Política

As famílias de vítimas da ditadura que esperam novas certidões de óbito reconhecendo crimes do regime: 'Falta saber quem matou meu pai'

É assim que mais de 400 certidões de óbito de brasileiros mortos e desaparecidos durante a ditadura militar passarão a ser registradas

PEDRO RIBEIRO/DA EDITORIA/COM BBC 07/01/2025
As famílias de vítimas da ditadura que esperam novas certidões de óbito reconhecendo crimes do regime: 'Falta saber quem matou meu pai'
Mais de 400 certidões de óbito de mortos e desaparecidos na ditadura serão retificadas | Arquivo Nacional

Causa da morte: "Não natural, violenta, causada pelo Estado brasileiro no contexto da perseguição sistemática à população identificada como dissidente política do regime ditatorial instaurado em 1964".

É assim que mais de 400 certidões de óbito de brasileiros mortos e desaparecidos durante a ditadura militar passarão a ser registradas.

São documentos que, até o momento, tinham como causa da morte "desconhecida".

Ou registrada "de acordo com a lei 9.140", a Lei dos Desaparecidos Políticos, que reconheceu como mortas pessoas que sumiram em razão de participação ou acusação de participação em atividades políticas durante a ditadura.

As alterações atendem a uma das 29 recomendações do relatório final da Comissão Nacional da Verdade. Instituída em 2011, a Comissão teve o papel de investigar as violações de direitos humanos ocorridas na ditadura. Seu trabalho se estendeu até a entrega do relatório, em 2014.

A determinação do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) dará 30 dias aos cartórios para que eles realizem as retificações, a contar a partir da notificação. Devido ao recesso no judiciário, esse prazo ainda não começou a contar.

A retificação das certidões de óbito de mortos e desaparecidos na ditadura é algo muito aguardado pelas famílias das vítimas.

No filme Ainda Estou Aquia cena em que Eunice Paiva, interpretada por Fernanda Torres, recebe a certidão de seu marido, o deputado Rubens Paiva, que desapareceu nas mãos dos militares, levou para o cinema a realidade dessas famílias.

Rubens Paiva desapareceu em 1971, mas foi só em 1996 que Eunice conseguiu um documento que atestasse sua morte, por meio da Lei dos Mortos e Desaparecidos, sancionada no ano anterior e que criou a Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos.

A Comissão coordenou o trabalho de busca e reconhecimento de ossadas de possíveis mortos e desaparecidos na ditadura e a expedição das certidões de óbitos, mesmo daqueles que jamais foram encontrados, como foi o caso de Rubens Paiva.

Outro caso emblemático foi o da família do jornalista Vladimir Herzog, que conseguiu, em 2012, a retificação do documento que, até então, apontava suicídio como a causa da sua morte.

Seis anos mais tarde, a jornalista e advogada Lygia Jobim, filha do diplomata José Pinheiro Jobim, também recebeu um novo atestado de óbito do pai, constando que o Estado brasileiro foi o responsável por sua morte.

"Eu me lembro bem daquele dia. Fiquei emocionadíssima. Peguei o documento, olhei em volta na rua. Entrei no supermercado, pedi um café e fiquei ali", diz Lygia à BBC News Brasil.

"É uma emoção muito grande e, ao mesmo tempo, estranha, porque ninguém fica feliz quando recebe um atestado de óbito."

Quando foi sequestrado e morto, em 1979, Jobim estava escrevendo um livro que prometia revelar um esquema de corrupção envolvendo a usina hidrelétrica de Itaipu.

Foi encontrado pendurado pelo pescoço em uma cena montada, assim como Herzog, conforme foi reconhecido pela Justiça anos mais tarde. Ainda assim, sua certidão trazia a causa da morte como "indefinida".

Foto em preto e branco de um homem jovem, de pele clara, usando óculos de grau.

Crédito,Acervo Memorial da Resistência de SP

Legenda da foto,O diplomata José Jobim foi sequestrado e morto durante a ditadura

Em 2019, no primeiro ano de seu governo, o ex-presidente Jair Bolsonaro mudou a composição da Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos, trocando quatro dos sete integrantes, e os processos de retificação das certidões de óbito ficaram emperrados.

Depois, faltando 15 dias para o fim do seu mandato, Bolsonaro extinguiu de vez a comissão, paralisando completamente os processos.

A ativista dos direitos humanos Maria do Amparo Araújo ficou nesse meio do caminho.

Pediu a retificação do documento do irmão, Luiz Almeida Araújo, com quem ela militava na Ação Libertadora Nacional (ALN), e do companheiro, Luiz José da Cunha, ambos mortos pela repressão. Mas só conseguiu retificar a certidão do irmão.

"O pedido do meu companheiro foi negado", conta ela, que é fundadora da ONG Tortura Nunca Mais.

"Recorri, e o pedido foi negado de novo. Isso significa que não havia um procedimento padronizado [para realizar as retificações] como está se pretendendo que seja agora [com essa resolução do CNJ]."

Para ela, a notícia sobre a retificação de todas as certidões de óbito é uma formalização da responsabilização do Estado pelas mortes políticas durante a ditadura. Mas não é o suficiente.

"As pessoas continuam desaparecendo porque são mortas pela Polícia Militar."

A desmilitarização das polícias estaduais é outra das 29 recomendações do relatório da Comissão Nacional da Verdade.

Embora o documento tenha sido entregue há dez anos, um levantamento do Instituto Vladimir Herzog, realizado antes dessa decisão do CNJ, mostrou que uma parcela muito pequena das recomendações foram cumpridas até agora.

