Mundo

Trump cita 'inimigo interno' e diz que cidades americanas serão 'campo de treinamento' para militares

Generais e almirantes de diferentes partes do mundo ouviram em silêncio os comentários de Trump e Hegseth

PEDRO RIBEIRO/DA EDITORIA/COM BBC 01/10/2025
Trump cita 'inimigo interno' e diz que cidades americanas serão 'campo de treinamento' para militares
O presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, afirmou que pretende usar cidades americanas como "campos de treinamento" para as Forças Armadas | AFP via Getty Images

O presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, afirmou que pretende usar cidades americanas como "campos de treinamento" para as Forças Armadas.

Em discurso incomum na terça-feira (30) a centenas de líderes militares americanos trazidos de diferentes partes do mundo, Trump classificou "distúrbios civis" como "inimigo interno". Ele acrescentou que a situação "não sairá do controle quando vocês estiverem envolvidos".

A declaração veio após Trump enviar tropas da Guarda Nacional para Washington D.C., Los Angeles e Portland sob a justificativa de reprimir crimes e reforçar a fiscalização da imigração.

Em seu discurso aos líderes militares, Trump (Partido Republicano) repetiu suas críticas às cidades administradas pelo Partido Democrata, incluindo San Francisco, Chicago, Nova York e Los Angeles, e indicou que manteria a política de usar forças militares para aplicar a lei.

"São lugares muito inseguros e vamos resolvê-los um por um", disse Trump, acrescentando que seria "uma parte importante para algumas das pessoas nesta sala".

"É uma guerra interna. Controlar o território físico das nossas fronteiras é essencial para a segurança nacional. Não podemos deixar essas pessoas entrarem", acrescentou Trump.

O secretário de Defesa dos EUA, Pete Hegseth, também se manifestou, declarando o fim da cultura "woke" no Pentágono e anunciando novos padrões de aptidão física "de nível masculino" para oficiais militares.

Segundo o dicionário americano Merriam-Webster, o termo "woke" é usado com desaprovação para referir-se a alguém politicamente liberal (em temas como justiça racial e social), especialmente de forma considerada insensata ou extremista. Ou seja, para algumas pessoas, ser "woke" é ter consciência social e racial, questionando paradigmas e normas opressores historicamente impostos pela sociedade. Já para outros, o termo descreve hipócritas que acreditam que são moralmente superiores e querem impor suas ideias progressistas sobre os demais.

O governador de Illinois, J.B. Pritzker (Partido Democrata), acusou Trump de usar tropas militares e o Serviço de Imigração e Alfândega (ICE, na sigla em inglês) para "invadir e perturbar" cidades dos EUA.

"Nossas tropas e nossa nação merecem mais do que você agindo como um tirano mesquinho", disse Pritzker, em publicação na rede social X.

A segurança foi extremamente rigorosa para o discurso na Base do Corpo de Fuzileiros Navais de Quantico (Marine Corps Base Quantico, em inglês), uma extensa instalação de 55 mil acres na Virgínia. A cúpula representou uma rara reunião de tantos oficiais seniores em um único local.

Generais e almirantes de diferentes partes do mundo ouviram em silêncio os comentários de Trump e Hegseth.

O evento começou com um discurso de Hegseth, que anunciou que as Forças Armadas dos EUA exigirão que os combatentes atinjam o "mais alto padrão masculino" nos testes de aptidão física.

Hegseth reconheceu que a medida pode impedir a participação de algumas mulheres no serviço militar.

"Os padrões devem ser uniformes, neutros em termos de gênero e elevados", disse Hegseth à multidão.

Ele apresentou sua visão de mudança cultural no Pentágono e de um maior "ethos guerreiro". Trump, que falou em seguida, reiterou essa visão.

O discurso de Trump focou na cultura militar dos EUA, treinamentos, lideranças e "consertar décadas de decadência", incluindo programas de inclusão e diversidade, e a promoção de um corpo de oficiais "avesso a riscos".

Ele afirmou que esses oficiais estão sendo desestabilizados por "distrações relacionadas às mudanças climáticas", "lixo 'woke'" e pelo medo de serem rotulados como líderes "tóxicos".

Além de anunciar mudanças nos padrões de aptidão física, Hegseth prometeu o fim da "era das aparências pouco profissionais" — incluindo exceções que permitem barba — e dos procedimentos de denúncias anônimas, como parte de mudanças mais amplas no departamento.

