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Declarações de Biden e Kamala revelam chapa mais crítica a governo brasileiro na história dos EUA

Ao formar a cabeça de chapa presidencial democrata com a senadora Kamala Harris, o democrata Joe Biden parece liderar a coalizão política mais frontalmente contrária a um presidente brasileiro na história das eleições dos Estados Unidos

PEDRO RIBEIRO/DA EDITORIA/COM BBC BRASIL 16/08/2020
Declarações de Biden e Kamala revelam chapa mais crítica a governo brasileiro na história dos EUA
Foto: Reuters

Ao formar a cabeça de chapa presidencial democrata com a senadora Kamala Harris, o democrata Joe Biden parece liderar a coalizão política mais frontalmente contrária a um presidente brasileiro na história das eleições dos Estados Unidos.

Isso porque tanto Biden quanto Kamala fizeram críticas abertas, repetidas e nominais a Jair Bolsonaro nos últimos meses, em um movimento considerado pelos especialistas como sem precedentes nas relações entre os dois países. "É a primeira vez na história das eleições americanas que vemos uma chapa presidencial, tanto com candidato à presidente quanto com o nomeado a vice, se colocar tão claramente contra um governo brasileiro. O fato de Biden e Kamala estarem confortáveis de apontar o dedo para Bolsonaro em suas críticas mostra que desejam dar a ele um caráter de caudilho latino americano, colocá-lo na posição de pária internacional", afirma o professor de relações internacionais da FAAP Carlos Gustavo Poggio, especialista em Estados Unidos. De acordo com Poggio, embora durante a gestão do presidente democrata Jimmy Carter, entre 1977 e 1981, Brasil e Estados Unidos tenham cortado relações militares na esteira da repreensão do governo americano a abusos cometidos pelo regime militar brasileiro, não há registros de que ainda durante a campanha, em 1976, o então candidato democrata Carter tenha investido contra o General Ernesto Geisel, o mandatário do Brasil à época.

Críticas em série

Agora, no entanto, tanto Biden quanto Kamala, que também foi pré-candidata presidencial pelos democratas até dezembro do ano passado, já expressaram seu descontentamento em relação ao brasileiro. "O presidente Bolsonaro precisa saber que se o Brasil falhar na sua tarefa de guardião da floresta Amazônica, o meu governo irá congregar o mundo para garantir que o meio ambiente esteja protegido", afirmou Joe Biden em uma em entrevista à revista americana Americas Quartely em março de 2020. Ainda naquele mesmo mês, em um debate de pré-candidatos democratas, ele reafirmou sua intenção de liderar uma resposta global contra a devastação da floresta brasileira. "Eu estaria agora organizando o hemisfério (ocidental) e o mundo para fornecer US$ 20 bilhões para a Amazônia, para o Brasil não queimar mais a Amazônia, para que pudessem manter as florestas", afirmou o democrata. O dinheiro seria parte de um pacote de quase US$ 2 trilhões que Biden estuda criar para combater o aquecimento global, uma de suas prioridades de gestão. Eleita para o Senado pela Califórnia, Kamala foi ainda mais explícita e direta em suas críticas a Jair Bolsonaro. Em agosto do ano passado, diante das informações a respeito do aumento das queimadas na Amazônia, as imagens da destruição na floresta tropical estamparam capas de publicações internacionais e geraram uma onda de críticas de líderes internacionais ao país. Na ocasião, Kamala se posicionou via Twitter: "O presidente Bolsonaro precisa responder por essa devastação", disse, em comentário sobre imagens de uma área de mata em chamas. Kamala afirmou que 20% do oxigênio do mundo viria da Amazônia e que a floresta é o lar de um milhão de indígenas. "Qualquer destruição afeta a nós todos". Kamala voltou à carga no dia seguinte, 24 de agosto: "Enquanto a Amazônia queima, o presidente tipo Trump do Brasil, que deixa madeireiros e mineradores destruírem a área, não está agindo. Trump não deve fechar acordo comercial com o Brasil até que Bolsonaro reverta sua políticas catastróficas e combata as queimadas. Precisamos da liderança americana para salvar o planeta". Quatro dias mais tarde, fustigou também a proximidade entre o mandatário brasileiro e o presidente americano Donald Trump, a quem ela enfrentará nas urnas, ao lado de Biden, no próximo dia 3 de novembro. Isso porque além de expressar apoio público ao brasileiro, Trump também atuou junto à cúpula do G-7, que se reunia naqueles mesmos dias, para impedir que recomendações ou críticas ao Brasil fossem incluídas na declaração final dos países mais poderosos do mundo, como queria o mais vocal dos críticos do governo brasileiro, o presidente francês Emmanuel Macron. "O presidente Bolsonaro tem ativamente encorajado incêndios na Amazônia e rejeitado auxílio do G7 para combatê-los. Trump garantiu seu apoio total a Bolsonaro. Em um momento em que o planeta depende da liderança americana, Trump tem falhado", disse Kamala.

