Política

'Nossa luta contra Bolsonaro é a mesma que fizemos contra Lula e Dilma', diz cacique Raoni

13/10/2019

A concessão do último Prêmio Nobel da Paz ao primeiro-ministro da Etiópia, Abiy Ahmed, frustou quem esperava a vitória do cacique kayapó Raoni Metuktire — torcida impulsionada pelo embate que o líder indígena brasileiro travou nas últimas semanas com o presidente Jair Bolsonaro.

Em entrevista à BBC News Brasil, Raoni diz que não ficou abalado com o resultado da premiação e nem com as críticas de Bolsonaro. "A visão de um líder indígena não representa a de todos os índios brasileiros. Muitas vezes alguns desses líderes, como o cacique Raoni, são usados como peça de manobra por governos estrangeiros na sua guerra informacional para avançar seus interesses na Amazônia", disse o presidente na Assembleia Geral da ONU, em setembro.

"Bolsonaro pode falar mal de mim ou não, vou continuar lutando para que haja floresta e para que haja natureza para a geração por vir", rebateu o líder kayapó.

O cacique falou à BBC News Brasil na sexta-feira (11/10) de Peixoto de Azevedo (MT), cidade mais próxima à sua aldeia, na Terra Indígena Capoto/Jarina. Ele respondeu as perguntas em seu idioma, o kayapó, e um assessor lhe serviu de intérprete.

Embora a conversa fosse por telefone, o cacique parecia discursar a uma multidão: falava alto e se valia de técnicas da oratória kayapó, como pausas e mudanças bruscas no tom da voz. Na entrevista, criticou índios que têm se aproximado do presidente, tratou de comunidades nativas favoráveis ao garimpo e disse que sua relação com o governo federal começou a se deteriorar nos anos Lula e Dilma, com a construção da hidrelétrica de Belo Monte.

"Todos os presidentes anteriores nos apoiaram. A partir de Lula, todos geraram divisão entre o índio e o governo", afirmou.

Infância e juventude

Segundo um site mantido pela ONG francesa Planète Amazone, parceira de longa data de Raoni, ele nasceu por volta de 1932 na aldeia Krajmopyjakare, no nordeste do Mato Grosso. Na época, o povo kayapó (autodenominado mebêngôkre) era nômade e não tinha contato regular com o mundo exterior.

Naqueles anos, os irmãos Orlando, Cláudio e Leonardo Villas-Bôas percorriam a região a serviço do governo federal, identificando áreas onde autoridades pretendiam realizar obras e instalar núcleos habitacionais. Numa dessas andanças, em 1954, os irmãos Villas-Bôas conheceram Raoni. Foi com eles que o líder kayapó ampliou suas noções sobre a língua portuguesa e sobre o mundo dos brancos.

Em 1958, o indígena o acompanhou o trio numa expedição para demarcar o centro geográfico do Brasil, às margens do rio Xingu, em cuja bacia os kayapós vivem até hoje. O país era então presidido por Juscelino Kubitschek, que já estivera o próprio com Raoni em 1950.

Em 1964, o cacique encontrou o rei Leopoldo 3º da Bélgica, que visitou o Brasil 13 anos após deixar o trono. Foi o primeiro de vários líderes estrangeiros com que ele teve contato, lista que inclui dois papas — João Paulo 2º e Francisco — e três presidentes da França — Fraçois Mitterrand (1981-1995), Jacques Chirac (1995-2007) e o atual mandatário, Emmanuel Macron.

'Quem furou a barriga dele não fui eu'

No mesmo pronunciamento em que criticou os laços de Raoni com autoridades estrangeiras, Bolsonaro elogiou a youtuber indígena Ysani Kalapalo, que o acompanhou na viagem à ONU, em Nova York. O presidente citou uma carta em que uma organização de indígenas favoráveis ao agronegócio apoiava a presença da jovem na comitiva presidencial. "Acabou o monopólio do senhor Raoni", afirmou.

Após a fala, as principais organizações indígenas brasileiras saíram em defesa de Raoni e disseram que Ysani não tem representatividade no movimento.

Questionado pela BBC News Brasil sobre o discurso do presidente, Raoni diz que não deu bola para as críticas e que nunca pretendeu ser um porta-voz de todos os indígenas. "Quando Bolsonaro tenta apagar minha imagem ou criticar minha pessoa, isso não tem a menor importância para mim."

ndagado sobre outra fala de Bolsonaro a seu respeito, o cacique abandonou o tom ameno. Dias depois do discurso na ONU, quando já havia voltado ao Brasil, o presidente disse que Raoni "vive tomando champagne em outros países por aí".

"É tudo conversa fiada do Bolsonaro, é mentira dele. Bolsonaro tem a cabeça de um drogado. Nunca tomei cerveja ou bebida alcoólica", afirmou o cacique, aos berros.

Raoni diz que não esperava os ataques repetidos do presidente. "Foi uma surpresa, porque eu não fiz nada contra o Bolsonaro, nunca fiz mal à família dele. Nunca quis esse conflito. Quem furou a barriga dele não fui eu."

Fama internacional

A fama internacional de Raoni foi catapultada por um encontro com o cineasta belga Jean-Pierre Dutilleux. Os dois se conheceram em 1973 e, anos depois, o cineasta gravou um documentário sobre o indígena e seu povo.  

Aclamado pela crítica, o filme "Raoni" teve sua versão em inglês narrada pelo ator americano Marlon Brando. Foi indicado ao Oscar e exibido no Festival de Cannes. No Brasil, ganhou o prêmio de melhor filme em Gramado.

