O crescente emprego do Direito Penal para a solução dos mais diversos problemas sociais é característica marcante da chamada “sociedade de risco”[1], que dá origem à conhecida “teoria da expansão do direito penal”[2], desenvolvida pelo penalista espanhol Jesús María Silva Sánchez.
Inserto neste contexto expansionista está o “direito penal econômico”, o qual figura, na linha do que temos sustentado, como seara rebelde que ostenta em seu núcleo a palavra ‘penal’ sem, no entanto, submeter-se às balizas da dogmática própria desse ramo do Direito.[3]
De igual forma, em ascendente geométrica, o crime de lavagem de dinheiro, econômico por excelência, ganha contornos inimagináveis, de modo a entrar em conflito até mesmo com as bases fáticas que lhe deram origem: crime parasitário destinado a coibir o usufruto de valores ilícitos provenientes do tráfico de drogas (leis de primeira geração).
No Brasil, a lavagem já nasce como legislação de segunda geração, na medida em que restrita a um específico rol de delitos antecedentes. Sem embargo, com o constante alargamento do Direito Penal, em 2012, por meio da Lei Federal n. 12.683, o tipo de injusto ganha ainda mais corpo, uma vez que o rol taxativo de delitos prévios à branqueamento é excluído, e a elementar “crimes”, substituída por “infrações penais”.
Neste novo cenário, portanto, até mesmo as contravenções penais bastam para tipificar o delito em estudo, situação que passa configurar verdadeiro e lamentável paradoxo[4] no sistema repressivo-penal: o crime acessório/parasitário pode gozar, em determinados casos, de maior reprimenda que a infração principal.
A despeito dessas várias questões legais, que conferem ao tipo de injusto maior alcance, no específico enfoque da autolavagem vê-se uma ampliação ainda maior, mesmo que sem qualquer previsão legal para tanto.
De fato, não existe no direito brasileiro a figura da autolavagem, o que já seria fundamento bastante para não se admitir tal crime – conclusão que deriva do princípio da estrita legalidade.[5] Nesse contexto, como bem salientam Juarez Tavares e Antonio Martins, ao não criminalizar a autobranqueamento, o legislador impede a possibilidade de interpretação extensiva ou ampliativa da legislação penal brasileira para alcançar o autor do crime antecedente.[6] Não obstante a incontestável ausência de proibição, a doutrina brasileira, de modo dogmaticamente incoerente, limita-se a afirmar que qualquer pessoa pode ser sujeito ativo do delito de lavagem de dinheiro, já que o legislador brasileiro não estabeleceu nenhuma restrição.
André Luís Callegari, por exemplo, a representar posição majoritária, sustenta que o tipo penal do artigo 1º da Lei Federal 9.613/1998 não fez qualquer ressalva à punição do autor do crime antecedente, de sorte que, para ele, se pode “concluir que o legislador não excluiu do círculo de possíveis sujeitos ativos aquelas pessoas que tenham participado como autores ou participes no delito prévio que deu origem aos bens jurídicos objetos de lavagem”.[7]
O argumento não convence, porquanto omissão legislativa não cria crime. O que não está proibido está permitido. Não basta a um ordenamento que tipifique a lavagem de dinheiro para que, de forma automática, esteja proibida, por analogia, a autolavagem. Se a punição da autolavagem estivesse albergada no tipo de injusto da lavagem lato sensu, por que razão países como Espanha, Portugal e Itália teriam se empenhado em criar um tipo específico, que expressamente permitissem tal incriminação?
De igual forma, se bastasse apenas a previsão do crime de branqueamento para punir, também, o autor do delito antecedente – a título de autolavagem –, por que motivo o GAFI teria requerido da Argentina uma adequação de seu ordenamento, a fim de que passasse a prever o delito “autoblanqueo”?[8]
A questão é, pois, de legalidade/tipicidade, motivo pelo qual não seriam necessários maiores argumentos para se concluir que resultam indevidas as condenações, pelo crime de lavagem de capitais, do autor do crime antecedente.
