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Lavagem de dinheiro, Marcola e ausência do Estado: entenda como o PCC se infiltrou nos serviços públicos de São Paulo

Ministério Público paulista realizou a Operação Fim da Linha na terça-feira (9) e afirma ter evidências de que a facção criminosa estava infiltrada no transporte coletivo da capital

PEDRO RIBEIRO/DA EDITORIA/COM G1 13/04/2024
Lavagem de dinheiro, Marcola e ausência do Estado: entenda como o PCC se infiltrou nos serviços públicos de São Paulo
As empresas Transwolff e UPBus, alvos de operação do Ministério Público de SP | G1

Há mais de 20 anos, o Primeiro Comando da Capital (PCC), facção criminosa que atua de dentro e fora dos presídios paulistas, conseguiu se infiltrar em serviços públicos do estado por meio de empresas de ônibus, de lixo e organizações sociais de saúde. Para o promotor Lincoln Gakiya, responsável pelo Grupo de Atuação Especial de Repressão ao Crime Organizado (Gaeco), a facção já ganhou contornos de máfia.

Na terça-feira (9), dirigentes das empresas de ônibus Transwolff e UPBus, que operam nas zonas Sul e Leste da capital, foram presos por suspeita de envolvimento com o PCC. Eles são acusados de crimes como organização criminosa e lavagem de dinheiro. Segundo o Ministério Público (MP), as duas empresas receberam, em 2023, mais de R$ 800 milhões da Prefeitura de São Paulo.

A operação foi realizada pelo Ministério Público (MP), pela Polícia Militar, pela Receita Federal e pelo Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade), órgão vinculado ao Ministério da Justiça e Segurança Pública que fiscaliza e combate abusos de poder econômico.

Nesta reportagem, o g1 explica o contexto que levou a maior facção criminosa do país a usar alguns serviços públicos em São Paulo para lavar dinheiro. Atualmente, o MP estima que o faturamento da organização gira em torno de U$ 1 bilhão por ano. A arrecadação é proveniente, principalmente, do tráfico internacional de drogas, em especial para a Europa.

Liderança de Marcola

No início dos anos 2000, Marcos Willians Herbas Camacho, o Marcola, alcançou o posto de líder máximo e mudou os rumos da facção. O PCC passou por uma reestruturação através da criação das sintonias e da descentralização do poder. O tráfico de drogas também se tornou a principal fonte de renda da organização, aumentando consequentemente o lucro e a necessidade de lavar o dinheiro.

Marcola cumpre uma pena total de 330 anos de prisão. — Foto: Globonews

Marcola cumpre uma pena total de 330 anos de prisão. — Foto: Globonews

A desembargadora do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP) Ivana David explica que a ascensão de Marcola ao poder também alterou o propósito da facção. O grupo nasceu em 1993 na Casa de Custódia de Taubaté, no interior do estado, como um "sindicato do crime", visando denunciar violações no sistema prisional a partir de uma "guerra contra o sistema". Já sob a liderança de Marcola, o PCC tornou-se uma espécie de empresa, cuja prioridade é o lucro.

"Marcola dá um ar empresarial, monta essa estrutura do sintonia, cria o organograma empresarial. Com isso se torna uma liderança, porque ele tem a força intelectual. [...] Ele também aproveita a fragilidade do Estado como um todo. Sabe aquele olhar de empreendedor? É isso que ele tem. Ele vai nos nichos onde o Estado é enfraquecido. E onde o Estado não está, o crime toma", explica a desembargadora.

Segundo Ivana, a facção vislumbrou uma oportunidade de entrar no setor de transporte público entre o final da década de 90 e o início dos anos 2000, pois a prestação do serviço para as periferias na capital paulista era deficiente. "O metrô não era o metrô que é hoje. Ele não tinha essa permeabilidade. Tem periferia que está a 25 km, 30 km do Centro. Assim começam a nascer as peruas [clandestinas, que faziam o trajeto entre os bairros mais afastados e os terminais de ônibus]", relembra.

'Transporte coletivo já era meio orgânico para o PCC', afirma pesquisador

Para o jornalista e pesquisador Bruno Paes Manso, a relação da facção criminosa com o transporte coletivo nasceu antes mesmo de Marcola se tornar líder.

O PCC foi criado um ano depois do massacre do Carandiru – ação policial mais letal das forças de segurança na história do estado que terminou com 111 mortos, durante rebelião na Casa de Detenção de São Paulo, na Zona Norte da capital. Além da violência extrema, o episódio denunciou a superlotação nos presídios. Somente o Carandiru reunia mais de 7.000 presos. Na época, ainda não existiam os Centros de Detenção Provisória.

“Em 1994, [o então governador] Mário Covas assume um discurso mais comprometido com direitos humanos, prometendo implodir o Carandiru e, ao mesmo tempo, criar presídios menores por todo o estado. Ao longo de 10 anos, São Paulo passa de 30 a 40 para 180 presídios. Então, é uma expansão muito grande e muitos presídios são construídos distantes da capital. Começa um envolvimento do PCC com o transporte de preso”, afirma Bruno.

O processo de interiorização das unidades prisionais passou a dificultar as visitas dos familiares aos integrantes da facção, por isso a organização criminosa começou a investir no transporte e a oferecê-lo sem cobranças às famílias, explica o pesquisador ao g1.

Infiltração no transporte público

O conhecimento territorial das periferias, a familiaridade com transporte coletivo e a necessidade de lavar o dinheiro do tráfico de drogas foram elementos que atraíram a facção a se infiltrar no serviço público, na visão dos especialistas.

