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Como Trump está usando tribunais para alcançar o que quer, ampliando os poderes presidenciais

Todas estas decisões fortaleceram o atual presidente que, depois de remodelar a Suprema Corte americana com sólida maioria conservadora, tem agora em vista os tribunais inferiores

PEDRO RIBEIRO/DA EDITORIA/COM BBC 28/07/2025
Como Trump está usando tribunais para alcançar o que quer, ampliando os poderes presidenciais
Trump também pediu impeachment dos juízes que não concordam com ele. Houve ainda ameaças de processar esses juízes | Bloomberg via Getty Images

Era um final de tarde quente em Manhattan, em maio de 2024. O júri deliberava pelo segundo dia, no julgamento de Donald Trump em Nova York, nos Estados Unidos, sobre o suborno pago pelo seu ex-advogado para a estrela de filmes pornô Stormy Daniels.

Acreditando que ainda fôssemos esperar por muito tempo, saí com a equipe da BBC para almoçar um sanduíche Reuben (com carne enlatada, queijo e chucrute), na mundialmente famosa lanchonete Katz's.

Foi quando o mundo caiu. Os jurados estavam voltando.

Rumores diziam, de um lado, que eles estavam apenas encerrando o dia e indo para casa; de outro, que eles haviam chegado a um veredicto.


Segundos antes do início do telejornal BBC News at Ten, cheguei sem fôlego ao ponto de transmissão ao vivo, no lado de fora do tribunal. Na pressa, esmaguei a tela do meu celular na calçada.

Um a um, eram anunciados os veredictos: culpado... culpado... culpado...

Donald Trump sentado no banco dos réus no interior do tribunal, aguardando a continuação das deliberações do júri durante seu julgamento por suborno no Tribunal Criminal de Manhattan em 30 de maio de 2024, em Nova York (EUA)

Crédito,Getty Images

Legenda da foto,Em entrevista recente ao jornalista da BBC Gary O'Donoghue, Donald Trump chamou os juízes que suspenderam ordens executivas presidenciais de "lunáticos radicais de esquerda"

Trump foi considerado culpado por todas as 34 acusações. Passei o principal noticiário daquela noite explicando a enormidade da ideia de que um ex-presidente americano, agora, era um criminoso condenado — o primeiro da história do país.

Como principal correspondente da BBC na América do Norte, passei meses cobrindo os diversos problemas jurídicos enfrentados por Trump, em tribunais espalhados por toda a Costa Leste americana.

Foram quatro ações criminais distintas e diversas ações civis. As acusações vinham até ele de todos os lados, ameaçando não apenas sua liberdade, mas sua própria existência política e comercial.

Um ano se passou e o vento, agora, sopra do lado oposto, graças a três julgamentos importantes da Suprema Corte dos Estados Unidos.

Um deles concedeu aos presidentes e ex-presidentes americanos ampla imunidade contra ações penais. Um segundo rejeitou a decisão de que as tentativas de Trump de reverter os resultados da eleição de 2020 o impediriam de concorrer novamente à presidência.

E uma terceira decisão, no mês passado, restringiu o poder dos juízes distritais de refrear a agenda presidencial.

Todas estas decisões fortaleceram o atual presidente que, depois de remodelar a Suprema Corte americana com sólida maioria conservadora, tem agora em vista os tribunais inferiores.

Nove juízes da Suprema Corte dos Estados Unidos posam para o retrato público, vestindo roupas oficiais pretas

Crédito,Reuters

Legenda da foto,Os juízes da Suprema Corte americana, em 2022

Os juízes distritais federais costumavam tomar decisões sobre política imigratória que, segundo eles, seriam aplicadas a todo o país. Agora, eles enfrentam uma investida frontal de um governo que questionou sua legitimidade e que, para alguns, desrespeitou a própria autoridade da Justiça.

A questão é: será que eles deveriam revidar para recuperar sua autoridade? E, neste caso, o que poderiam fazer?

Será que tudo isso irá remodelar permanentemente o equilíbrio entre os poderes nos Estados Unidos, mesmo após o final do mandato de Donald Trump?

'O mais grave ataque à democracia'

Diversos juízes, aposentados e em atividade, me disseram que o "ataque" é de uma escala nunca vista.

O ex-juiz da Pensilvânia John E. Jones III foi nomeado pelo ex-presidente George W. Bush (2001-2009), que é republicano. Atualmente, ele preside a Escola de Artes Dickinson College.

"Acho que é razoável dizer que, particularmente, os tribunais distritais dos Estados Unidos... [estão] sob ataque pelo governo de forma sem precedentes", afirmou ele.

