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Os temores de que a Síria possa cair no caos após deposição de Assad
Em 2011, o regime criado por Hafez al-Assad (1930-2000) e herdado pelo seu filho Bashar já era corrupto e decadente
No fim dos seus dias, o regime de Bashar al-Assad ficou tão vazio, corrupto e decadente, que entrou em colapso em menos de duas semanas.
Todas as pessoas com quem conversei ficaram atônitas com a velocidade em que o regime da Síria se transformou em pó.
Na Primavera Árabe de 2011, foi diferente. Os sírios tentaram concentrar uma parte da magia revolucionária que derrubou os presidentes da Tunísia e do Egito — e ameaçava os veteranos homens fortes da Líbia e do Iêmen.
Em 2011, o regime criado por Hafez al-Assad (1930-2000) e herdado pelo seu filho Bashar já era corrupto e decadente.
Mas o sistema estabelecido por Hafez al-Assad ainda detinha grande parte da força bruta e implacável que ele acreditava ser necessária para controlar a Síria. Assad pai tomou o poder em um país propenso a golpes de Estado e o transferiu ao seu filho e herdeiro sem grandes contestações.
Bashar al-Assad retomou a cartilha do seu pai em 2011.
É difícil imaginar agora, mas, na época, ele contava com mais legitimidade entre parte da população da Síria do que os velhos ditadores derrocados pelas multidões que cantavam o slogan daquele ano: "O povo quer a queda do regime."
Bashar al-Assad apoiou ativamente os palestinos e o Hezbollah, durante sua bem sucedida luta contra Israel, na guerra do Líbano de 2006. E ele era mais jovem que os líderes árabes que foram derrubados e os demais que estavam por cair em breve.
Desde a morte do pai, Assad prometia reformas.
Parte da população síria ainda queria acreditar no presidente em 2011, esperando que as demonstrações pudessem ser o estímulo de que ele precisava para as mudanças prometidas. Mas ele ordenou que seus homens disparassem contra manifestantes pacíficos nas ruas.
Certa vez, um embaixador britânico na Síria me disse que, para entender o regime de Assad, era preciso assistir a filmes sobre a Máfia, como O Poderoso Chefão.
Neles, os obedientes podiam ser recompensados. E qualquer um que fosse contrário ao chefe da família ou seus subordinados próximos era eliminado.
No caso da Síria, poderia ser pela forca ou por um pelotão de fuzilamento. Ou o encarceramento por prazo indefinido em alguma cela subterrânea.
Agora, estamos observando essas pessoas. Eles estão pálidos e esquálidos, piscando os olhos contra a luz, sendo filmados pelos celulares dos combatentes rebeldes que libertaram milhares deles, depois de anos atrás das grades.
O medo e a repressão aos prisioneiros que ainda eram mantidos nas celas disfarçavam a fraqueza do regime, até que ele se desmanchou como um saco de papel molhado.
Era consenso internacional que Bashar al-Assad era um líder fraco, dependente da Rússia e do Irã, que presidia um país fragmentado por ele próprio, para manter o poder da sua família.
Mas ele ainda era suficientemente forte para ser considerado parte da vida no Oriente Médio — e poderia até mesmo ser útil.
Nos últimos dias antes da saída dos rebeldes da cidade de Idlib em direção à capital, Damasco, foi amplamente noticiado que os Estados Unidos, Israel e os Emirados Árabes Unidos estavam tentando isolar a Síria e Assad do Irã.
Israel havia lançado ataques aéreos cada vez mais fortes contra alvos na Síria. Os israelenses diziam que seus alvos faziam parte da cadeia de fornecimento usada pelo Irã para transportar armas para o Hezbollah no Líbano.
A ofensiva de Israel no Líbano havia atingido duramente o Hezbollah, mas a ideia era evitar que o grupo se recuperasse.
Paralelamente, os Emirados Árabes Unidos e os EUA tentavam encontrar incentivos para que Assad rompesse sua aliança com o Irã, relaxando as sanções e permitindo que ele prosseguisse na sua reabilitação internacional.
Benjamin Netanyahu e Joe Biden reivindicaram para si o crédito pela queda do regime de Assad. Aqui, existe um significado importante.
Os danos infligidos por Israel ao Hezbollah e ao Irã com armas e apoio constante dos Estados Unidos, aliados ao fornecimento de armas para a Ucrânia por Biden, tornaram impossível, e até indesejável, que Assad fosse salvo pelos seus aliados mais próximos.
Mas o fato de que eles consideravam Bashar al-Assad como parte da sua estratégia para conter e prejudicar o Irã até dias antes da queda do presidente sírio indica claramente que, nem por um momento, eles acreditaram que Assad estivesse a poucos dias de um voo noturno para a Rússia, em busca de asilo.
