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Defensor da ordem e 'xerife dos valores ocidentais': a estratégia de Trump para reverter desvantagem e se reeleger
Pela segunda vez em sua breve carreira política, o presidente americano Donald Trump concorrerá a uma eleição
26/08/2020
Pela segunda vez em sua breve carreira política, o presidente americano Donald Trump concorrerá a uma eleição.
Também pela segunda vez, ele chega à disputa como azarão: nas pesquisas nacionais está cerca de 10 pontos percentuais atrás de seu rival, o democrata Joe Biden - situação parecida com a que viveu há quatro anos, quando também surgia atrás de Hillary Clinton nas sondagens eleitorais. Na semana em que será confirmado o candidato republicano nas eleições presidenciais de novembro de 2020 pela convenção do partido, ele tenta usar o evento para reverter a atual tendência desfavorável na corrida. Sem a presença de republicanos históricos, a convenção foi recheada de familiares de Trump e de apoiadores de primeira hora, e se converteu em um ato de desagravo ao presidente, que hoje controla mais de 90% da agremiação. De acordo com Michael Johns, um dos líderes do movimento Tea Party, que apoia o presidente, a campanha de Trump aposta que os quatro dias de convenção servirão para dar força à candidatura a ponto de melhorarem sua pontuação nas próximas pesquisas.O desafio de Trump
O desafio de Trump agora, no entanto, é maior do que o enfrentado em 2016. Se há quatro anos ele era visto como um outsider na política, um empresário e apresentador de reality show que vendia um projeto de retomada dos valores conservadores americanos - com foco em religião, família e trabalho -, agora ele é o presidente e apenas 38% dos americanos aprovam sua gestão, segundo pesquisa do Pew Research divulgada essa semana. A taxa de aprovação está abaixo da média histórica de popularidade ostentada por presidentes que obtiveram a reeleição. Os Estados Unidos foram duramente atingidos pela pandemia de coronavírus - com mais de 5,7 milhões de diagnósticos e 180 mil mortes - e a resposta de Trump ao problema sanitário tem sido considerada parte da explicação para os números tão altos pelos especialistas. Na esteira da pandemia, a economia americana e mergulhou em uma recessão comparável à da Grande Depressão de 1929. E, em meados de 2020, protestos por justiça racial varreram todo o país. Em uma campanha atípica, em que comícios com milhares de apoiadores, como Trump gosta, estão fora de cogitação, os quatro dias de convenção servirão para que o presidente apresente uma espécie de "intensivão" do discurso que repetirá nos próximos dois meses para tentar vencer a eleição. Primeiro, ele relembra aos eleitores sobre o estado da economia nos três anos anteriores à pandemia. Depois, diz que sua resposta ao coronavírus foi eficiente e que se mais vidas americanas não foram salvas, a culpa é da China, onde o vírus foi detectado pela primeira vez, e da Organização Mundial da Saúde, que falhou em dar diretrizes consistentes e rápidas, segundo Trump. A seguir, argumenta que os democratas, que qualifica como radicais e extremistas, têm inflamado a violência e o caos social em protestos raciais ao mesmo tempo em que defendem redução de verbas para a polícia, o que estaria por trás de um aumento nas taxas de tiroteios e homicídios em grandes cidades nos últimos meses. Se querem lei e ordem, os americanos teriam, portanto, que reconduzi-lo à Casa Branca. Por fim, Trump se coloca como o guardião não só dos valores e princípios americanos, como das bases sociais ocidentais, o único capaz de defender o país e o mundo da investida econômica e cultural da China ou da ameaça bélica do Estado Islâmico, da teocracia iraniana ou do regime norte-coreano. Tudo isso salpicado por questionamentos sobre risco de fraude no processo de votação por correio - um sistema que os especialistas garantem ser seguro - e por críticas a Biden, ora caracterizado pela campanha como um radical de esquerda, ora como velho e perdedor, sem grandes realizações em quase 50 anos de vida pública. Nenhum desses argumentos é exatamente novo. Tampouco formam necessariamente o melhor discurso eleitoral, mas acabaram se tornando a única saída para o presidente.Contra a parede
