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As imigrantes grávidas que temem que seus filhos fiquem em limbo nos EUA
Este tipo de angústia normalmente não é esperado de uma mulher grávida de quatro meses
"Eu deveria estar pensando na saúde do meu bebê, se ele estará crescendo bem, mas aqui estamos, meu marido e eu, preocupados se ele terá ou não cidadania quando nascer."
Este tipo de angústia normalmente não é esperado de uma mulher grávida de quatro meses. E Meny* (nome fictício) também não se preocupava com isso até a semana passada.
Desde o dia 20 de janeiro, quando o presidente americano Donald Trump assinou – no seu primeiro dia de governo – uma ordem executiva determinando que nem todos os bebês nascidos nos Estados Unidos sejam considerados cidadãos americanos, ela não consegue pensar em outra coisa, mesmo se tratando de um direito consagrado pela Constituição do país há 160 anos.
"Meu filho ainda nem veio ao mundo e já tem seus direitos violados", declarou à BBC News Mundo (o serviço em espanhol da BBC) a cidadã hondurenha que mora no Estado americano da Califórnia desde 2021 e solicita asilo nos Estados Unidos.
"Some-se a isso a incerteza de milhões de nós, imigrantes, que não sabemos como nossos casos serão resolvidos", lamenta ela, depois de deixar Maximiliano, seu outro filho de oito anos, no ônibus escolar. "Temos muito medo do que poderá acontecer."
Na Constituição há 160 anos
Trump alertava há tempos que, quando chegasse à Casa Branca, uma das suas medidas para restringir a migração no país seria eliminar o direito de cidadania por nascimento.
Por isso, muito poucos se surpreenderam quando, já no seu primeiro dia de mandato, ele assinou uma decisão presidencial intitulada "Protegendo o significado e o valor da cidadania norte-americana".
A ordem executiva determina que as agências federais não emitam documentos reconhecendo a cidadania americana a crianças nascidas de mães que estejam no país "ilegalmente" ou com status legal temporário, como vistos de trabalho ou estudo, a menos que o pai seja cidadão americano ou tenha visto de residência permanente (o chamado green card).
Trata-se de uma tentativa de reinterpretar a 14ª Emenda à Constituição americana. Basicamente, ela estabelece que toda pessoa nascida ou naturalizada no país é cidadã dos Estados Unidos.
A emenda foi aprovada em 1868, após a Guerra Civil Americana e a abolição da escravatura. Seu objetivo era garantir a cidadania das antigas pessoas escravizadas nascidas no país.
Com ela, foi anulada uma sentença anterior da Suprema Corte, que estabelecia que os afro-americanos nunca poderiam ser cidadãos dos Estados Unidos.
Mas os partidários da linha-dura na gestão da imigração defendem hoje que esta política é um "grande ímã para a imigração ilegal" e incentiva as mulheres grávidas sem documentos a cruzar a fronteira para dar à luz, o que recebeu o nome pejorativo de "turismo de nascimento", ou ter um "bebê-âncora".
Eles defendem que existe base legal para a restrição, porque os filhos de imigrantes sem documentos nascidos no país não estão sujeitos à jurisdição americana. Por isso, eles não teriam direito à cidadania automática. E a ordem executiva menciona o mesmo argumento.
Segundo o think tank (centro de pesquisa e debates) americano Pew Research Center, nasceram nos Estados Unidos 250 mil filhos de imigrantes não autorizados a residir no país em 2016. Este número representa 36% a mais que o recorde anterior, registrado em 2007.
Os dados mais recentes indicam que, em 2022, havia 1,2 milhão de cidadãos americanos, filhos de pais imigrantes sem residência legal.
Mas, como estas crianças também terão filhos quando crescerem, o efeito cumulativo da restrição da cidadania por nascimento aumentaria o número de imigrantes não autorizados no país para 4,7 milhões de pessoas até 2050, segundo o Instituto de Política Migratória.
Paralelamente, a maioria dos juristas defende que Trump não pode pôr fim à cidadania por direito de nascimento com uma ordem executiva.
A decisão só poderia ser tomada por outra emenda constitucional, segundo os especialistas. Ela exigiria dois terços dos votos da Câmara dos Representantes e a aprovação de 75% dos Estados americanos. Por isso, não tardou a surgir uma avalanche de pedidos de impugnação da medida pelo país.
A União Americana para Liberdades Civis (ACLU, na sigla em inglês) e outros grupos, além de 22 Estados americanos, imediatamente apresentaram ações judiciais contra o governo Trump, para bloquear a ordem executiva.