Dos 29 apontamentos, apenas dois foram integralmente concretizados.

O primeiro foi a introdução da audiência de custódia, em 2015. Esse mecanismo garante que o acusado por um crime, preso em flagrante, tenha o direito de ser ouvido por um juiz, em até 24 horas após a detenção, para que sejam avaliadas eventuais ilegalidades da sua prisão.

A outra recomendação atendida, em 2021, foi a revogação da Lei de Segurança Nacional. Criada durante a ditadura militar, a lei previa, dentre outras coisas, pena de até quatro anos de detenção por "fazer, em público, propaganda de processos violentos ou ilegais para alteração da ordem política ou social", ou por "incitar a subversão da ordem política ou social ou a animosidade entre as Forças Armadas ou entre estas e as classes sociais ou as instituições civis".

Abertura dos arquivos

Emocionada, a especialista em finanças Marta Costa, sobrinha da guerrilheira Helenira Resende de Souza Nazareth, conta que a retificação da certidão de óbito de sua tia é um passo muito simbólico.

"É muito significativo. Minha tia, Helenalda, tentou por anos conseguir essa retificação", diz. "Hoje, ela está com 84 anos. Essa conquista é uma devolutiva dessa luta de tantos anos."

Helenira, cujo codinome era Fátima, fez parte da Guerrilha do Araguaia, um movimento de resistência à ditadura ocorrido na região amazônica, quando desapareceu.

Seu corpo jamais foi encontrado, e a família nunca conseguiu realizar uma cerimônia fúnebre.

"Conseguimos trazer as ossadas do Araguaia para a UnB [Universidade de Brasília], mas elas estão paradas lá há anos", diz Marta. "Existe essa ansiedade de saber se a minha tia está lá e se poderemos seguir, fazer o sepultamento."

Foto em preto e branco de corpo inteiro de uma mulher jovem, usando saia até o joelho e camiseta de manga comprida.

Crédito,Arquivo pessoal Marta Costa/Jornal da USP

Legenda da foto,Helenira Nazareth, codinome Fátima, desapareceu na guerrilha do Araguaia

Em julho de 2024, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva instalou novamente a Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos. Um dos primeiros atos desta retomada foi a entrega do pedido das retificações das certidões de óbito ao CNJ.

As famílias reconhecem esse passo, mas reafirmam que o caminho ainda é longo.

"Minha mãe tem 77 anos e até hoje não pôde fazer o luto e enterrar meu avô", afirmou Leo Alves, músico e membro da Coalizão Brasil por Memória, Verdade e Justiça, uma organização que defende a democracia, a memória e a reparação de violações aos direitos humanos.

Leo é neto do político Mario Alves, um dos fundadores do extinto Partido Comunista Revolucionário Brasileiro (PCBR), e desaparecido durante a ditadura.

"Essa decisão é uma vitória, mas não é tudo. Não constará, por exemplo, o local do sepultamento. Por isso nosso trabalho não acaba aqui".

Lygia Jobim sente falta das mesmas informações. Mesmo com o atestado de óbito do pai já retificado, ela cobra explicações.

"Queria uma explicação. A causa da morte continua desconhecida. Sabemos que foi a repressão, mas falta o resto da história para mim", diz Lygia.

"Essa história não para aí. Do que meu pai morreu? Quem matou meu pai?"

Leo Alves também considera que a retificação dos documentos não é um desfecho para toda a história.

"No campo da Memória algo aconteceu, mas na Justiça, nada. A condenação dos agentes de repressão nunca existiu", diz Leo.

Assim como todas as famílias de mortos e desaparecidos com quem a BBC News Brasil conversou, o músico foi categórico.

"Queremos a abertura dos arquivos", disse, sobre documentos da época da ditadura que jamais se tornaram públicos.

'Essa história precisa ser contada'

A abertura dos arquivos é outra das recomendações do relatório da Comissão Nacional da Verdade.

Segundo documento do Instituto Vladimir Herzog, essa resolução não só não obteve avanço, como retrocedeu devido à "notória dificuldade em adentrar os arquivos dos órgãos militares" pela Comissão Nacional da Verdade.

Em 2004, o então presidente Lula anunciou a abertura dos arquivos e um prazo de 30 anos, renovável por mais 30, para que a sociedade tenha acesso aos documentos ultrassecretos do regime militar.

Passados 20 anos do decreto, os documentos ainda não se tornaram públicos.

"Tudo o que a Comissão Nacional da Verdade entregou para nós foram documentos que já tínhamos", diz Marta Costa.

"Essa história precisa ser contada para que a gente não passe por isso de novo."

A servidora pública Lorena Moroni Girão Barroso, irmã de Jana Moroni Barroso, guerrilheira no Araguaia que é considerada desaparecida política, também cobra o acesso aos documentos militares.

"A certidão de óbito retificada, embora tenha o efeito do raciocínio lógico, já que agora o Estado está se responsabilizando pelas mortes, o principal, que são as circunstâncias em que essas mortes ocorreram, a certidão não trará", diz Lorena.

"Isso só virá com a abertura dos arquivos."

Lorena se recorda que cada passo até aqui foi trabalhoso e dolorido, mas com pequenos avanços.

"Quando a gente entrou com um processo contra a União para saber a localização dos corpos, se negava até a existência da guerrilha do Araguaia", diz ela.

"Agora, além do reconhecimento de que houve a guerrilha, há também o de que ela foi uma das vítimas da ditadura."