Mundo
Asilo na Argentina, conversas com Malafaia e advogado de empresa de Trump: os argumentos da PF para indiciar Jair e Eduardo Bolsonaro
Para a PF, pai e filho atuaram de forma consciente para que o Brasil fosse alvo de sanções impostas pelo governo dos Estados Unidos

A Polícia Federal indiciou o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) e o deputado federal Eduardo Bolsonaro (PL-SP), que atualmente vive nos Estados Unidos, por coação (intimidação) a autoridades que atuam no processo que apura uma suposta tentativa de golpe de Estado na qual o ex-presidente é réu.
O indiciamento significa que, para a PF, há elementos para crer que pai e filho atuaram para pressionar autoridades envolvidas no curso do processo — que entrará na reta final a partir de setembro.
Para a PF, pai e filho atuaram de forma consciente para que o Brasil fosse alvo de sanções impostas pelo governo dos Estados Unidos.
"A análise dos novos dados identificados no aparelho se somou ao elementos probatórios da primeira medida judicial de 18/07/2025 e corroboram a hipótese criminal de um conjunto orquestrado de ações praticadas pelo grupo investigado, voltadas a coagir membros do Poder Judiciário e, mais recentemente, do Poder Legislativo (Câmara e Senado), de modo a tentar subjugar os respectivos Chefes de Poderes aos anseios do grupo investigado, com a finalidade de obtenção de vantagem indevida", diz um trecho do documento.
Ainda de acordo com a PF, diálogos apontam que Jair Bolsonaro defendia a anistia aos envolvidos nos atos de 8 de janeiro de 2023 como a única alternativa para que as sanções fossem retiradas.
A conclusão faz parte do relatório final de um inquérito aberto em maio deste ano sobre a conduta de Eduardo Bolsonaro no exterior e teve como base conteúdo extraído de celulares de Jair Bolsonaro apreendidos pela PF.
Entre os elementos encontrados pela PF estão a minuta de um pedido de asilo político ao governo da Argentina, trocas de mensagens com um advogado ligado à empresa de mídia do presidente Donald Trump e mensagens trocadas com o pastor Silas Malafaia.
O ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Alexandre de Moraes deu 48h para a defesa de Jair Bolsonaro prestar esclarecimento sobre o "comprovado risco de fuga", "os reiterados descumprimentos das medidas cautelares impostas" e a "reiteração das condutas ilícitas".
Em nota enviada à imprensa, Eduardo Bolsonaro afirmou que sua atuação nos EUA "jamais teve como objetivo interferir em qualquer processo em curso no Brasil" e que seu pleito é, na verdade, pelo "restabelecimento das liberdades individuais no país".
O deputado também criticou que a PF não teria identificado os autores dos crimes.
"Se a tese da PF é de que haveria intenção de influenciar políticas de governo, o poder de decisão não estava em minhas mãos, mas sim em autoridades americanas, como o presidente Donald Trump, o Secretário Marco Rubio ou o Secretário do Tesouro Scott Bessent. Por que, então, a PF não os incluiu como autores?", indagou o parlamentar, criticando também o vazamento de conversas privadas.
A BBC News Brasil enviou questionamentos à defesa de Jair Bolsonaro e ao pastor Silas Malafaia, que também é citado no relatório da PF, mas até momento, nenhuma resposta foi enviada.
Malafaia não foi indiciado, mas foi alvo de uma ordem de busca e apreensão e retenção de passaporte ordenada pelo ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF).
Ação coordenada de pai e filho
Para a Polícia Federal, Jair e Eduardo Bolsonaro atuaram juntos para que o Brasil fosse alvo de sanções impostas pelos Estados Unidos com o objetivo de pressionar autoridades envolvidas no julgamento do processo sobre a trama golpista, que tramita no STF.
"Contexto dos diálogos revela alinhamento prévio entre os investigados quanto ao ajuste de narrativas que seriam encaminhadas a opinião pública, com o desenrolar da repercurssão gerada pelo anúncio da imposição de tarifas. Assim, verifica-se que os investigados não só tinham ciência prévia das ações que estavam por vir, como atuaram de forma coordenada, em unidade de desígnios, para concretização de sanções por governo estrangeiro contra o Estado Brasileiro", afirma o relatório da PF.
Entre as mensagens extraídas do telefone de Bolsonaro, há uma em que Eduardo Bolsonaro parece pressionar o pai para se manifestar de forma mais enfática a favor do tarifaço imposto por Donald Trump sobre o Brasil em 9 de julho.
"O cara mais poderoso do mundo está a seu favor. Fizemos nossa parte. Se o maior benficiado não consegue fazer um tweet vaselina, aí realmente ferrou. Vc tem sido o meu maior empecilho para poder te ajudar", disse Eduardo, segundo o relatório da PF.
Leia também
INDICIAMENTO DA PF PF indicia Jair e Eduardo Bolsonaro por coação na ação penal do golpe e faz buscas contra o pastor Silas Malafaia COAÇÃO PF faz buscas e apreensões contra Silas Malafaia e impõe proibição de deixar o país INDICIAMENTO DA PF 'INGRATO': Eduardo xinga Bolsonaro após ser chamado de imaturo em entrevista sobre conflito com Tarcísio INDICIAMENTO DA PF Bolsonaro preparou pedido de asilo político na Argentina, diz PF INDICIAMENTO DA PF Casa Rosada diz não ter recebido pedido de asilo de Bolsonaro INDICIAMENTO DA PF Ouça ÍNTEGRA da troca de áudios entre Bolsonaro e Malafaia interceptada pela PF INDICIAMENTO DA PF PF expõe entranhas do bolsonarismo e aliados acusam "vazamento político" INDICIAMENTO DA PF Bolsonaro, Eduardo e Malafaia: entenda próximos passos de investigaçõesAsilo na Argentina