Três dias depois, um juiz federal de Seattle, no Estado americano de Washington, suspendeu temporariamente sua aplicação, que deveria começar 30 dias após a assinatura, em 20 de janeiro. Ele a qualificou de "descaradamente inconstitucional" e Trump já declarou que irá recorrer da decisão.
Muitas dúvidas
Saber que a decisão do presidente está sendo questionada na Justiça, de certa forma, é motivo de conforto para Meny. Seu caso está incluído em uma das ações judiciais.
"Isso nos dá esperança, pois o ser humano sobrevive disso", ela conta, "da esperança de poder ter um futuro melhor, poder ficar bem, que sua família esteja bem, de ter segurança. Tenho fé que o presidente não irá conseguir isso que está fazendo agora."
A organização chamada Projeto de Defesa dos Solicitantes de Asilo (ASAP, na sigla em inglês), à qual Meny pertence, e a CASA – outra entidade dedicada aos imigrantes – deram entrada na ação na terça-feira (21/1). A ASAP tem como membros mais de 650 mil solicitantes de asilo e a CASA mantém representação em 46 dos 50 Estados americanos.
A ação também inclui cinco requerentes individuais, todas elas grávidas e moradoras dos Estados Unidos. Elas receiam que, após a decisão presidencial e devido à situação migratória delas ou dos seus parceiros, seus filhos tenham a cidadania americana negada.
"Queremos que a ordem executiva seja declarada ilegal e inconstitucional, como ela, de fato, é", declarou à BBC a advogada Leidy Pérez, diretora de políticas e comunicação da ASAP.
As organizações têm audiência marcada para 5 de fevereiro, em um tribunal distrital do Estado americano de Maryland. Os advogados irão pedir à juíza uma resolução suspendendo a decisão "indefinidamente, não por 14 dias".
Segundo Pérez, a ordem executiva traz pouca clareza e deixa muitas dúvidas no ar.
Se um bebê nascido nos Estados Unidos, filho de pais imigrantes, tiver sua cidadania negada, qual será sua nacionalidade? E seu status legal?
Seria preciso pedir uma autorização de residência temporária? Iniciar um processo de asilo? O bebê estaria sujeito à deportação?
"Estas são exatamente as perguntas que estamos fazendo à Justiça, para forçar o governo a nos dizer o que irá acontecer, por exemplo, com as crianças que tiverem a cidadania negada e cujos pais sejam solicitantes de asilo", explica Pérez.
"Porque, durante este procedimento, elas não podem sair dos Estados Unidos, sem falar que muitos migrantes deixaram seus países por estarem sendo perseguidos."
Estresse e ansiedade
Este é o caso de Meny e sua família. Ela saiu de Honduras em 2019 com o marido e seu filho Maximiliano, então com apenas dois anos de idade.
A família se estabeleceu no território mexicano e deu início a um pequeno negócio no Estado do México, na região central do país.
"Mas fomos vítimas de discriminação", ela conta. "Fomos ameaçados e bateram no meu esposo e no meu cunhado."
Eles se mudaram para outro Estado e, como os abusos prosseguiam, decidiram migrar novamente. A família cruzou a fronteira para os Estados Unidos em março de 2021.
Atualmente, eles aguardam que o Serviço de Cidadania e Imigração (USCIS, na sigla em inglês) os convoque para uma entrevista sobre seu pedido de asilo afirmativo. Este procedimento consiste no pedido de proteção "contra perseguição ou temor justificado de perseguição" no país de origem.
Mas esta reunião pode levar anos para ser marcada, segundo a advogada Pérez.
A família de Meny tem visto de trabalho e números de seguro social americano. Ela e o marido se dedicam à educação e assistência a pessoas com deficiências mentais, físicas ou emocionais, enquanto aguardam o andamento do processo.
"Quando chegamos, tivemos a sorte de sermos contratados neste tipo de emprego e sempre procuramos oportunidades na mesma área", conta ela. "Porque meu filho tem condição de autismo e sei como é difícil cuidar e oferecer a paciência e o amor de que eles precisam."
Meny também tem consciência de que não teria em Honduras a mesma atenção e as oportunidades de desenvolvimento oferecidas a Maximiliano por ser criado na Califórnia. Ela vive com "muito estresse e ansiedade" ante a possibilidade de que seu segundo filho não tenha a mesma sorte.
Frente a todas as incertezas, ela tem um ponto muito claro em mente: "Voltar para Honduras não é uma opção. Nem para o México."
Apátridas?
Trinidad García espera ter seu bebê em agosto. Sua situação é ainda mais complexa.
Ela chegou aos Estados Unidos com seu marido em 2017, vindo da Venezuela com visto de turista.
García havia se formado em administração de empresas e ele trabalhava no seu país como engenheiro ambiental. Agora, ela faz limpeza de casas no Estado americano da Carolina do Norte e ele faz restaurações.