Tammy Duckworth, veterana militar e senadora de Illinois pelo Partido Democrata, disse à BBC que se preocupa com o impacto das declarações de Hegseth no futuro das Forças Armadas dos EUA.

"Os comentários dele hoje vão afetar todos os tipos de recrutamento, não apenas de mulheres. Não conheço pessoas que queiram servir em um Exército que está sendo usado de teatro político", disse ela.

Duckworth afirmou que Hegseth tentava afastar mulheres e pessoas não brancas das Forças Armadas.

"Para um homem que não está qualificado para o próprio cargo, é bastante discriminatório falar sobre mulheres que são qualificadas para exercer suas funções", disse Duckworth.

O secretário de Defesa também comentou a demissão de comandantes seniores, afirmando que agiu segundo "seu instinto" e eliminou militares que, em sua avaliação, não se afastariam de políticas de governos anteriores.

"Tenho certeza de que mais mudanças de liderança serão feitas", disse Hegseth.

Nenhum motivo oficial foi divulgado quando os generais foram convocados com pouca antecedência na semana passada, gerando especulações sobre o que Trump e Hegseth diriam.

Falando sobre as reformas de Hegseth, Trump disse que o foco em "aptidão física, capacidade e caráter" não tem o objetivo de "proteger os sentimentos de ninguém".

"É para proteger nosso país. Não seremos politicamente corretos quando se trata de defender a liberdade americana", disse.

O presidente também aplaudiu sua decisão de renomear o Departamento de Defesa como Departamento de Guerra.

Ele afirmou que o título secundário para o Pentágono é "bastante popular", mesmo entre seus críticos, e contribuiu para o que ele afirma repetidamente serem números de recrutamento em forte alta.

"É uma reafirmação histórica de nosso propósito, nossa identidade e nosso orgulho", disse.

O secretário de Defesa dos EUA, Pete Hegseth, discursa na Base do Corpo de Fuzileiros Navais de Quantico, em Quantico, Virgínia, em 30 de setembro de 2025

Crédito,AFP via Getty Images

Houve pouca reação visível ou audível dos generais e militares de alta patente presentes, que permaneceram em silêncio, exceto pelo som de centenas de botas estalando em posição de sentido quando Hegseth subiu ao palco e quando saiu. Muitos fizeram anotações em cadernos militares enquanto ele falava.

Trump assumiu o palco em seguida, brincando: "Nunca entrei em uma sala tão silenciosa antes." E acrescentou: "Juntos, estamos reavivando o espírito guerreiro. E esse é o espírito que venceu e construiu esta nação".

Em um discurso amplo, o presidente dos EUA destacou conquistas das Forças Armadas americanas — e de seu segundo mandato como presidente.

Trump afirmou ter "resolvido" sete guerras e esperava por uma oitava — caso o Hamas aceitasse a proposta para Gaza que apresentou junto a Israel.

Hegseth no palco durante discurso na Base do Corpo de Fuzileiros Navais de Quantico, em Quantico, Virgínia, em 30 de setembro de 2025

Crédito,Getty Images

Antes do evento, J.D. Vance, vice-presidente dos EUA, acusou a imprensa de transformar a reunião em uma "grande notícia", ressaltando que não era "particularmente incomum" que os generais se encontrassem com Hegseth pessoalmente.

Alguns observadores discordaram. Giuseppe Cavo Dragone, almirante italiano e presidente do Comitê Militar da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan), disse à agência de notícias Associated Press (AP): "Em meus 49 anos de serviço, nunca vi isso antes."

Mark Cancian, do Center for Strategic and International Studies (Centro para Estudos Internacionais e Estratégicos, o CSIS na sigla em inglês), afirmou à agência Reuters: "É inexplicável por que isso não foi feito virtualmente, evitando que oficiais seniores percam tanto tempo em viagens."

Explicando previamente o objetivo da reunião, Trump disse à emissora americana NBC News que seria um exercício para gerar "esprit de corps" (espírito de equipe) — sugerindo que via uma oportunidade de motivar suas tropas.

Segundo relatos, participaram oficiais vindos de bases militares na Europa, na Coreia do Sul e no Oriente Médio.

Muitos deles chegaram horas antes do evento e foram acomodados no auditório de acordo com sua área de atuação: Exército, Corpo de Fuzileiros Navais, Marinha, Força Aérea e Força Espacial, facilmente identificáveis pelos uniformes.

Alguns exibiam medalhas de campanha, mostrando que haviam servido no Afeganistão, no Iraque ou na guerra americana mais ampla contra o terrorismo, iniciada após os ataques de 11 de setembro de 2001.