Além dos pitorescos detalhes durante nossa recente entrevista ao telefone, o presidente americano já chamou vários juízes de "desonestos", "monstros", "desequilibrados", "lunáticos", "radicais de esquerda" e disse que eles "odeiam os Estados Unidos".

Stephen Miller chega para um evento de campanha do então candidato republicano à presidência Donald Trump, no aeroporto de Lancaster, em Lititz, na Pensilvânia, no dia 3 de novembro de 2024. Ele caminha por um tapete vermelho, vestindo terno e acenando, rodeado de bandeiras dos Estados Unidos.

Crédito,Getty Images

Legenda da foto,O vice-chefe de Gabinete da Casa Branca, Stephen Miller, declarou que seu país vive sob a tirania do Judiciário

Trump também pediu impeachment dos juízes que não concordam com ele. Houve ainda ameaças de processar esses juízes.

Seu vice-chefe de Gabinete para políticas, Stephen Miller, foi ainda mais incisivo. Ele declarou que o país vive sob a tirania do Judiciário.

"Todos os dias, eles alteram a política externa, econômica, de pessoal e de segurança nacional do governo", postou ele em março na plataforma X (antigo Twitter). "É loucura. É um disparate. É ilegalidade pura."

"É o maior ataque [verificado] contra a democracia. Isso precisa e vai acabar."

De constrangimento a ameaças de morte

Os juízes americanos vêm enfrentando cada vez mais hostilidade. E, em alguns casos, houve ameaças de violência por parte do público em geral.

"[Eles] enfrentam ameaças que nunca haviam observado antes", afirma a ex-juíza federal Nancy Gertner. Atualmente, ela é professora da Faculdade de Direito Harvard.

Gertner foi nomeada pelo ex-presidente Bill Clinton (1993-2001) e atuou como juíza federal por 17 anos no Estado de Massachusetts.

Para ela, "sem dúvida, o tipo de desonra pública imposto aos juízes que discordam do governo é diferente de qualquer outra época".

Gertner conta que conhece juízes em atividade que receberam ameaças de morte este ano. Acredita-se que elas tenham sido causadas por bloqueios ou postergações de algumas das ordens executivas do presidente.

Não há indicações de que Trump tivesse qualquer conhecimento dessas ameaças.

Os números compilados pelo US Marshals (o Serviço de Delegados de Polícia dos Estados Unidos, responsável pela proteção ao Judiciário no país) mostram que, até meados de junho, houve mais de 400 ameaças contra quase 300 juízes. O número ultrapassa a soma de todo o ano de 2022.

Algumas delas envolvem constrangimento, como ameaças de publicação de informações pessoais sobre o juiz ou sua família, que os deixariam sujeitos a ataques. E houve outras formas de intimidação ainda mais sinistras em 2025.

A juíza distrital em atividade Esther Salas, do Estado de Nova Jersey, afirma que mais de 100 juízes receberam falsos pedidos de entrega de pizza.

Você pode imaginar que não haja nada de sério nisso, mas as entregas, muitas vezes, eram acompanhadas de ameaças. E, em cerca de 20 casos, os pedidos foram feitos em nome de Daniel Anderl (2000-2020), filho falecido da juíza Salas.

Anderl foi morto cinco anos atrás por um advogado descontente com uma ação julgada pela mãe. O agressor se apresentou com entregador de pizza e também atirou no marido da juíza.

Vista da residência amarela da juíza distrital americana Esther Salas, cercada com fita da polícia no lado de fora

Crédito,Getty Images

Legenda da foto,A casa da juíza Esther Salas, após o ataque que matou seu filho, em julho de 2020

Salas me contou sua reação ao saber do que estava acontecendo.

"Dizer que eu estava com raiva é pouco. E, é claro, precisei chegar em casa e contar ao meu marido, que quase [morreu]."

O aumento das ameaças começou antes do governo atual. Mas Salas afirma que estamos, agora, em um novo panorama.

"Quando [se utiliza] retórica inflamada, estamos convidando os indivíduos a nos fazer mal", afirma ela. "Isso é dar luz verde a qualquer pessoa que ache que precisa agir com as próprias mãos. E os nossos líderes sabem disso."

Muitos apoiadores do atual governo rejeitam a noção de que a retórica do presidente é responsável pelo aumento das tensões.

Um deles é Jeff Anderson, um dos arquitetos do chamado Projeto 2025, que muitos consideram o roteiro do segundo mandato de Donald Trump.

Anderson defende que a esquerda é a maior culpada pela hostilidade aos juízes.

