e a violência são fundamentais para a política, mas, acima de tudo, é fascista porque está organizado em torno do nacionalismo cristão branco. E este é o cerne do fascismo.

Um país é definido de forma muito limitada e exclusiva, e uma política de descarte é implementada. Ela começa com uma linguagem desumanizadora, continua com políticas de expulsão de pessoas, depois os críticos e outros são colocados em prisões....

Um imigrante guatemalteco indocumentado espera, algemado por ser acusado de um crime, se prepara para embarcar num voo de deportação para a Cidade da Guatemala, em 24 de junho de 2011 em Mesa, no Arizona (Foto de John Moore/Getty Images)

Crédito,Getty Images

Legenda da foto,Um imigrante guatemalteco espera, algemado e acorrentado, para embarcar em voo de deportação para seu país de origem

BBC News Mundo - Em seu mais recente artigo sobre a atual presidência dos EUA, você destaca que "Trump não governa sozinho", mas é "o testa de ferro de uma oligarquia que abandonou até a própria pretensão de uma democracia". No entanto, ele governa com o apoio da maioria dos americanos. Nas eleições de novembro, ele ganhou no voto popular, algo que nenhum republicano tinha conseguido desde 2004. O que é que isso nos diz?

Giroux - Isso nos diz algo que ignoramos durante muito tempo: que a educação é fundamental para a política.

A educação pode ser não apenas uma ferramenta de emancipação, mas também de enorme opressão. Ela pode incutir noções de ódio, ressentimento e intolerância, entre outras.

E o que temos hoje nos EUA é um aparato cultural que basicamente se tornou um tsunami de ódio e intolerância liderado por bilionários da tecnologia.

O que temos visto desde a década de 1980, dado o controle corporativo dos meios de comunicação, é uma máquina cultural e educacional que tem sido extremamente bem-sucedida na produção do que chamo de ignorância fabricada.

BBC News Mundo - Ignorância fabricada?

Giroux - Não é possível ter uma democracia, mesmo que fraca, sem um público informado.

E o que a direita aprendeu é que, se os meios de comunicação e a educação forem controlados, não há necessidade de Exércitos. O que é necessário são modos poderosos de persuasão e controle dos sistemas de informação.

Agora, com as redes sociais, estamos em um período muito difícil no que se refere a ser crítico e responsabilizar o poder.

E todos os elementos do fascismo que vemos surgir na Hungria, na Argentina, na Itália não são novos, mas estão acontecendo em uma escala que me parece quase sem precedentes.

BBC News Mundo - É um fenómeno que vai além dos EUA: partidos extremistas que ganham espaço, a polarização do discurso, candidatos que falam abertamente de crueldade... Um líder regional do partido de direita radical Alternativa para a Alemanha (AfD), Björne Höcke, declarou abertamente que é necessária uma "crueldade bem afinada" para expulsar migrantes e refugiados da Alemanha.

Giroux - É um fenômeno global, de fato. Mas uma coisa é isso, e outra coisa é o país mais poderoso do mundo assumir agora a liderança na hora de reforçar a alegação do (presidente húngaro Viktor) Orbán de que a democracia é muito fraca. Isso não tem precedentes.

Se isso tivesse surgido nos anos 1970, inclusive no início dos anos 1980, as pessoas diriam: "É um movimento marginal". Mas não é mais. É um movimento no centro da política dos EUA e da política global.

BBC News Mundo - De fato, ideólogos como Curtis Yarvin, convidado regular da mídia conservadora e cujas ideias foram citadas pelo vice-presidente JD Vance, argumentam que a democracia nos EUA deveria ser substituída por uma "monarquia" liderada pelo que chamam de CEO, uma espécie de diretor-executivo. O que você diria àqueles que, como ele, defendem que ter um "CEO eficiente" no comando do governo é melhor para o povo?

Giroux - Este é um exemplo clássico do tipo de discurso que morreria em uma democracia vibrante. O fato de que alguém com essas ideias esteja recebendo uma plataforma é chocante.

O que você diria a alguém que argumenta que a democracia está morta, e que o que realmente precisamos é nos acostumar com as ditaduras, porque elas funcionam, e que deveriam ser lideradas por pessoas como Elon Musk?

BBC News Mundo - Você escreveu durante anos sobre a "cultura da crueldade". E afirma que ela "prospera quando os medos compartilhados substituem as responsabilidades compartilhadas". Quais são esses medos, e que responsabilidades compartilhadas eles substituem?

Giroux - As responsabilidades que eles substituem são aquelas que levam a sério os direitos sociais, políticos e econômicos, e os valores compartilhados, como a compaixão, o cuidado com o outro, o senso de comunidade, o reconhecimento do sofrimento alheio e a necessidade de enfrentá-lo e acabar com ele; a necessidade de eliminar as bases do sofrimento e da violência.