Trump passou três anos planejando dizer que havia tornado a América grande outra vez, e que agora deveria ser mantido no posto para garantir que o país seguisse nesse caminho. Mas a partir de fevereiro, o crescimento sustentado da economia e as taxas de pleno emprego deram lugar a uma recessão profunda e à perda de mais de 30 milhões de empregos. Seu plano B seria se colocar como o presidente que retomou a economia após a pandemia. Para isso, Trump passou a advogar pelo afrouxamento das medidas de distanciamento social e pela reabertura de comércios e escritórios. Chegou até mesmo a ameaçar expulsar milhões de estudantes estrangeiros do país caso as universidades não retomassem aulas presenciais - medida da qual recuou. Sua ideia, no entanto, teve que ser abandonada conforme o país se viu engolfado por uma segunda onda de contágios, ainda maior do que a primeira. O líder da força-tarefa contra o coronavírus, o médico Anthony Fauci, creditou a recaída à reabertura precoce dos Estados. "A tarefa do presidente essa semana é relembrar que nos três primeiros anos ele fez uma administração vibrante, criou mais de sete milhões de empregos, o salário dos trabalhadores estava aumentando. Ele entregou uma série de promessas eleitorais: reestruturou o acordo comercial com México e Canadá, acabou com o acordo com o Irã, tirou o país do acordo de Paris... E 2020 é um ano em que, com toda a devastação econômica, é muito fácil esquecer todas essas conquistas. E é um azar que ele tenha que relembrar os americanos disso tudo em meio a essa pandemia", afirma Johns. Para Michael Cornfield, especialista em estratégia de comunicação política da George Washington University, ao relembrar aos eleitores como era a vida - e a economia - pré-pandemia, Trump fará sua principal promessa eleitoral: "Retornar ao ponto onde os americanos estavam antes do vírus e provar que sabe como fazer isso".Resposta eficiente à pandemia
Ao longo da convenção republicana, alguns profissionais de saúde foram chamados a dar depoimentos positivos sobre as ações do presidente no combate ao coronavírus. "Como paciente, beneficiei-me das terapias aceleradas possibilitadas pela rápida ação desta administração. Donald Trump realmente moveu montanhas para salvar vidas e ele merece crédito", afirmou o cirurgião G.E. Ghali da Louisiana. A avaliação da resposta de saúde pública dada pelo governo federal é uma das maiores fragilidades de Trump. Inicialmente, o presidente subestimou o potencial da doença, a qual comparou com um resfriado, depois disse que o vírus sumiria por si só no verão. Promoveu medicamentos sem comprovação científica, como a cloroquina, ao mesmo tempo em que passou meses se recusando a usar e recomendar o uso de máscaras em eventos públicos. Enquanto especialistas pediam cautela, Trump recomendava reabertura. Diante do aumento de casos, ele culpou os testes e chegou a sugerir a interrupção da testagem no país. Nada disso foi relembrado pelos políticos e enfermeiros na convenção republicana. Eles preferiram elogiar o banimento de voos da China aos Estados Unidos ainda em janeiro, como algo que impediu o avanço da pandemia no país, e disseram que Trump foi ágil em garantir condições de desenvolvimento e produção de diferentes formas de terapia, para que elas estivessem disponíveis nos hospitais no menor prazo possível. "Quando você olha para a mobilização em massa de recursos de saúde em todo o país, e você tem que dizer que o governo federal fez um trabalho muito bom nisso. Não houve lotação total em hospitais, como era previsto. Não houve falta de ventiladores. Houve um número extraordinário de americanos que foram expostos a isso e se recuperaram com sucesso", avalia Johns. Segundo ele, havia uma grande expectativa de que esta pandemia começaria a melhorar no verão e isso claramente não aconteceu. "E eu acho que isso aponta para o fato de que é uma ameaça real significativa à saúde pública que obviamente afetou muitos, muitos milhões de americanos e muitas dezenas de milhões em todo o mundo", afirmou, em um resumo do que defendem os apoiadores do presidente.Lei e Ordem
Mas se disputar a narrativa sobre o sucesso do combate ao coronavírus pode ser uma batalha menos promissora, os republicanos apostam em uma outra crise para tocar os eleitores: o aumento na violência urbana. Um levantamento feito pelo periódico Wall Street Journal esse mês mostrou que a taxa de homicídio nas 50 maiores cidades americanas cresceu 24% em relação ao ano passado. A subida coincide com o início dos protestos contra a violência policial e o racismo, detonados em junho, poucos dias após a morte de George Floyd, asfixiado por um policial branco. As imagens da morte de Floyd provocaram comoção nacional, com milhares de manifestantes nas ruas de mais de cem cidades americanas, em um movimento que até hoje não refluiu por completo e que segue alimentado por novos casos de violência policial. Essa semana, Kenosha, no Wisconsin, mergulhou em protestos violentos após um policial atirar sete vezes em Jacob Blake, pelas costas. Blake está no hospital em estado grave e pode ficar paraplégico. E embora cerca de 70% dos americanos acreditem que a morte de Floyd foi injusta e aponta para problemas estruturais da sociedade americana, apenas 22% deles apoiam protestos violentos, segundo o instituto Ipsos. E cerca de 20% concordam com a proposta de parte dos manifestantes de cortar verbas da polícia. Desde o primeiro momento, Trump afirmou que reagiria contra