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Por que a ONU fica em Nova York — e quais poderes os EUA têm sobre isso

Há também regras de que o distrito é "inviolável", inclusive por autoridades judiciais, militares ou policiais dos Estados Unidos

PEDRO RIBEIRO/DA EDITORIA/COM BBC 21/09/2025
Por que a ONU fica em Nova York — e quais poderes os EUA têm sobre isso
No acordo assinado em 26 de junho de 1947 entre a cúpula da organização e o governo norte-americano, foram definidas regras explicitadas em 28 cláusulas | Getty Imagens

A imponente sede da Organização das Nações Unidas (ONU) em Nova York, palco anual da Assembleia Geral que reúne líderes de todo o planeta, é um símbolo do diálogo entre os povos e goza de status privilegiado dentro do território norte-americano.

No acordo assinado em 26 de junho de 1947 entre a cúpula da organização e o governo norte-americano, foram definidas regras explicitadas em 28 cláusulas. Uma delas deixa claro que o "distrito-sede" está sob controle e autoridade da ONU.

Há também regras de que o distrito é "inviolável", inclusive por autoridades judiciais, militares ou policiais dos Estados Unidos.

E que autoridades norte-americanas "não podem colocar nenhum impedimento ao trânsito para ou a partir do distrito" a representantes de países-membros ou oficiais da ONU, nem às famílias deles.

O mesmo vale para a imprensa credenciada pela instituição, integrantes de organismos não-governamentais que estejam atuando como consultoras da entidade e outras pessoas convidadas pela administração do edifício-sede.

"Leis e regulamentos em vigor nos Estados Unidos referentes à entrada de estrangeiros não deverão ser aplicados de forma a interferir nos privilégios [citados]", diz outra seção do documento.

Em outras palavras, é como se o quartel-general da ONU em Nova York fosse um território livre das leis do país onde ele se encontra — os Estados Unidos.

Construída entre 1948 e 1952, a sede foi projetada por um grupo de 12 arquitetos — o brasileiro Oscar Niemeyer (1907-2012), integrou a equipe, coordenada pelo norte-americano Wallace Harrison (1895-1981).

O time era completamente internacional, com representantes de países como China, União Soviética, Austrália, Uruguai e Suécia, entre outros.

Os membros do conselho responsável pela elaboração dos planos para a construção da sede da ONU em Manhattan. São treze homens de terno, atrás de maquetes do projeto, em uma foto em preto e branco

Crédito,ONU/Peter Rosen Prod

Legenda da foto,Nesta foto do grupo de arquitetos que projetaram a sede da ONU, o brasileiro Oscar Niemeyer é o segundo, da esquerda para à direita, no primeiro plano. Wallace Harrison é o quarto a partir da esquerda, no fundo

A escolha de Nova York para sediar o organismo tem explicações históricas, conjunturais e econômicas.

A diplomacia internacional "via com bons olhos a sede ser nos Estados Unidos, porque isso garantiria um engajamento contínuo dos americanos com a instituição", diz o jurista Luís Fernando Baracho, professor de direito internacional e de relações internacionais da Universidade São Judas Tadeu e um dos editores do blog Fora da Cadência, sobre política internacional.

Historicamente, veiculou-se a narrativa, inclusive em veículos de imprensa da época, de que a cidade era a ideal porque Nova York respirava cosmopolitismo e significava acolhimento aos estrangeiros, com sua população formada após levas de imigrantes de várias partes do planeta.

A conjuntura era justamente o pós-Segunda Guerra, quando a ONU foi criada. Com a Europa destruída pelo terror bélico do conflito mundial e os Estados Unidos já consolidado como grande potência, pareceu ser a escolha natural que a organização se instalasse em solo norte-americano.

O principal encontro que acabaria criando a ONU, a Conferência de São Francisco de 1945, também ocorreu nos Estados Unidos.

Por fim, a explicação econômica é que havia condições logísticas e de infraestrutura adequadas para abrigar uma organização de grande porte ali. Além de investimentos, é claro.

"Para os Estados Unidos, era importante porque demonstrava que eles participariam [do novo organismo] como a principal potência do mundo", diz o cientista político Leonardo Bandarra.

Europa ou Novo Mundo?

Considerada a predecessora da ONU, a Liga das Nações era baseada em Genebra, na Suíça.

"Pelo desenho, a ONU não começou do zero. Ela herdou a estrutura da Liga das Nações", observa Baracho. "Mas ao herdar a estrutura, colocou-se a questão: permaneceria em Genebra ou iria para outro lugar?"

Contudo, havia pressão internacional para uma nova sede.

"A principal opositora [à permanência da sede em Genebra] era a União Soviética", lembra Baracho. Isto porque, em 1939, o Estado socialista havia sido expulso da Liga das Nações.

