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De cartel mexicano às ruas dos EUA, BBC segue traficante na trilha do fentanil, ao qual Trump declarou guerra

Este negócio letal se tornou o centro de uma disputa econômica global

PEDRO RIBEIRO/DA EDITORIA/COM BBC 16/03/2025
De cartel mexicano às ruas dos EUA, BBC segue traficante na trilha do fentanil, ao qual Trump declarou guerra
Membros do cartel levantaram os bancos traseiros do carro para esconder comprimidos no tanque de combustível | Darren Conway/BBC

O traficante de fentanil de Los Angeles fica de lado, observando atentamente enquanto um agente do cartel de drogas mexicano prepara sua última remessa. A droga opioide sintética é embrulhada em papel alumínio, lacrada em plástico e, em seguida, colocada no tanque de gasolina do carro do traficante.

Jay, que não é seu nome verdadeiro, havia atravessado mais cedo a fronteira dos Estados Unidos para chegar a este esconderijo administrado por um cartel no lado mexicano da fronteira. A casa se parece com qualquer outra na vizinhança. Somos instruídos a entrar rapidamente, e um portão de ferro se fecha com força atrás de nós. Eles não produzem a droga aqui, mas ainda assim são cautelosos para não chamar atenção. Todos os homens falam em voz baixa, e trabalham rapidamente.

Este negócio letal se tornou o centro de uma disputa econômica global. A Casa Branca usou o contrabando de fentanil pelas fronteiras dos EUA como uma justificativa importante para aumentar as tarifas sobre outros países. O presidente americano, Donald Trump, também prometeu "travar uma guerra" contra os cartéis de drogas.

A BBC obteve um raro acesso à operação de um cartel ao longo da fronteira, e viajou para os EUA para conhecer seus clientes finais, a fim de verificar se a disputa internacional estava fazendo algo para deter o fluxo ilegal de drogas.

Os homens que a BBC encontrou no esconderijo são soldados de um conhecido cartel. Dois deles que estão carregando o carro admitem ter momentos fugazes de remorso. Mas quando pergunto ao homem que está colocando as drogas no tanque de combustível se ele se sente culpado pelas mortes que os comprimidos causam, ele ri. "Nós também temos família, é claro que nos sentimos culpados. Mas se eu parar, isso vai continuar. O problema não é meu", diz ele com indiferença.

Os homens mantêm os rostos cobertos enquanto removem o banco traseiro do carro para ter acesso ao tanque, tomando cuidado para não derramar gasolina. O cheiro dentro do carro pode alertar as autoridades alfandegárias do outro lado da fronteira de que o tanque de combustível foi adulterado.

Os comprimidos verde-claros, marcados com um M, estão embalados de forma compacta. São 5 mil no total — uma fração do que Jay diz vender toda semana em Los Angeles e no noroeste americano.

"Tento obter 100 mil comprimidos por semana, toda semana", afirma o traficante de fala mansa à BBC. "Eu não envio (os comprimidos) em um único veículo. Tento distribuí-los em carros diferentes. Desta forma, minimizo o risco de perder todos os meus comprimidos."

Um homem parado na penumbra, com o rosto escondido por um capuz preto e uma bandana, em frente ao muro de um esconderijo de cartel, com um grafite acima da sua cabeça

Crédito,Darren Conway/BBC

Legenda da foto,Jay, um traficante que cruzou a fronteira do México para Los Angeles, diz que sempre haverá demanda por fentanil

Uma tarifa de 25% sobre todos os produtos do México foi introduzida em resposta ao que o presidente Donald Trump disse ser o fluxo inaceitável de drogas e imigrantes ilegais para os EUA. Algumas destas tarifas foram adiadas até 2 de abril.

Acabar com o comércio de fentanil é uma das principais metas políticas do presidente Trump, mas Jay acha isso improvável de acontecer.

"Da última vez que ele esteve no cargo, tentou fazer a mesma coisa, e isso nunca aconteceu. Sempre haverá uma demanda. E onde está a maior demanda? Nos Estados Unidos, para nossa sorte. Estamos aqui na fronteira", diz Jay com um sorriso.

Há tanta droga entrando nos Estados Unidos, a maior parte proveniente do México, que, de acordo com Jay, o preço pelo qual ele vende o fentanil em Los Angeles caiu de cerca de US$ 5 ou US$ 6 por comprimido há um ano para US$ 1,50 agora.

A polícia mexicana afirma que os cartéis migraram de forma significativa para o fentanil, que é 50 vezes mais potente do que a heroína, porque, diferentemente de outros opiáceos — que são produzidos a partir do ópio da papoula —, ele é totalmente sintético, e muito mais fácil de produzir e transportar.

A intensidade e a capacidade de causar dependência do fentanil deixaram uma profunda cicatriz na sociedade americana: as overdoses de droga matam mais pessoas nos EUA do que armas de fogo ou acidentes de carro.