Inicialmente, a organização atuava por meio de peruas e vans clandestinas que transportavam passageiros da Grande São Paulo e das periferias da capital. Em 2003, a prefeitura deu início à regulamentação do transporte clandestino, transformando as empresas em cooperativas.

A maior delas era a Cooperpam, com sede na Zona Sul. Ao longo dos anos, segundo o Ministério Público, os dirigentes desta cooperativa montaram uma empresa e passaram a pressionar e até ameaçar os cooperados para que transferissem seu controle à Transwolff.

Segundo os promotores, os diretores também se apropriavam de parte da remuneração dos cooperados. Dez anos depois, em 2013, quando o primeiro contrato de permissão da Prefeitura de São Paulo chegou ao fim para todas as empresas, a Transwolff conseguiu assinar um contrato emergencial, que foi prorrogado durante anos, devido a um impasse no processo de concessão.

Nesse período, também começa a história de ascensão e enriquecimento de Luiz Carlos Efigênio Pacheco, o Pandora. Ele começou como perueiro, trabalhando mais de 10 anos na Cooperpam, que, em 2015, foi incorporada à Transwolff.

Na terça-feira (9), Pandora foi um dos dirigentes presos na Operação Fim da Linha, realizada pelo MP e resultado de cinco anos de investigação. Atual dono da Transwolff, ele é acusado de ter envolvimento com o PCC e de ser um dos responsáveis pelo esquema de lavagem de dinheiro.

A entrada da facção nos processos de licitação da prefeitura foi possível a partir da criação de empresas com nome de laranjas. “Eles começam a usar empresas-fantasmas, com nome de familiares e terceiras pessoas que, na verdade, emprestam ou vendem os seus dados. Montam essa empresa privada que não tem nenhuma obstrução ao nível de Fazenda, que está limpa e não deve tributos”, explica a desembargadora Ivana David.

“Ela consegue cobrir os demais concorrentes porque, como o dinheiro dela é sujo, consegue fazer um preço bem baixo. Se [a organização] investe R$ 2 milhões, mas recebe R$ 800 mil limpo, é vantajoso. Com R$ 2 milhões sujos, você não consegue comprar nada. Com R$ 800 mil entrando nos cofres da empresa pelos órgãos de estado e pela prefeitura, é um dinheiro limpo que [a facção] consegue investir em imóveis, em veículos, em gado, obra arte. Este é o processo de lavagem de dinheiro”, complementa.

Sofisticação e diversidade na lavagem de dinheiro

O pesquisador Bruno Paes Manso comparou a atuação das milícias no Rio de Janeiro com a facção paulista. Enquanto o primeiro grupo vive à margem do Estado, o PCC busca regularizar seus ganhos fruto de atividades ilícitas.

“As milícias apostam nos serviços ilegais, venda de gás ou venda de gato de eletricidade, furto de água. Eles atuam mais às margens do Estado, mas o PCC começou a tentar aproveitar as brechas do sistema para participar de licitação de forma regular. Então, existe o objetivo de ter empresas formais para que eles [integrantes da facção] possam se tornar empresários, participar da economia, da luta política e influenciar, inclusive, na eleição de parlamentares municipais. Este é um caminho e o PCC seguiu”, afirma Bruno.

Este caminho, somado à lógica empresarial de acúmulo de capital, levou a facção paulista a estender seus tentáculos a outros serviços públicos como empresas de lixo e organizações sociais de saúde. A desembargadora do TJ-SP explica que o PCC procura “oportunidade de lavar o dinheiro onde o controle é mais difícil, inclusive com gado, obras de arte e hospitais”.

Traficante de drogas usava infraestrutura de prefeitura em SP para ampliar negócios

Anderson Lacerda Pereira, apelidado de "Gordão", por exemplo, usou o sistema de saúde pública de Arujá, na Grande São Paulo, para expandir seus negócios e lavar dinheiro. O traficante ganhou fama no mundo do crime em 2014, quando intermediou uma venda de cocaína entre Marcola e a máfia italiana.

No município, organizações sociais controladas pelo traficante assinaram contratos de coleta de lixo e na área da saúde. Isso deu a ele o controle do único hospital público da cidade, com R$ 77 milhões em verba da prefeitura e esquema para uso de remédio em droga.

Contornos de máfia

Após a Operação Fim da Linha, na terça-feira, o promotor Lincoln Gakiya declarou durante coletiva de imprensa que a facção criminosa paulista já ganhou contornos de máfia.

“O que nos preocupa é que a organização está tomando tamanho de máfia, se infiltrando no Estado, participando de licitações de Estado. Ela [a facção] tem como uma de suas características principais a infiltração nos poderes do Estado. Infelizmente, nesse caso, nós [...] detectamos que eles estão participando de serviço público, na disputa e licitação de serviço público essencial típico de organizações mafiosas, como já ocorreu na Itália”, aponta o promotor.

Gakiya vê com temor o envolvimento da facção com o transporte público, mas destaca que ela também está presente em outras áreas dentro do estado paulista: saúde, coleta de lixo e assistência social.

“Nos preocupa demais porque se paralisar o transporte público aqui da cidade, são 7 milhões de passageiros por dia, para a cidade, para o estado e uma parte do país. Porque aqui é o centro financeiro nervoso do país. Isso não pode estar na mão deles. Isso aconteceu na Itália, nas concessões de lixo e de serviços públicos que também são essenciais", destacou.