Crédito,Getty Images
Outro elemento identificado pela PF no celular de Jair Bolsonaro foi um documento com a minuta de um pedido de asilo ao governo da Argentina, país presidido pelo aliado do ex-presidente Javier Milei.
Segundo o relatório da PF, o documento teria sido criado em 10 de fevereiro de 2024.
Ainda de acordo com o relatório, o pedido de asilo tinha 33 páginas e foi salvo no celular do ex-presidente dois dias após a PF deflagrar a operação Tempus Veriatis, que fez parte das investigações sobre a suposta participação de Bolsonaro na trama golpista.

Crédito,Reprodução/Polícia Federal
Foi nessa operação que Bolsonaro teve de entregar seu passaporte às autoridades brasileiras.
"Embora se trate de um único documento em formato editável, sem data e assinatura, seu teor revela que o réu, desde a deflagração da operação Tempus Veritatis, planejou atos para fugir do país, com o objetivo de impedir a aplicação de lei penal", diz a PF no documento.
Bolsonaro e Milei são aliados políticos. Ambos trocaram apoio político durante as eleições no Brasil e na Argentina.
Para a PF, o pedido de asilo teria o objetivo de evitar que Bolsonaro fosse submetido às investigações que tramitam contra ele.
"Os elementos informativos encontrados indicam, portanto, que o ex-presidente JAIR BOLSONARO tinha em sua posse documento que viabilizaria sua evasão do Brasil em direção à República Argentina, notadamente após a deflagração de investigação pela Polícia Federal com a identificação de materialidade e autoridade delitiva quanto aos crimes de abolição violenta do Estado Democrático de Direito por organização criminosa", afirma a PF em seu relatório.
Ligação de Malafaia

Crédito,IGUEL SCHINCARIOL/AFP VIA GETTY IMAGES
As investigações da PF identificaram que Silas Malafaia, líder evangélico e aliado histórico de Jair Bolsonaro, teria desempenhado um papel ativo na estratégia de intimidação a autoridades brasileiras ligadas ao processo que julga a suposta trama golpista.
Segundo a PF, Malafaia teria usado sua posição de influência para difundir mensagens que reforçavam as ações do grupo, especialmente após a imposição de tarifas de 50% pelos EUA contra o Brasil.
Segundo o relatório, no dia 10 de julho de 2025, um dia após o anúncio do tarifaço, Malafaia enviou diretamente ao ex-presidente uma mensagem afirmando que Bolsonaro havia "voltado para o jogo" e que, a partir daquele momento, seria inevitável que autoridades brasileiras tivessem de negociar.
"Presidente! Você voltou para o jogo. Podem usar bravatas aqui, vão ter que sentar na mesa para negociar. Você é o cerne da questão. Quem é o Brasil para peitar os EUA? Mico contra um gorila. O vídeo que vou postar daqui a pouco eu vou ao cerne da questão. A próxima retaliação vai ser contra ministros do STF e suas famílias. Vão dobrar a aposta apoiando o ditador? Duvido!", diz mensagem atribuída a Malafaia a Bolsonaro pela PF.
No mesmo dia, Malafaia avisou Bolsonaro que publicaria um vídeo nas redes sociais em que abordaria diretamente os ministros do STF.
Em outra mensagem atribuída a Malafaia pela PF, o pastor teria orientado Bolsonaro a pressionar ministros do STF após o anúncio do tarifaço.
"Tem que pressionar o STF dizendo que se houver uma anistia ampla e total, a tarifa vai ser suspensa. Ainda pode usar o seguinte argumento: não queremos ver sanções contra ministros do STF e suas famílias! Eles se cagão (sic) disso! A questão da tarifa é justiça e liberdade, não econômica. Traz o discurso para isso!", diz a mensagem.
Para a PF, Malafaia contribuiu para a estratégia de pressionar ministros do STF.
"De forma previamente ajustada de ação, em sintonia com os objetivos dos demais investigados, demonstra aderência subjetiva do líder religioso ao intento criminoso. Referida estratégia consistiria na utilização da posição de autoridade de Silas Malafaia perante seu público para propagar atos de coação contra ministros do STF", diz a PF.
Acusação de descumprimento das medidas cautelares