As mortes começaram a diminuir, talvez em parte devido à maior disponibilidade de naloxona, um medicamento que reverte os efeitos da overdose de opioides. Mas os números mais recentes ainda são gritantes: 87 mil mortes por overdose (principalmente de opioides) de outubro de 2023 a setembro de 2024, abaixo das 114 mil do ano anterior.

Em uma tentativa de evitar as tarifas punitivas da Casa Branca, a presidente do México, Claudia Sheinbaum, prometeu enviar 10 mil soldados da Guarda Nacional para a fronteira. O governo efetuou mais de 900 prisões desde outubro em Sinaloa, um grande centro de tráfico de drogas. Em dezembro, o México anunciou a maior apreensão de fentanil já realizada no Estado: mais de uma tonelada de comprimidos. Na verdade, o país apreendeu mais fentanil nos últimos cinco meses do que no ano anterior.

O México também dificultou a importação de um ingrediente essencial do fentanil da China, o que levou os cartéis a reduzir a concentração de cada comprimido — e, no processo, torná-los menos mortais.

Além disso, no fim de fevereiro, 29 prisioneiros acusados ​​de crimes relacionados ao narcotráfico foram extraditadas para os Estados Unidos, incluindo membros de cinco das seis organizações criminosas mexicanas que o governo Trump recentemente designou como terroristas.

A presidente Sheinbaum também disse que concordou que a CIA, a agência de inteligência americana, aumentasse as operações de vigilância com drones sobre o território mexicano em busca de laboratórios de fentanil, depois que a imprensa revelou as missões secretas.

Um homem usando um boné e uma bandana cobrindo o rosto, em uma sala vazia e mal iluminada

Crédito,Darren Conway/BBC

Legenda da foto,Alguns membros do cartel admitem sentir um remorso passageiro, mas dizem que o comércio continuaria sem eles

Jay reconhece os riscos do seu negócio para si mesmo e para seus clientes, mas não se incomoda.

"Eles sempre tentam nos culpar, dizendo que somos nós que estamos envenenando os cidadãos americanos. Mas eles são os maiores usuários."

Ele se isenta friamente da responsabilidade e da culpa pelas mortes causadas por suas drogas. E afirma não conhecer ninguém que tenha morrido usando seu produto. "Eu só lido com outros fornecedores", diz ele à BBC.

Os cartéis usam principalmente cidadãos americanos para transportar as drogas pela fronteira, uma vez que é menos provável que sejam parados pelo departamento americano de Alfândega e Proteção de Fronteiras. O motorista, que atende pelo nome de Charlie, tem passaporte americano. Ele também é indiferente ao sofrimento causado pela epidemia de fentanil.

"Preciso do dinheiro", diz ele. Quando perguntado quantas vezes já fez o transporte de drogas, ele responde: "Muitas". (Mais tarde, a BBC ficou sabendo que os 5 mil comprimidos escondidos no tanque de combustível atravessaram a fronteira sem incidentes).

Um memorial com fotos de milhares de vítimas de overdose de fentanil nas paredes da sede do Departamento de Combate às Drogas dos EUA

Crédito,Darren Conway/BBC

Legenda da foto,Um memorial para milhares de vítimas de overdose de fentanil na sede do Departamento de Combate às Drogas dos EUA

A presidente Sheinbaum também enfatizou recentemente o lado da demanda da crise, dizendo que a crise do fentanil nos EUA começou com a aprovação legal, mas "irresponsável", de analgésicos, como a oxicodona, a partir do fim da década de 1990. "O governo dos EUA deve assumir a responsabilidade pela crise de consumo de opioides que causou tantas mortes", afirmou ela em uma coletiva de imprensa.

Do outro lado da fronteira, está Derek Maltz, que passou a vida inteira trabalhando no combate às drogas nos EUA. Ele foi nomeado chefe interino do Departamento de Combate às Drogas (DEA, na sigla em inglês) e conversou com a BBC pouco antes da sua nomeação.

"Os cartéis mexicanos precisam saber que estamos chegando lá", ele disse. "Vamos fazer operações agressivas para ir atrás de vocês e dos seus negócios, porque vocês estão matando os jovens americanos em níveis recordes, e isso não vai ser tolerado."

Maltz concorda, no entanto, que visar apenas os cartéis não vai resolver a crise dos opioides. "Os cartéis são caras muito mal-intencionados", ele afirma. "São criminosos transnacionais. São narcoterroristas. Mas há um problema grave de demanda nos Estados Unidos, temos que abordar o motivo pelo qual nossa população está recorrendo às drogas em busca de ajuda."

No bairro de Kensington, na Filadélfia — conhecido como o maior mercado de drogas a céu aberto da costa leste dos EUA —, Rosalind Pichardo, da organização Operation Save Our City, está em sua segunda Bíblia. Ela registra nas páginas do livro o número de vezes que reverteu uma overdose de opioides usando o medicamento de ação rápida naloxona.

Nos últimos seis anos, foram 2.931 no total. Ela folheia as páginas, e este número escrito em vermelho ganha vida com as lembranças das pessoas que ela salvou e das que morreram.