Para a narrativa soviética, portanto, era importante que a instituição não representasse uma continuidade. Nações latino-americanas também queriam que a sede não ficasse na Europa.

A primeira Assembleia Geral da ONU ocorreu em Londres no ano de 1946. O evento que marcou o início das atividades da instituição foi abrigado pelo Westminster Central Hall, uma igreja metodista.

Participantes da primeira sessão da Assembleia Geral das Nações Unidas, em 10 de janeiro de 1946, no Central Hall em Londres

Crédito,ONU/Marcel Bolomey

Legenda da foto,A primeira sessão da Assembleia Geral das Nações Unidas foi aberta em 10 de janeiro de 1946, no Central Hall em Londres

"Trata-se de um prédio belíssimo e que não foi construído apenas para serviços religiosos. Tem uma baita estrutura", diz Baracho.

Para o QG definitivo, São Francisco aparecia como potencial candidata, afinal ali havia sido realizada a conferência que redigiu a carta de fundação da ONU.

"Existiam outras concorrentes [dentro dos Estados Unidos]", ressalta o professor, citando Filadélfia e Nova York como as principais.

"Não estava escrito nas estrelas que seria em Nova York", comenta ele. Mas as condições logo fizeram com que a cidade despontasse como favorita.

"Era um dos epicentros da construção civil mundial, já era um ícone de urbanização", lembra, citando a importância nova-iorquina dentro da sociedade norte-americana, então se consolidando como "a grande economia do mundo".

"E havia recursos. Isso é importante", acrescenta. No caso, a construção da sede também foi vista como estratégica pelo mercado imobiliário da Ilha de Manhattan.

"A região [onde seria erguido o distrito da ONU] era um lugar muito pobre, cheio de matadouros. Tinha ali a 'rua dos bodes', tinha um monte de bode. Era um centro logístico, entreposto de alimentos, em situação muito precária", descreve Baracho.

Foto histórica mostra edifícios e prédios industrias no local onde seria depois construída a sede da ONU em Nova York

Crédito,Project on UN History/Universidade de Cambridge

Legenda da foto,O local da nova sede da ONU como era em agosto de 1946, cerca de um mês após o início dos trabalhos de demolição

Para o local, havia um empreendimento de urbanização planejado pelo empresário do ramo da incorporação imobiliária William Zeckendorf (1905-1976). "Mas o cara não tinha grana suficiente para fazer o projeto dele. Ele levou a ideia de pegar uma área enorme e vender para a construção da sede da ONU", conta Baracho.

O empresário John D. Rockefeller Jr. (1874-1960), cuja família já estava envolvida em filantropia e projetos da sociedade civil, efetuou a compra e repassou a gleba para a organização. Então os países-membros se cotizaram para construir o distrito.

Essa doação teria sido, no fim das contas, o golpe fatal para a vitória de Nova York como endereço da ONU.

De acordo com o cientista político Márcio Coimbra, ex-diretor da Agência Brasileira de Promoção de Exportações e Investimentos (Apex), a cidade venceu as demais candidaturas por dois fatores: o papel assumido pelos Estados Unidos no pós-Guerra e o investimento que permitiu a aquisição das terras.

"A decisão [do local da sede] estava empacada até que uma doação de US$ 8,5 milhões feita pela família Rockefeller permitiu a compra do terreno às margens do East River em Manhattan", ressalta Coimbra.

"Este gesto concreto, somado à oferta da cidade de Nova York, resolveu a questão prática e financeira. Foi uma decisão tomada por conveniência prática, impulso diplomático e uma demonstração de soft power norte-americano no novo ordenamento mundial", completa.

Outras sedes

Oitenta anos depois, contudo, o cenário faz com que a instituição repense o simbolismo de concentrar as atividades mais importantes, como a Assembleia Geral, nos Estados Unidos.

Embora ainda de forma velada, diplomatas, membros de delegações da ONU e funcionários do alto escalão da organização admitem que a meta é cada vez mais valorizar os outros endereços da entidade, sobretudo o de Nairóbi, no Quênia.

Além de escritórios regionais que abrigam repartições específicas da ONU ao redor do mundo, há três locais que têm o status de sedes regionais — ou quartéis-generais regionais. São os escritórios de Genebra, de Viena e de Nairóbi.

Bandarra, cientista político que frequenta essas instituições pelo menos duas vezes por ano por conta de suas pesquisas, conta que tem observado o crescimento de "discussões" sobre um uso mais intenso dessas sedes regionais para reuniões mais amplas, diminuindo um pouco o peso do escritório em solo americano.

Ele argumenta que esse movimento é tratado como um meio de facilitar o acesso a pessoas e organizações sociais que têm dificuldade de obter visto para entrar nos Estados Unidos além de descentralizar também a geografia do poder decisório.