Crédito,REUTERS/PILAR OLIVARES
O relatório da PF afirma que o conteúdo encontrado no celular de Bolsonaro demonstra que ele "agiu de forma deliberada para descumprir as medidas cautelares" determinadas pela Justiça.
Mas, segundo a PF, o ex-presidente continuou agindo com estratégias de uma "milícia digital": "difusão em alto volume, por multicanais, de forma rápida, contínua, utilizando pessoas com posição de autoridade perante o público-alvo, para dar uma falsa credibilidade às narrativas propagadas."
De acordo com a polícia, após ter o celular apreendido em 18 de julho, Jair Bolsonaro obteve um novo aparelho em 25 de julho.
Menos de uma hora após a ativação do celular, Malafaia enviou uma mensagem a Bolsonaro pedindo que ele disparasse vídeos, o que foi eventualmente atendido pelo ex-presidente.
A PF disse ter identificado ainda "grande atividade" de Bolsonaro no dia 3 de agosto, um domingo em que várias cidades brasileiras tiveram manifestações a seu favor.
"(...) Houve grande atividade de compartilhamento por meio do aplicativo de WhatsApp englobando diversos conteúdos, incluindo vídeos relacionados às sanções do Ministro ALEXANDRE DE MORAES (Lei Magnitsky)", diz um trecho do relatório da polícia, referindo-se à lei americana sob a qual o ministro do STF foi penalizado.
Os investigadores identificaram uma mensagem atribuída ao deputado federal Capitão Alden (PL-BA) em que este pediu a Bolsonaro para mandar um áudio para manifestantes na Bahia.
"Alden, se eu falar qualquer coisa, dá problema. Você pode ligar para mim na imagem falando: 'Estou aqui com a imagem do Bolsonaro, está mandando abraço a todos vocês e parabenizando'. Aí você pode. Você fala. Eu não posso falar, não. Valeu", respondeu Bolsonaro.
Ainda assim, o ex-presidente enviou a Alden imagens suas e mensagens afirmando que estava acompanhando a manifestação de casa e agradecendo à Bahia.
A participação virtual de Bolsonaro em manifestações naquele domingo motivaram a decretação de sua prisão domiciliar no dia seguinte.
No Rio de Janeiro (RJ), o senador Flávio Bolsonaro (PL-RJ), filho do ex-presidente, colocou o pai no viva-voz e publicou o vídeo no Instagram. Depois, a postagem foi apagada.
Além disso, Jair Bolsonaro apareceu por meio de uma ligação de vídeo no celular do deputado federal Nikolas Ferreira (PL-MG) na manifestação em São Paulo (SP).
Ligação de Bolsonaro com advogado de empresa de Trump
A PF também aponta a existência de uma ligação direta entre Jair Bolsonaro e o advogado Martin de Luca — que representa a empresa Trump Media, do presidente Donald Trump, e a rede social Rumble.
Ambas empresas moveram um processo contra Alexandre de Moraes nos Estados Unidos por suposto abuso do ministro do STF em decisões referentes a contas e conteúdos postados na plataforma.
A PF identificou trocas de mensagens entre Bolsonaro e Luca.
Segundo a PF, Bolsonaro chegou a enviar áudios solicitando ajuda do advogado na formulação de um texto de agradecimento a Donald Trump após o anúncio das tarifas de 50% sobre produtos brasileiros.
A PF também encontrou documentos que sugerem que Bolsonaro tinha acesso direto sobre ações que a empresa de Donald Trump tomaria contra Alexandre de Moraes.
Um desses documentos tinha sete páginas e foi salvo no celular de Bolsonaro em 14 de julho.
Tratava-se de uma suplementação da ação movida pela empresa contra Moraes. O complemento foi encaminhado à Justiça da Flórida no mesmo dia. Para a PF, isso aponta para quais seriam as reais intenções da empresa ao processar Moraes.
"O contexto probatório identificado demonstra um cenário de ações previamente ajustadas entre o investigado Jair Bolsonaro e o representante judicial da empresa Rumble, Martin de Luca. Nesse sentido, a circunstância fática de encaminhamento ao ex-presidente de petição subscrita pelo representante da empresa RUMBLE na mesma data de apresentação à justiça americana (14.07.2025), constitui indício relevante que evidencia desvio quanto a real finalidade das pretensões deduzidas pela empresa em face de litigância contra Ministro do Supremo Tribunal Federal", diz o documento.
A BBC News Brasil não conseguiu contactar o advogado Martin de Luca.