Ela começa a listar: "Homem na faixa 60 anos... homem na casa de 30 anos... mulher com 30 e poucos anos, muito magra, sem cabelo". Ao lado de cada nome desta lista de vítimas do fentanil, está o número de doses de naloxona — vendida sob o nome de Narcan — que ela usou para tentar salvar as pessoas.

Rosalind Pichardo, com o cabelo preso em um coque, de calça jeans e casaco, parada do lado de fora do seu centro de apoio que tem 'Sunshine House' escrito na vitrine. Ela olha em direção à porta, enquanto um fluxo de pessoas entra no centro

Crédito,Darren Conway/BBC

Legenda da foto,Rosalind Pichardo reverteu milhares de overdoses de opioides com o medicamento naloxona

Pichardo, que dirige um centro de apoio chamado Sunshine House, administra o que ela chama de "espaço sem julgamentos". Ela se incomoda com termos como "viciado", "drogado" ou "zumbi", que têm sido usados para descrever as pessoas da sua vizinhança. Em vez disso, ela chama todo mundo de "raio de sol".

De alguns, ela não se lembra; de outros, ela nunca vai se esquecer.

"Veja esta aqui, com sete anos, dois Narcans", ela destaca. Pichardo foi chamada à casa de um vizinho, onde uma mulher segurava nos braços uma criança que havia ficado azul. Pichardo entrou na casa, e a menina foi colocada no chão, mas enquanto ela entrava, o pai da criança subiu as escadas correndo com uma sacola. "Pensei na hora que se fosse minha filha, eu estaria correndo para ajudá-la", ela recorda.

A princípio, ela pensou que poderia ser epilepsia, mas viu balanças de drogas e saquinhos plásticos em uma mesa próxima. O pai da criança era traficante de drogas; a menina de sete anos havia sido intoxicada pelo produto dele, e teve uma overdose. "Fiquei furiosa", diz ela.

Aquelas duas doses de Narcan foram suficientes para salvar a vida da criança.

Em outra página, uma mulher grávida de seis meses, duas doses de Narcan. Ela também sobreviveu.

Uma pessoa de moletom preto com capuz está caída para frente em uma cadeira, aparentemente desmaiada, dentro do movimentado centro de atendimento

Crédito,Darren Conway/BBC

Legenda da foto,Alguns dos usuários de drogas que visitavam a Sunshine House pareciam desmaiar ou entrar em colapso enquanto a equipe de reportagem estava filmando

Em Kensington, as drogas são baratas e abundantes, e as pessoas se injetam ao ar livre. Ao caminhar pelo bairro, Pichardo encontra pessoas desmaiadas na calçada, uma mulher em estado de estupor com as calças abaixadas, um homem deitado de bruços ao lado de uma catraca do metrô, e outro em uma cadeira de rodas, com os olhos fechados e dinheiro nas mãos.

Ele, assim como um número cada vez maior de usuários de opioides, teve um membro amputado. Uma nova droga nas ruas, o tranquilizante animal xilazina, está sendo misturada com fentanil. Isso leva a feridas abertas que infeccionam. Em alguns lugares, o ar é fétido.

John White tem 56 anos e, durante 40 anos, lutou contra a dependência. Na Sunshine House, Pichardo serve a ele uma tigela de sopa caseira.

"Passei toda a minha vida nesta cidade", diz ele. "A epidemia de fentanil e opioides é a pior que já vi. O fentanil vai te deixar tão viciado que você tem que comprar mais. Então, eles o colocam em tudo."

White teve uma overdose de fentanil depois de fumar um baseado misturado com a droga — o fentanil está sendo adicionado a todos os tipos de drogas ilícitas, incluindo heroína, cocaína e maconha.

John White, de barba grisalha, usando chapéu e casaco, fotografado no centro de atendimento, há outras pessoas fora de foco atrás dele. Uma lágrima está escorrendo por sua bochecha

Crédito,Darren Conway/BBC

Legenda da foto,John White diz que a epidemia de fentanil é a pior que ele já viu

Pichardo tem pouca esperança de que, mesmo que o comércio de fentanil seja reprimido no México, isso melhore a vida das pessoas em Kensington.

"O problema que temos com a guerra às drogas é que ela não funcionou naquela época, [e] não acredito que vá funcionar agora", explica.

Quando o fornecimento de uma droga é cortado, outra a substitui, diz ela. "Antes havia heroína, agora não há mais. Agora há o fentanil. Quando não houver fentanil, será a xilazina. Então, é como se eles encontrassem uma maneira de manter as pessoas viciadas para que possam ganhar dinheiro às custas delas, com o sofrimento delas", avalia Pichardo.

Bem em frente à Sunshine House, uma jovem é encontrada desmaiada na calçada, com o corpo esparramado no concreto: ela não responde. Pichardo chega rapidamente ao local, com o kit médico ao seu lado, mais uma vez administrando naloxona. A mulher acaba sendo reanimada — ela vai sobreviver.

Rosalind Pichardo retorna à Sunshine House, outra vida salva e outro dígito a ser adicionado às páginas da sua Bíblia surrada.