Nos anos 1980, Dutilleux apresentou Raoni ao cantor britânico Sting. Vários anos antes da popularização das marchas pelo clima e das conferências globais sobre meio ambiente, a dupla rodou o mundo pedindo apoio à preservação das florestas e aos direitos dos povos indígenas.

Eram tempos em que o agronegócio e a mineração se expandiam velozmente pela Amazônia, favorecidos por grandes obras e políticas da ditadura militar (1964-1985). No norte do Mato Grosso, só não virariam fazendas as áreas de floresta demarcadas como terras indígenas ou reservas ambientais.

Naqueles anos, garimpeiros começaram a chegar em maior número às terras dos kayapós — e, desde então, jamais saíram completamente. Hoje eles têm o respaldo de alguns líderes do grupo, que recebem dinheiro dos garimpeiros em troca da permissão para atuar no território. A atividade é ilegal.

A situação é mais grave na Terra Indígena Kayapó, onde os rios Fresco e Branco foram contaminados por mercúrio e desfigurados por retroescavadeiras. O governo Bolsonaro pretende enviar ao Congresso um Projeto de Lei para legalizar o garimpo em terras indígenas e afirma que a mineração beneficiará as comunidades.

Já a maioria das comunidades kayapós — que hoje somam cerca de 11 mil integrantes — é contra a atividade, assim como as principais organizações indígenas brasileiras.

Para Raoni, caso o projeto seja aprovado, cada grupo será livre para decidir sobre a atividade. "Se outros indígenas quiserem garimpar nas suas terras, a autonomia vai ser deles. Mas eles vão ter problemas. Se o garimpo entrar, vai acabar a floresta e não vai ter mais animais para eles caçarem, não vai ter mais rio para pescarem e poderem sobreviver. A natureza é o mercado do indígena. Todos os que fizerem isso vão acabar destruindo a própria casa. Os que estão junto do Bolsonaro vão destruir tudo."

Ele afirmou que uma eventual legalização do garimpo não impactaria sua terra. "Nunca vou aceitar que madeireiro entre na minha terra. Nunca vou aceitar que garimpeiro garimpe na minha terra. Nunca vou autorizar um pescador a entrar no meu rio Xingu."

Constituição de 1988

Enquanto se projetava no exterior ao lado de Sting, Raoni também se tornava cada vez mais conhecido no Brasil. Na Assembleia Constituinte, o líder levou dezenas de guerreiros kayapós a Brasília para pressionar os congressistas a aprovar uma Constituição favorável às comunidades nativas. O movimento, do qual participaram vários outros povos nativos, teve sucesso e abriu o caminho para a demarcação de grandes terras indígenas no país.

Desde aquela época, Raoni e os kayapós viraram presença frequente em mobilizações indígenas na capital. No Acampamento Terra Livre, hoje o principal evento do tipo, os kayapós costumam atrair a atenção de cinegrafistas quando apresentam suas danças e cantos típicos, adornados com penas e pinturas corporais.

Nesses eventos, Raoni é tratado com deferência e tietado por outros indígenas — feito notável para alguém cujo povo, até meio século atrás, vivia em guerra com quase todas as etnias vizinhas.

No início da década, Raoni e os kayapós participaram de uma série de atos contra a construção da hidrelétrica de Belo Monte no rio Xingu — causa que mobiliza o grupo desde que a obra foi planejada, no governo militar. A usina só começou a sair do papel no governo Luiz Inácio Lula da Silva e foi inaugurada por sua sucessora, Dilma Rousseff.

Raoni diz que os anos Lula e Dilma marcaram uma inflexão na sua relação com o governo federal. Ele afirma que foi recebido por todos os presidentes que governaram entre a redemocratização e a posse de Lula: José Sarney, Fernando Collor, Itamar Franco e FHC. Todos eles, diz Raoni, "me apoiaram muito para que eu pudesse ajudar meu povo".

Com Lula, porém, a relação se deteriorou. "Ele começou a planejar essa ideia de levantar Belo Monte. Nós conseguimos parar a obra, só que ela recomeçou com o governo Dilma. E Dilma autorizou Belo Monte."

Crítico ao empreendimento, Raoni deixou de ser recebido no Palácio do Planalto. "Nossa luta contra Bolsonaro é a mesma que fizemos contra Lula e Dilma. Todos eles — Lula, Dilma, Bolsonaro — geraram essa divisão entre o índio e o governo. Por isso que eu venho lutando para que não haja essa divisão."

Aldeia onde nasceu

Hoje próximo dos 90 anos, Raoni continua a viajar o mundo e a divulgar suas bandeiras. Uma de suas prioridades é a conclusão da demarcação da Terra Indígena Kapôt Nhinore, onde ele nasceu. É a única dentre as dez terras indígenas habitadas pela etnia que ainda não foi formalizada. Bolsonaro afirmou, no entanto, que não demarcará "nem um centímetro" de terra indígena em seu governo.

Raoni diz que, caso vença o Nobel da Paz no futuro, usará a premiação em dinheiro para avançar a demarcação da Kapôt Nhinore e promover melhorias na Terra Indígena Capoto/Jarina, onde ele vive hoje. Em 2019, o vencedor do prêmio recebeu 9 milhões de coroas suecas, o equivalente a R$ 3,8 milhões.

"Neste ano não saiu meu nome, mas vou esperar o ano que vem", afirma.

"Estou firme."