protestos violentos e chegou a usar o Exército para reprimir manifestantes. Os republicanos passaram ainda a dizer que o aumento na violência urbana era resultado do apoio dos democratas, Biden inclusive, ao corte de financiamento dos departamentos policiais. O argumento é falso, já que Biden já disse várias vezes que não apoia o desmantelamento de forças policiais, mas o fato de políticos democratas terem se juntado ao protesto colaborou para fortalecer a ideia. Na convenção republicana, coube ao filho de Trump, Donald Trump Jr., colocar a questão: "Você não tem permissão para ir à igreja (por causa da quarentena), mas o caos em massa nas ruas passa. É quase como se esta eleição estivesse se transformando em igreja, trabalho e escola versus distúrbios, saques e vandalismo ou, nas palavras de Biden, democráticos protestos pacíficos". Essa estratégia eleitoral tem pelo menos 50 anos. Foi usada com sucesso pela primeira vez em 1968 pelo republicano Richard Nixon. Naquele ano, protestos pacíficos e outros violentos tomaram as ruas depois que o líder do movimento negro Martin Luther King foi assassinado. Nixon percebeu que havia medo no ar, especialmente nos subúrbios das cidades, áreas de maioria branca e de renda mais elevada do que no centro urbano, e passou a dizer que não há progresso sem ordem e que ele seria o representante de uma "maioria silenciosa" que queria respeito às leis. O próprio Trump usou do expediente em 2016. Os subúrbios urbanos são áreas pendulares, a meio caminho entre as cidades, majoritariamente democratas, e as zonas rurais, republicanas. Como os eleitores suburbanos mudam de preferência a cada eleição, são uma das parcelas mais decisivas nesse processo eleitoral. "A confiança do Partido Republicano na pauta da lei e da ordem permanece a mesma de 2016 e, nesse caso, as eleições remontam a 1968. Mas as circunstâncias mudaram: Trump é um titular que assume a responsabilidade pelas crises que afligem a nação hoje. Biden não afasta os homens brancos tanto quanto Hillary Clinton fez em 2016", aponta Cornfield. O especialista se refere ao fato de que quase 90% dos americanos afirmarem em pesquisas que Trump piorou as manifestações por justiça racial com suas reações, em vez de pacificar o país. Tornou-se emblemático disso o momento em que forças policiais dispersaram manifestantes pacíficos de frente da Casa Branca para que o presidente pudesse fazer uma foto em frente a uma igreja queimada, segurando uma bíblia. Além disso, Biden é bem conhecido do público. Uma das críticas mais comuns contra ele entre os democratas é a sua disposição de trabalhar com republicanos e o fato de ser mais moderado do que progressista, alguém em quem independentes e mesmo republicanos descontentes com Trump cogitariam votar. 'Xerife dos valores ocidentais' Por fim, a convenção tem mostrado Trump como alguém que recolocou os interesses americanos em primeiro lugar na agenda global ao antagonizar frontalmente com a China, aniquilar autoridades militares iranianas, e ameaçar o regime venezuelano com ações militares. Especialmente bem sucedidas foram as guerras comerciais contra a China, a culpabilização do país pela pandemia, as sanções contra os chineses pelas medidas anti-democráticas em Hong Kong e o ato de mandar que Pequim fechasse um consulado no Texas, há pouco mais de um mês. Trump parece ter descoberto um sentimento anti-chinês nacional, latente até então. De acordo com levantamento do Pew Research no mês passado, 3 em cada 4 americanos apoiam medidas duras contra a China e tem visão crítica sobre o país. É um dos poucos assuntos em que republicanos e democratas concordam atualmente, embora os primeiros sejam mais críticos que os segundos. "Este presidente tem um histórico de força e sucesso. O ex-vice-presidente tem um histórico de fraquezas e falhas. Joe Biden é bom para o Irã e o Estado Islâmico, ótimo para a China comunista, e é uma dádiva de Deus para todos que desejam que a América se desculpe, se abstenha e abandone nossos valores. Donald Trump tem uma abordagem diferente. Ele é duro com a China, enfrentou o Estado Islâmico e venceu. E ele diz ao mundo o que ele precisa ouvir", afirmou na convenção Nikki Halley, republicana que atuou como embaixadora do país nas Nações Unidas entre 2017 e 2018. A afirmação de Halley pode ser enganosa: embora os Estados Unidos tenham retirado terreno do Estado Islâmico na Síria e no Iraque, isso só foi possível graças à coalizão militar com os curdos, mais tarde abandonados pela gestão Trump. De acordo com Michael Cornfield, Trump vai mobilizar na sociedade americana sentimentos do período da guerra fria para, no século 21, se colocar como "a última linha de defesa da civilização ocidental, contra a China e os 'democratas radicais, socialistas e violentos' que controlam Biden".Mais lidas
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