Muito além do meio ambiente

Para especialistas na relação entre os dois países, embora tenham feito as críticas no contexto ambiental, a rejeição a Bolsonaro de Biden, Kamala e do partido democrata vai muito além da agenda verde. "É inédito que um governo que diz amar os Estados Unidos e que decidiu aprofundar essa relação em detrimento de outras, como a com países árabes ou com a Argentina, se veja agora diante da possibilidade de ser tratado com enorme má vontade pelo seu aliado preferencial. Isso mostra que o Brasil se aproximou de Trump, mas não criou pontes com os Estados Unidos, numa política externa bastante amadora", afirma Poggio. Desde que assumiu, Bolsonaro passou a tratar como prioridade a sinergia com o governo Trump. Os dois presidentes possuem agendas ideológicas próximas e estilos semelhantes de fazer política, com comunicação constante e direta com o eleitor via redes sociais. A proximidade com Trump, no entanto, e o posicionamento explícito em favor da reeleição do republicano em 2020 passou a ser cada vez mais encarada com crítica pelos democratas que, agora, surgem com cerca de 70% de chance de assumir a Casa Branca a partir do ano que vem, de acordo com o modelo de previsão do site Five Thirty Eight. No começo de junho, 24 deputados democratas da Comissão de Orçamento e Assuntos Tributários da Câmara enviaram uma carta ao representante comercial dos Estados Unidos, Robert Lighthizer, em que se diziam contrários ao estabelecimento de qualquer novo acordo comercial entre Brasil e Estados Unidos. "Nós nos opomos fortemente a buscar qualquer tipo de acordo comercial com o governo Bolsonaro no Brasil. O aprimoramento do relacionamento econômico entre os Estados Unidos e o Brasil, neste momento, iria minar os esforços dos defensores dos direitos humanos, trabalhistas e ambientais brasileiros para promover o Estado de Direito e proteger e preservar comunidades marginalizadas", diziam os democratas na carta. No fim do mês passado, em resposta a um tuíte do deputado federal Eduardo Bolsonaro, filho do presidente, que postou um vídeo de campanha de reeleição de Trump, o presidente da Comissão de Relações Internacionais da Câmara, deputado democrata Eliot Engel afirmou que a "família Bolsonaro deve ficar de fora das eleições americanas" e denunciou tentativa de interferência brasileira no processo político interno americano. Em entrevista à BBC News Brasil, Engel afirmou que "minha esperança é que um relacionamento Estados Unidos-Brasil com Joe Biden se concentre nas diversas áreas de interesse mútuo para as pessoas em ambos os países, incluindo a proteção do meio ambiente e os direitos humanos para todos".

'Se virar por aqui'

Embora já tenha se declarado um fã do presidente Trump e repita frequentemente seu apoio ao republicano, Bolsonaro admite a possibilidade de que ele possa perder as eleições. "Eu torço pelo republicano dada a liberdade que eu tenho, que o Trump me deu, de ligar pra ele em qualquer momento que porventura precisar ele está pronto para colaborar conosco", afirmou em meados de julho, para depois fazer a ressalva de que tentaria manter o estreitamento das relações comerciais mesmo diante de uma gestão Biden. "Se eles não quiserem, paciência, né? O Brasil vai ter que se virar por aqui". À Bloomberg, o atual chanceler brasileiro, Ernesto Araújo, um dos principais responsáveis pelo alinhamento brasileiro a Trump, disse há duas semanas que "tenho certeza de que, apesar de alguns ajustes, poderíamos manter uma agenda muito positiva sob um possível governo democrata". Reservadamente, no entanto, integrantes do Itamaraty comandado por Araújo admitem que o órgão deveria se aproximar de representantes do partido para melhorar o trânsito ainda antes das eleições. A embaixada brasileira em Washington tem pedido audiências com parlamentares democratas, mas os especialistas em relação internacional dizem que o movimento é feito com pouca consistência e baixo resultado, como se vê pelo teor das manifestações públicas das lideranças democratas. Até mesmo o ex-conselheiro de Trump para assuntos internacionais, John Bolton, afirmou em entrevista recente ao Estado de S. Paulo que o governo Bolsonaro deveria abrir "linhas de comunicação" com os democratas imediatamente. Biden já esteve no Brasil algumas vezes e, na qualidade de vice-presidente dos Estados Unidos, precisou aplainar com a então presidente brasileira Dilma Rousseff o terreno das relações bilaterais após o escândalo da espionagem do serviço secreto americano contra alvos do governo do Brasil e da Petrobras. Tido como diplomático e pragmático, ele está acostumado a lidar com interlocutores que lhe são pouco simpáticos. É improvável que o democrata tome medidas severas em relação ao Brasil tão logo assuma o comando, caso seja mesmo o vencedor da corrida eleitoral. Mas é certo que o retrospecto de Bolsonaro não ajudará a avançar as conversas entre os dois países e que os democratas esperarão por mudanças de posição do Executivo brasileiro para avançar agendas bilaterais. Estudiosos em relações internacionais dizem que o apoio americano ao ingresso do Brasil na OCDE ficará comprometido e que um acordo de livre comércio entre os dois países - como inicialmente queria Bolsonaro - é uma possibilidade remota. Como o Brasil não é uma prioridade na política externa americana, no entanto, esse problema sequer ocupa hoje a agenda do presidenciável, que ainda tem 80 dias pela frente até enfrentar seu adversário nas urnas. Caso vença, Biden já declarou que tão logo assuma pretende visitar um país da América Latina: o México.