Da mesma forma que a família de Meny, eles esperam a reunião para a entrevista com o USCIS, como parte do processo de asilo. E sentem o mesmo receio de que, se o seu bebê tiver a cidadania americana negada, ele fique sem nacionalidade.
"Como conseguir a cidadania venezuelana para meu filho, se não existem consulados da Venezuela nos Estados Unidos?", pergunta Pérez. O caso de García também foi incluído na ação judicial.
"Eles não podem ir para a Venezuela porque o bebê não teria passaporte para sair do país e, se eles saírem, perderão o caso de asilo", explica a advogada. "Com isso, se ele nascer sem poder ser cidadão americano, ele basicamente nasce sem pátria, apátrida."
"Esta é outra questão que estamos apresentando à Justiça, para que o governo nos diga como isso é legal – como eles podem criar uma ordem executiva que deixaria tantas crianças apátridas."
Niurka também é membro da ASAP. Ela e seu marido são cubanos residentes no Estado americano da Flórida. Sua preocupação é que seu bebê, esperado para nascer em março, fique neste mesmo limbo.
Ela é médica de formação e ele é biofarmacêutico, agora empregado na indústria alimentícia. O casal tem uma solicitação de asilo pendente e outro pedido sem solução, de residência permanente, com base na Lei de Ajuste Cubano.
Outras dúvidas levantadas pelas organizações sobre a ordem executiva de Trump são decorrentes dos termos utilizados, como "presença ilegal" ou temporária.
"As pessoas que têm status de proteção temporária [TPS, na sigla em inglês, que permite residir e trabalhar legalmente nos Estados Unidos] ou enquadradas no DACA [Ação Deferida para Chegadas Infantis, na sigla em inglês] estão aqui temporariamente?", questiona a advogada da ASAP.
Meio milhão de pessoas se beneficiaram da política migratória DACA, encerrada em 2023. Elas são conhecidas como dreamers (sonhadores), imigrantes que entraram sem documentos nos Estados Unidos quando eram menores de idade e receberam proteção temporária pelo programa para residir e trabalhar no país.
"As pessoas que têm DACA moram aqui há mais de 15 anos", explica Pérez.
Maribel é membro da CASA e faz parte da ação. Ela está para completar 18 anos no país. Salvadorenha nascida na Guatemala, ela e seu marido não têm autorização de residência.
Grávida de três meses, Maribel vive com ansiedade, receando que seu bebê não venha a ter os mesmos direitos e oportunidades das suas duas outras filhas, de 14 e 10 anos de idade, que são cidadãs americanas por nascimento.
Ela chega a temer que o bebê venha a ser objeto de deportação, o que inevitavelmente separaria a família.
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"Não quero separar famílias", declarou Trump sobre o tema, durante uma entrevista gravada para a rede de TV americana NBC News, em dezembro. "Por isso, a única forma de conseguir é mantê-las juntas e enviar todos de volta [para o seu país de origem]."
Mas alterar o status quo da cidadania por nascimento teria consequências consideráveis, imediatas e de longo prazo, para inúmeras crianças.
Se eles permanecerem sem documentos, poderão não ter acesso a certos benefícios referentes à saúde e educação. E, no futuro, poderão ter negada sua carteira de motorista, sua eventual matrícula em universidades públicas poderia ser reduzida por serem residentes, eles não poderão se alistar no exército e assim por diante.
A 14ª Emenda à Constituição americana não é questionada na Justiça há mais de um século.
A última vez em que isso ocorreu foi em 1898, no caso Estados Unidos vs. Wong Kim Ark. A Suprema Corte decidiu na ocasião que filhos de imigrantes chineses nascidos no país são cidadãos americanos, ainda que a Lei de Exclusão Chinesa determinasse que seus pais não tinham direito à cidadania.
Atualmente, os especialistas preveem que haverá muitas idas e vindas na Justiça.
O governo Donald Trump já afirmou que está pronto para enfrentar diferentes grupos e Estados nos tribunais. Ele qualificou as ações de "extensão da resistência da esquerda".
"Os esquerdistas radicais podem decidir nadar contra a corrente e rejeitar a vontade avassaladora do povo, ou podem se somar e trabalhar com o presidente Trump", declarou a este respeito o subsecretário de imprensa da Casa Branca, Harrison Fields.
Eles não são os únicos prontos para a batalha. As demandantes também estão.
"Como mamãe, devo lutar pelos direitos do meu filho e fazer até o impossível para que ele possa ter um futuro melhor, como já fiz por Maximiliano", declarou Meny à BBC News Mundo.
"Lutaremos pelo tempo que for necessário."