Biden e Netanyahu realmente contribuíram para o fim do regime, mas de forma mais acidental do que planejada.
A queda do regime sírio pode ter colocado fim à cadeia de fornecimento do Irã, se os novos governantes do país decidirem que seus acordos com outros países são mais úteis do que a aliança entre o Irã e a Síria.
Todos os lados estão estudando muito e continuamente o que virá a seguir. É cedo demais para traçar conclusões definitivas.
Os sírios, seus vizinhos e o mundo como um todo enfrentam, agora, um novo terremoto geopolítico — o maior, entre os vários que se seguiram aos ataques do Hamas contra Israel, em outubro do ano passado. E talvez não seja o último.
O Irã observa o colapso dos últimos laços da rede que ele chamava de eixo da resistência. Seus membros mais importantes passaram por transformações: o Hezbollah sofreu sérios danos e o regime de Assad deixou de existir.
Os governantes iranianos poderão dar prosseguimento aos indícios de conversações sobre um acordo com Donald Trump, quando ele tomar posse nos Estados Unidos, no dia 20 de janeiro. Ou sua nudez estratégica pode levar o Irã a uma decisão fatal, de transformar seu urânio altamente enriquecido em uma arma nuclear.
Por sua vez, os sírios têm todas as razões para comemorar.
Nos anos que se seguiram a 2011, mesmo com toda a repressão e brutalidade do regime, Assad e seus seguidores ainda conseguiam encontrar homens para lutar. Muitos dos soldados que conheci nas frentes de batalha me disseram que Assad era uma opção melhor do que os jihadistas extremistas do grupo Estado Islâmico.
Mas, em 2024, quando confrontados por uma força rebelde organizada que insistia em ser nacionalista islâmica, mas não mais jihadista, os relutantes soldados do exército sírio se recusaram a lutar, retiraram seus uniformes e foram para casa.
No melhor dos cenários, os sírios, auxiliados pelos grandes líderes da região, irão encontrar uma forma de criar um clima pós-guerra de reconciliação nacional, não uma onda de saques e vingança que arraste o país para mais uma guerra.
O líder do vitorioso grupo HTS, Abu Mohammed al-Jawlani, convocou seus homens e todas as facções do país a manterem respeito mútuo. Seus seguidores derrubaram o regime e ele é o mais próximo que a Síria tem hoje de um líder de facto.
Mas o país tem dezenas de grupos armados que não concordam necessariamente com ele. Eles irão querer conquistar o poder nas suas próprias regiões.
No sul da Síria, milícias tribais não reconheceram o poder dos Assads. Eles não irão seguir as ordens do novo governo de Damasco se não concordarem com elas.
No deserto do leste do país, os Estados Unidos observaram uma grande ameaça entre os remanescentes do grupo Estado Islâmico. Esta ameaça justificou o lançamento de ondas de ataques aéreos.
Os israelenses, ameaçados pela perspectiva de uma nação islâmica nas suas fronteiras, estão encurralando a infraestrutura militar das forças armadas da Síria.
Talvez seja melhor encontrar uma forma de fazer com que um Exército Árabe reformado faça parte da solução em uma Síria sem muita lei e ordem. Afinal, a imprudente decisão americana de dissolver as forças armadas iraquianas em 2003 trouxe consequências desastrosas para o país.
Já na Turquia, o presidente Recep Tayyip Erdogan deve estar satisfeito com o resultado na Síria.
A Turquia de Erdogan fez mais do que qualquer outra potência para preservar a autonomia da província de Idlib, onde o HTS se transformou em uma força de combate quando a Síria parecia paralisada.
Erdogan poderá ver sua influência atravessando as fronteiras israelenses, em um momento em que as relações entre Israel e a Turquia foram envenenadas pela guerra na Faixa de Gaza.
O pior cenário para a Síria é que o país siga o exemplo de duas ditaduras árabes que viveram violento caos após a queda dos seus regimes.
O coronel Muammar Gaddafi (c. 1942-2011), na Líbia, e Saddam Hussein (1937-2006), no Iraque, foram retirados do poder sem que houvesse um substituto nos bastidores. E intervenções estrangeiras mal planejadas contribuíram muito para criar duas catástrofes.
O vácuo deixado pelos dois ditadores foi preenchido por ondas de saques, vingança, tomadas de poder e guerra civil.
Os sírios não são donos do seu próprio destino há gerações. Os indivíduos foram privados de decisões pelos dois presidentes da família Assad e seus seguidores. E o país perdeu sua autodeterminação depois da guerra, que deixou a Síria tão enfraquecida que as grandes potências estrangeiras usaram o país para aumentar e preservar seu próprio poder.
Os sírios ainda não têm poder sobre suas vidas. Mas eles poderão ter a chance de criar um país novo e melhor, se tiverem esse poder.