Desde a ascensão do neoliberalismo na década de 1980, este argumento é visto como uma fraqueza, e a bondade é vista como a virtude dos tolos.

Devemos nos perguntar o que aconteceu com esses princípios, com essas virtudes e valores como a compaixão, a confiança, a bondade, o cuidado com o outro, a justiça, a igualdade e a inclusão, se eles estão sendo destruídos ou não, por quem e no interesse de quem.

BBC News Mundo - Ao longo da história política americana, os presidentes de um partido ou de outro enfatizaram a ideia da autoridade moral dos Estados Unidos, de que eles deveriam servir de exemplo para o mundo. Ainda é assim?

Giroux - Não. Neste sentido, os EUA traíram a si mesmos, caíram em uma forma de autossabotagem.

Embora nunca tenha sido um país verdadeiramente democrático: foi construído sobre as costas de escravizados, o direito de voto foi negado às mulheres por muito tempo, e reinventou continuamente uma forma de colonialismo que atende pelo nome de Destino Manifesto ou excepcionalismo americano.

Hoje, basta ver o que está acontecendo em Gaza. Como esta noção de excepcionalismo americano pode ser levada a sério?

Uma mulher e uma criança caminhando de mãos dadas entre edifícios destruídos por ataques israelenses em Beit Lahia, uma cidade no norte da Faixa de Gaza, em 18 de fevereiro de 2025  (Foto: Abd Khaled/Anadolu via Getty Images)

Crédito,Getty Images

Legenda da foto,A ideia de construir uma 'Riviera do Oriente Médio' sobre os escombros de Gaza faz parte da 'cultura da crueldade', segundo Henry A. Giroux

BBC News Mundo - Sabemos que o lema de Trump é "Make America Great Again" (Maga). O que você acha que grandeza significa neste contexto?

Giroux - Acho que significa "tornar os EUA brancos novamente", além de eliminar todos aqueles direitos que foram conquistados desde a década de 1950 para as mulheres, a comunidade LGBTQ, etc., e revertê-los.

BBC News Mundo - No entanto, embora o voto branco tenha sido o seu voto mais expressivo, Trump fez um avanço histórico no que diz respeito ao apoio dos latinos nas urnas, especialmente entre os homens.

Giroux - Isso se deve a vários fatores.

Por um lado, a democracia como alternativa ao fascismo deixou de ser atraente para muitos. A democracia não significa nada quando você não tem comida, assistência médica adequada, cuidados infantis adequados. E nesse estado de ansiedade absoluta, muitos imigrantes votaram em Trump.

Por outro lado, a linguagem do medo e da intolerância foi tão bem-sucedida na esfera da mídia de Trump que acho que as pessoas acabaram basicamente a internalizando.

O problema não é que outros venham e tomem seus empregos. O problema nos EUA é a enorme desigualdade e a concentração de poder em poucas mãos, o que resulta em menos serviços públicos, à destruição do Estado de bem-estar social e à criminalização dos problemas sociais.

A noção de comunidade se torna vazia porque vivemos em uma sociedade que nos diz que o individualismo é tudo, que todos os problemas são individuais.

Então você teme a horda de invasores. É a linguagem do poder, e as pessoas acabam comprando o discurso.

BBC News Mundo - Mas também parece haver uma espécie de ciclo de feedback. Quanto mais polarizado o discurso, mais ampla parece ser a base daqueles que o apoiam, e vice-versa. É apenas uma percepção?

Giroux - Não, isso é absolutamente correto.

BBC News Mundo - E como você neutraliza a escalada?

Giroux - Antes de mais nada, você precisa nomear o problema. Não podemos simplesmente dizer que Trump e o seu governo são neofascistas.

Isso é verdade, mas o que realmente precisamos falar é sobre a maneira como a democracia foi subvertida, e começar a detalhar na linguagem da vida cotidiana o impacto disso: escolas ruins, inflação, preços mais altos dos alimentos, intolerância...

Precisamos ressuscitar a linguagem da democracia em termos de valores que as pessoas possam compartilhar e com os quais possam se identificar.

Também precisamos de um movimento amplo e multirracial da classe trabalhadora. Os movimentos isolados não funcionam. E de uma demonstração maciça de resistência coletiva.

BBC News Mundo - Você acredita que é algo que está tomando forma?

Giroux - Não vejo isso acontecendo nas próximas duas semanas, mas (o governo Trump) está trabalhando em uma velocidade tão grande para impor um certo grau de fascismo neste país que acho que os resultados serão esmagadores nos próximos seis meses, e certamente nos próximos dois anos.

Isso vai gerar um enorme ressentimento, e as pessoas vão acordar. E o grupo que mais vai acordar é o dos jovens, os jovens que se sentem alienados da política de Trump, e que percebem que estão sendo excluídos do roteiro da democracia.

É tudo uma questão de vingança. É a política da vingança, do ódio, da crueldade e do racismo.