Para ele, "a ameaça mais relevante a qualquer pessoa nos tribunais federais ocorreu quando alguém tentou assassinar o juiz [conservador] da Suprema Corte Brett Kavanaugh".

"Existe esta tendência de caracterizar o governo Trump como tendo possibilitado isso", prossegue Anderson.

"Acho que muitas das ideias revolucionárias mais radicais, de que precisamos fazer justiça com as próprias mãos e que os fins justificam os meios... tendem a [vir] da esquerda na América."

Avalanche de ordens executivas

Outros presidentes já tiveram conflitos com a Justiça. Mas a escala e a fúria dos confrontos de Trump são inquestionavelmente únicos.

Talvez eles tenham sido inevitáveis, já que ele chegou à Casa Branca com uma avalanche de ordens executivas para conseguir o que queria rapidamente.

Somente no primeiro dia do seu segundo mandato, Trump assinou 26 ordens executivas. E foram mais 140 até o início de julho.

Estes números somente do segundo mandato superam o ex-presidente Joe Biden, durante seu mandato de quatro anos (2021-2025). E estão a apenas cerca de 100 ordens do total emitido pelo ex-presidente Barack Obama (2009-2017), em oito anos na Casa Branca.

Gráfico com a quantidade de ordens executivas emitidas pelos últimos presidentes americanos.

Trump poderia ter pedido ao Congresso que criasse leis para implementar essas políticas. Afinal, os republicanos atualmente controlam as duas câmaras do Legislativo americano.

Mas este processo leva tempo e o Congresso andou ocupado com a legislação doméstica que se tornou a marca registrada do presidente: o chamado "Grande e Belo Projeto de Lei". Com isso, não sobrou tempo, nem capital político, para outras prioridades.

É claro que as ordens executivas estão perfeitamente dentro da prerrogativa do presidente. O poder de emitir essas ordens vem diretamente do Artigo 2° da Constituição dos Estados Unidos.

Ou seja, Trump não está desafiando, nem ignorando a Constituição. Ele está usando os instrumentos do governo conforme o permitido, já que as ordens invocam autoridade legislativa e têm, de fato, força de lei.

O que o presidente não pode fazer com uma canetada é criar novas leis, nem fazer nada que seja contrário à Constituição.

E, se o Congresso não intervier na questão, a única opção para questionar essas ordens será ir à Justiça.

O ex-presidente americano Barack Obama e o então vice-presidente Joe Biden cumprimentam o presidente Donald Trump após sua posse no Capitólio para o primeiro mandato, em 20 de janeiro de 2017, em Washington DC.

Crédito,Getty Images

Legenda da foto,Outros presidentes já tiveram conflitos com a Justiça. Mas a escala dos confrontos de Trump é inquestionavelmente única.

Muitas das ordens executivas assinadas por Donald Trump envolvem questões constitucionais, como o direito à cidadania americana por nascimento. E a natureza abrangente dessas medidas trouxe dezenas de medidas cautelares que aguardam decisão sobre o mérito de casos individuais.

É por isso que a vitória de Trump na Suprema Corte, no final de junho, cerceando essas medidas cautelares em todo o país, é tão significativa.

"Esses juízes distritais ficaram totalmente desalinhados e fora de controle", defende Jeff Anderson.

Os juízes estão bloqueando 'desejos do eleitorado'?

O governo Trump desenvolveu diversos argumentos para lidar com esta questão. O Judiciário foi acusado de "passar dos limites" e os próprios juízes, de serem "ativistas".

Mas talvez a crítica mais básica (e filosófica) é que eles estariam se interpondo no caminho da vontade popular. Nas palavras de Stephen Miller, "juízes marxistas fora de controle" estão bloqueando os "desejos do eleitorado".

Este argumento, segundo muitos juízes, é fundamentalmente uma interpretação errônea da Constituição americana.

"Somos uma nação de leis, não de homens", explica o juiz John E. Jones III.

"Um mandato para o presidente dos Estados Unidos não significa um mandato para ignorar a lei. Isso é óbvio, mas o que se tenta encobrir é um desprezo fundamental à lei e à Constituição."

Trump aponta para a audiência, em frente a bandeiras dos Estados Unidos e do Reino Unido

Crédito,Bloomberg via Getty Images

Legenda da foto,As ordens executivas estão perfeitamente dentro da prerrogativa do presidente, segundo o Artigo 2° da Constituição dos Estados Unidos

Existem sinais de que alguns indivíduos do governo, apesar das suas afirmações em contrário, podem estar flertando com a ideia de ignorar a autoridade da Justiça.

czar da fronteira do presidente, Tom Homan, foi à televisão para falar sobre as tentativas de um tribunal de evitar a deportação de centenas de venezuelanos.

