Brasil
O pior da pandemia passou em Manaus. “Agora é hora de cuidar de quem ficou em casa”
A médica Uildeia Galvao, que encarou uma exaustiva rotina de trabalho no pico da pandemia no Amazonas, conta como foi fechar a ala de pacientes com covid-19 e relata o aumento dos casos de estresse pós-traumático entre quem sobreviveu à doença
Era uma quinta-feira. O dia era 18 de junho. Sim, o ano 2020. A médica Uildeia Galvão fechou a sala rosa do Hospital 28 de Agosto, em Manaus, onde eram atendidos os pacientes com a covid-19. Ela não soube muito bem como lidar com a contradição dos sentimentos. Um misto de alegria pelo dever cumprido, gratidão por não ter ficado doente, fé de que o pior da pandemia passou e uma tristeza profunda por ter vivido tudo aquilo.
No começo de maio, relatamos a dor da médica ao ver pacientes morrendo sozinhos, com sede e sujos porque não havia gente suficiente para sequer dar os cuidados básicos aos enfermos no pico da pandemia do coronavírus na cidade de Manaus. Da capital do Amazonas saíram as primeiras imagens de covas coletivas. Foi de lá que a falta de estrutura hospitalar ficou mais evidente e agora é de lá que vem a notícia do fechamento das alas de covid-19 dos hospitais e o encerramento das atividades do hospital de campanha. O novo coronavírus parece ter dado uma trégua na região.
Olhando para frente, Galvão tem a certeza de que ainda tem muito trabalho a se fazer: “Agora é hora de cuidar de quem ficou em casa”. Nos 15 dias que antecederam a conversa com a reportagem, a médica notou um aumento na quantidade de jovens que chegam ao hospital porque tentaram se suicidar; pacientes que passaram pela covid-19 voltando ao hospital com estresse pós-traumático, doentes que não foram se tratar por medo do vírus e estão mais doentes do que antes. “Muitos pacientes diabéticos estão evoluindo para insuficiência renal crônica. Vão ter que entrar pra diálise”, conta a médica. “Acho que é só a pontinha do iceberg”.
E a própria doutora Uildeia Galvão faz o diagnóstico: “Numa sociedade em que a gente estava ligado no 220, com uma série de situações de polarização, e ainda veio uma situação dessas em que as pessoas tiveram que praticar um distanciamento da qual elas não imaginavam… Mesmo que elas vivessem nas redes sociais. Mas era de frente pro outro, tocando na mão do outro. Então ainda tem outras coisas que vão advir da pandemia que vai dar certo trabalho”.
O Estado do Amazonas está retomando aos poucos a economia, mas com regras de distanciamento, uso obrigatório de máscaras, horário determinado para abrir e fechar. Na semana que passou, Manaus fechou o hospital de campanha e a ocupação de leitos de UTI destinados à covid-19 girava em torno de 49%. O número de casos caiu para um terço do que se registrava no auge da crise sanitária, mesmo com o maior número de testes que está se fazendo agora.
Galvão opina que, pelos resultados de estudos do Governo, e também pelo que conversa com médicos do trabalho e empresários que testaram seus funcionários, a contaminação no Estado deve ter atingido 50% da população. Esses dados apresentados pela doutora, mesmo que empíricos, chamam a atenção já que o Amazonas foi um dos Estados com o menor índice de isolamento social no país. Então, eu pergunto:
―Foi um erro fazer o isolamento? Teria sido melhor privilegiar a economia?
Ao que Galvão imediatamente rebate:
―Imagine se nós não tivéssemos feito de 40% a 50% de isolamento social em abril, a que ponto teríamos chegado?
Ela acredita que o caos vivido pela pandemia não deve voltar. Não deve ter uma segunda onda, ao contrário do que avaliam alguns estudiosos. Mas ela lembra que a covid-19 é uma doença e as pessoas vão continuar pegando o vírus se não se cuidarem. E muitas vão continuar morrendo.