Afora, no entanto, essa relevante questão de legalidade, autores brasileiros que trabalham com o tema acabam por ser “dogmaticamente contraditórios” ao fundamentarem a possibilidade de punição do autor do crime antecedente também pelo branqueamento. André Callegari, por exemplo, posto que admita, como visto, a figura da autolavagem[9], na nova edição de seu livro “Lavagem de dinheiro (com a jurisprudência do STF e do STJ), escrito em coautoria com Raul Marques Linhares, já na introdução da obra, admite que:
[...] o gasto de significativas quantias em dinheiro e o levado acréscimo patrimonial sem lastro (sem que o agente possua ganhos de capital lícitos e devidamente declarados) pode ser considerado um indicativo de prática de conduta ilícita, fator apto a despertar desconfianças e a justificar a devida apuração, por órgãos de controle, da origem desse patrimônio.[10]
Ainda de acordo com os autores, os atos de branqueamento apenas se justificam em razão de um “entrave prático: saber-se como fazer proveito do patrimônio obtido ilicitamente sem que isso desperte a atenção de terceiros (especialmente de órgãos de controle e autoridades persecutórias do de Estado”[11], visando-se “o gozo desses valores sem que isso importe em um alerta às autoridades investigativas”.[12]
A tese defendida por André Callegari e Raul Marques Linhares, a qual reflete o posicionamento majoritário da doutrina brasileira, põe em relevo a necessidade de reanálise da fundamentação da “autolavagem”, uma vez que os argumentos utilizados pelos autores, antes de darem coerência à incriminação do autobranqueamento, evidenciam uma clara e inconstitucional hipótese de imposição de produção de prova contra si mesmo, em franca violação ao nemo tenetur se detegere.
Isso porque, ao criminalizar – via jurisprudência e doutrina – o crime de autolavagem, os intérpretes do Direito (e não o legislador) estão a exigir que o autor do crime antecedente se coloque em evidência e chame a atenção para si, haja vista a prática de qualquer ato tendente a tornar seguro o proveito do crime anterior dar ensejo a um novo delito autônomo de lavagem, o que é inconcebível sob o ponto de vista constitucional.
Como já explicamos, “proibir o agente de um delito prévio de tomar medidas e precauções para tornar seguro o proveito dele decorrente é o mesmo que obrigá-lo a não fruir da vantagem econômica do crime ou forçá-lo a fazê-lo de modo ‘escancarado’, ‘aberto’, de forma a, por via oblíqua, constrangê-lo, mesmo que indiretamente, a produzir provas contra si mesmo, em franca agressão ao sagrado postulado do nemo tenetur se detegere”.[13]
Acaso não se entendesse possível o afastamento da punição com base na hipótese de inexigibilidade de conduta diversa, dever-se-ia levar em consideração, ainda, a tese de que a lavagem nada mais é que um “ato posterior copenado”, visto que os atos posteriores destinados à fruição do proveito do crime – inclusive por meio de ocultação, dissimulação ou mascaramento – estão abarcados na reprovabilidade da punição do delito antecedente, isto é, constituem um “post factum impunível”.
Para finalizar, destaca-se que os argumentos contrários a esta tese – geralmente relacionados à diversidade de bens jurídicos tutelados pelo crime antecedente e pela lavagem[14]– não são suficientemente sólidos, para além de mostrarem-se dogmaticamente incoerentes.
Dessarte, à falta de uma norma penal a incriminar a autolavagem, a interpretação a ser feita deve ser favorável ao réu, e não contrária a ele, razão pela qual se defende, por coerência, a mesma solução que o legislador empregou ao tipificar o delito de favorecimento real[15], excluindo a responsabilidade penal do coator ou receptador.
Como se pôde ver, a punição da autolavagem não encontra respaldo legal, além de ser incoerente com a dogmática penal, por contrariar o princípio do nemo tenetur se detegere e ignorar, por completo, a regra da consunção, perfeitamente aplicável à hipótese em questão, que nada mais é do que um conflito aparente de normas.
Filipe Maia Broeto é advogado criminalista, professor de graduação e pós graduação, mestrando em Direito Penal Econômico (Unir-Esp), especialista em Direito Penal Econômico (PUC-MG), Ciências Penais (UCAM) e Processo Penal (Coimbra-IBCCRIM) e autor de livros e artigos jurídicos