"Tenho orgulho de fazer parte deste governo", declarou ele. "Não estamos parando... Não importa o que pensam os juízes."

Mas, na sua entrevista à BBC na semana passada, Trump negou que estivesse desafiando o Judiciário. Ele indicou que, quando foram tomadas decisões contrárias à presidência, ele buscou a solução na Justiça.

"Tenho respeito demais para desafiá-los. Tenho grande respeito pelo Judiciário. E você pode ver isso", declarou ele. "Por isso, estou ganhando nos recursos."

'Situação catastrófica'

Alguns críticos veementes do presidente americano vão além.

Eles afirmam que ele está destruindo todo o sistema de freios e contrapesos, que conta com três poderes de governo (o Executivo, Legislativo e Judiciário) em igual posição, com cada um agindo como freio para os demais.

"Esta é uma enorme reviravolta para o país", segundo o professor Laurence Tribe, um dos mais renomados especialistas em assuntos relativos à Constituição dos Estados Unidos. Ele se tornou um crítico incisivo do presidente.

Tribe defende que o Congresso deixou de realizar sua função de fiscalização e receia que "os Estados Unidos enfrentem uma situação catastrófica".

"A ideia de três poderes... foi criada na nossa fundação, antes do crescimento dos partidos políticos e do surgimento de demagogos eficazes e carismáticos como Trump", declarou o professor. "O sistema como um todo está completamente desequilibrado."

Manifestantes se reúnem no lado de fora da Suprema Corte dos Estados Unidos em Washington DC, no dia 1º de julho de 2024

Crédito,EPA-EFE/REX/Shutterstock

O equilíbrio a que Tribe se refere vem sendo debatido há muito tempo. E a mudança de poder em relação ao Executivo não é uma queixa nova.

Depois do escândalo Watergate nos anos 1970, quando o então presidente Richard Nixon (1913-1994) ignorou muitas das normas respeitadas pelos seus antecessores, foram criadas inúmeras leis para restringir e responsabilizar o Executivo.

Mas algumas das mudanças envolveram apenas a adoção de novas normas, como a publicação das declarações fiscais dos presidentes e evitar conflitos de interesse financeiro. E o atual presidente demonstrou pouco interesse em respeitar estas regras.

A reação do Judiciário

Sobre a relação entre o Executivo e o Judiciário, o próprio Nixon deixou de desafiar a autoridade da Justiça. Ele acabou fornecendo as infames fitas de Watergate, quando a Suprema Corte ordenou sua entrega por unanimidade, após meses de recusa presidencial.

E Trump já chegou perto do descumprimento de ordens judiciais.

Quando a Suprema Corte ordenou o retorno aos Estados Unidos de Kilmar Ábrego García, deportado erroneamente para El Salvador, o governo americano foi acusado de retardar o cumprimento da decisão.

A própria procuradora-geral de Trump, Pam Bondi, declarou: "Ele não irá voltar para o nosso país."

O governo levou dois meses para cumprir a ordem judicial, o que os críticos do presidente consideraram uma amostra do que poderia estar por vir.

Afinal, existem apenas duas formas de realmente responsabilizar um presidente pelas suas ações: retirá-lo do poder pelo voto ou por impeachment pelo Congresso. E Trump já sobreviveu às duas.

Donald Trump sai para um intervalo do julgamento sobre fraude contra a Organização Trump, na Suprema Corte do Estado de Nova York, no dia 7 de dezembro de 2023

Crédito,AFP via Getty Images

Legenda da foto,Esta batalha está longe de acabar — e suas consequências para os futuros presidentes americanos são imprevisíveis

Mas, se realmente existir um plano de desafiar ou neutralizar os tribunais, o Judiciário não irá desistir sem luta.

Mesmo depois que a Suprema Corte decidiu, no final de junho, refrear as medidas cautelares em todo o país (algo que já foi objeto de críticas de presidentes dos dois partidos no passado), outro juiz tomou esta mesma medida sobre a política de asilo de Donald Trump.

No início de julho, um juiz distrital americano emitiu um novo bloqueio nacional à ordem executiva de Trump que restringe o direito automático à cidadania americana aos bebês nascidos nos Estados Unidos, filhos de imigrantes sem documentos ou visitantes estrangeiros. A decisão trouxe novas palavras furiosas vindas da Casa Branca.

A batalha está posta e longe de acabar. E suas consequências para Donald Trump e para os futuros presidentes americanos são imprevisíveis.