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Mergulhados em incertezas, EUA encerram sua campanha mais incomum e hostil
Biden chega à véspera do grande dia com vantagem nas pesquisas sobre Trump, que agita o fantasma da fraude eleitoral
Ao redor, os edifícios puseram tapumes para proteger suas vidraças, e muitos condomínios contrataram seguranças privados. Os mais de 93 milhões de votos antecipados enviados por correio ou depositado nas seções eleitorais podem fazer a apuração demorar, e a espera pelos resultados de vários Estados-chaves, como Pensilvânia e Wisconsin, criariam um suspense de várias horas sobre o nome do vencedor. Além disso, Trump questionou a solidez do sistema postal e agitou o fantasma da fraude, o que eleva a tensão em um país já por si crispado. Os norte-americanos votam, além do mais, em meio a uma grave crise econômica que ninguém poderia prever há um ano, com mais de 230.000 mortos nas costas e sem um horizonte claro de volta à normalidade em nenhum lugar do mundo. Vão as urnas, em outras palavras, tremendo.
A campanha de 2016 foi desgarradora. Trump, um candidato de populismo desavergonhado, regou-a de insultos e teorias conspiratórias. Aqueles meses prévios eleição agitaram venenos como o da xenofobia e o racismo, demonstrando que a ferida racial, que muitos acharam estar curada com a eleição do primeiro presidente afro-americano, Barack Obama, continuava aberta. Já a de 2020 não parece ser tão desgarradora, porque o país já se acostumou aos quatro anos ininterruptos de enfrentamento político e social. As palavras grosseiras que tanto desconcertaram quatro anos atrás viraram norma, e ninguém tem muita certeza da possibilidade de recuperar tantos códigos rompidos, ganhe ou perca Trump a reeleição.
As últimas pesquisas, publicadas neste domingo, continuam apontando Joe Biden como claro vencedor. A do The New York Times/Sienna College lhe dá a maior vantagem atribuída a um candidato presidencial desde 2008, quando Obama foi eleito. O ex-vice-presidente democrata ganharia em Estados-chaves, como Wisconsin e Pensilvânia, com uma vantagem de 11 e 6 pontos, respectivamente, e levaria também Arizona (6 pontos) e Flórida (3). No levantamento do The Washington Post-ABC, entretanto, Trump fica com o importante troféu da Flórida, com dois pontos percentuais de diferença. A do The Wall Street Journal-NBC News, com amostra nacional, dá o democrata como vencedor: 52% x 42%.
À medida que o dia da eleição se aproximava, o presidente republicano veio reduzindo a distância nesses Estados-pêndulos, os decisivos no sistema de Colégio Eleitoral dos EUA, uma tendência que recorda a de 2016, quando Hillary Clinton perdeu a eleição apesar de ter conseguido quase três milhões de votos a mais em âmbito nacional e de ter liderado as pesquisas durante quase toda a campanha. As lembranças daquela bofetada estão bem presentes este ano nas fileiras democratas, muito atentas ao percentual de participação das minorias. Mas o apoio que Clinton angariava na época ficava abaixo de 50%, sinal do escasso entusiasmo que os dois candidatos despertavam, enquanto desta vez o Partido Democrata parece decidido a cerrar fileiras.
Os adversários de Biden durante as primárias (Elizabeth Warren, Amy Klobuchar, Pete Buttigieg e Julián Castro) participaram de comícios com a intenção de levar a chapa Biden/ Kamala Harris à Casa Branca. Também vozes progressistas, como a da jovem deputada Alexandria Ocasio Cortez, muito influente junto às novas gerações, e o veterano senador socialista Bernie Sanders, outro candidato derrotado nas primárias, pediram voto para Biden. Após um mandato presidencial tão revulsivo como o de Trump, o sentimento do eleitorado democrata parece mais coeso que em 2016, mas é difícil encontrar previsões categóricas sobre o que acontecerá na terça-feira.
Os norte-americanos decidem nesta terça-feira sobre algo além de um programa econômico, um plano de resposta à crise da covid-19 ou uma política ambiental. Escolhem tudo isso e também uma maneira de se definirem como país e se apresentarem ao mundo. Trump praticamente não alterou seu discurso de 2016, esse que apela ao orgulho nacionalista branco e desdenha da cooperação internacional. Resta ver qual fatura a errática gestão da pandemia lhe passará. Frente a ele, o democrata Biden promete uma espécie de retorno da ortodoxia política de Washington, internacionalista e que busca inclusive seduzir o republicano moderado.