Vírus continuará a circular
A percepção de que o caos dificilmente volte é compartilhada pela infectologista Rosana Paiva, especialista em saúde pública e professora da PUC, de São Paulo. Ela diz que por menor que seja a adesão ao isolamento social, as pessoas adquirem novos hábitos de higiene, lavam mais as mãos, usam máscaras e álcool em gel, lavam os produtos que compram no supermercado e pelo menos parte da população vai manter distanciamento social.
“O vírus vai circular não importa quanto tempo de isolamento se faça”, diz Paiva. Por isso que a doutora acredita que o importante é que os governos façam uma reabertura cuidadosa com ampla campanha de uso de máscara, que incentivem quem pode fazer home office a continuar trabalhando de casa e conscientizar que o cumprimento de regras de distanciamento deve ser atendido.
Em Manaus, os restaurantes voltaram a funcionar e tem sido difícil para a população manter o distanciamento. A policia teve que fechar estabelecimentos que acabaram virando bares. A médica Uildeia Galvão não se surpreende que as pessoas queiram retomar suas vidas. “Tenho um amigo que vai fazer aniversário em outubro e ele já me disse que o tema da festa vai ser trio elétrico. As pessoas sentem muita falta e muita necessidade de aglomeração em si, das grandes festas dos grandes eventos.”
Olhando para trás, Galvão conta que ficou um lamento: "é ver que outras cidades e outros locais viram o nosso exemplo, viram o que aconteceu aqui e de certa forma não se preparam para isso. Quando vejo nos jornais as notícias de superfaturamento, de dificuldade de planejamento por questão política… isso me deixa chateada, triste. Porque é uma sensação que a gente nunca vai conseguir descrever o que é ter tantos pacientes graves de uma única vez."
Vizinho ao Amazonas, Roraima passa por situação parecida mesmo que a capital Boa Vista só tenha sido afetada 40 dias depois do pico de Manaus. Faltam leitos para cuidar dos doentes e houve baixa adesão ao isolamento social.
A cidade de São Paulo que foi um dos primeiros lugares atingidos pelo vírus com Manaus e fechou seu primeiro hospital de campanha, no estádio do Pacaembu, apesar de diferentemente de Manaus o número de contaminados e mortes estar crescendo e não decaindo. O Governo paulista diz que esses números refletem a pandemia de duas semanas atrás. Para a infectologista Rosana Paiva, a reabertura poderia ter sido feita antes em São Paulo pela estrutura montada para atender os pacientes e a prova disso, segundo ela, é o fechamento do hospital do Pacaembu.
Galvão criticou a declaração de Jair Bolsonaro, no início de junho, que incentivou seus seguidores a invadir hospitais de campanha para tirar fotos e provar que eles estavam vazios. “É um total desrespeito ao ser humano, às famílias todas que passaram por isso, porque elas sabem o que elas viveram. E a todo profissional de saúde que trabalhou. Uma total falta de humanidade. É até difícil de acreditar.”
―E por falar em humanidade, o que ficou desta pandemia, doutora?
“Uma sensação de que não quero passar por isso de novo, mas eu acho que me tornei uma pessoa melhor. Com o tempo que tem de formado, você fica assim… ‘eu vou fazer, vou fazer, vou fazer, pra salvar'. Não. Você tem que se colocar no lugar do paciente como ser humano que ele é, como ele gostaria que fosse tratado. Tem paciente que não quer se internar, tomar o remédio. Quer voltar pra casa. E a gente tem muita dificuldade de respeitar essas situações. Acho que isso (a pandemia) me tornou mais sensível a ouvir o paciente, não só ver como alguém que tenho curar. Nós ouvimos muito os pacientes, porque eles ficavam sozinhos, a única companhia deles eram os médicos, os enfermeiros e os técnicos. E muitas vezes os médicos eram os mais próximos e a gente tinha que ouvir”.