Mundo

'Soubemos pelo Facebook que vizinhos haviam sido assassinados': sírios relatam terror após série de ataques contra civis

Os incidentes estão sendo considerados os mais violentos no país desde a queda de Assad, que foi deposto em dezembro passado

PEDRO RIBEIRO/DA EDITORIA/COM BBC 09/03/2025
'Soubemos pelo Facebook que vizinhos haviam sido assassinados': sírios relatam terror após série de ataques contra civis
Funerais foram realizados para as centenas de mortos | REUTERS

presidente interino da Síria, Ahmed Sharaa, pediu unidade nacional neste domingo (09/03), enquanto a violência e os assassinatos por vingança continuam em áreas leais ao ex-líder deposto Bashar al-Assad.

Os incidentes estão sendo considerados os mais violentos no país desde a queda de Assad, que foi deposto em dezembro passado.

O Observatório Sírio para os Direitos Humanos (SOHR, na sigla em inglês) com sede no Reino Unido, e que monitora o conflito no país contabiliza 745 civis mortos nas cidades costeiras de Latakia, Jableh e Banias.

Outros 300 membros das forças de segurança e remanescentes do regime de Assad teriam morrido em confrontos.

A BBC, no entanto, não conseguiu verificar de forma independente o número de mortos.

Centenas de pessoas teriam fugido de suas casas nas províncias costeiras de Latakia e Tartus — redutos de apoio a Assad.

Moradores descreveram cenas de saques e assassinatos em massa, inclusive de crianças.

Em Hai Al Kusour, um bairro majoritariamente alauíta na cidade costeira de Banias, moradores dizem que as ruas estão repletas de corpos espalhados, empilhados e cobertos de sangue.

Os alauítas, uma ramificação do islamismo xiita, representam cerca de 10% da população da Síria, que é majoritariamente muçulmana sunita. Assad pertence aos aluítas.

Homens de diferentes idades foram mortos a tiros no local, segundo testemunhas.

As pessoas estavam com tanto medo que nem sequer olhavam pela janela na sexta-feira (07/03).

A conexão com a internet no local está instável, mas quando os moradores conseguiam se conectar, descobriam sobre a morte de vizinhos por meio de postagens no Facebook.

Ayman Fares contou à BBC que só escapou da matança porque, quando esteve preso em 2023, havia postado um vídeo em sua conta no Facebook contra Assad.

Segundo Fares, os combatentes que invadiram as ruas de Hai Al Kusour o reconheceram como crítico do antigo governo e, por isso, ele teria sido poupado da morte, mas não dos saques. Levaram seus carros e continuaram a invadir outras casas.

"Eram estranhos, não consigo identificar sua origem ou idioma, mas pareciam uzbeques ou chechenos", disse Fares por telefone.

"Havia também alguns sírios com eles, mas não eram das forças oficiais de segurança. Alguns civis também estavam entre os que cometeram os assassinatos", acrescentou.

Fares afirmou ter visto famílias sendo mortas dentro de suas casas, e mulheres e crianças cobertas de sangue. Algumas famílias tentaram se esconder nos telhados, mas não escaparam do massacre. "É horrível", disse ele.

Fares afirmou que a situação se estabilizou quando o Exército sírio e as forças de segurança chegaram à cidade de Banias. Eles expulsaram outras facções da cidade e abriram corredores para que as famílias tivessem acesso a áreas seguras, segundo ele.

Ali, outro morador de Banias que pediu para não ter seu sobrenome divulgado, corroborou o relato de Fares. Ele morava em Kusour com a esposa e a filha de 14 anos, e fugiu de casa com a ajuda das forças de segurança.

"Eles chegaram ao nosso prédio. Estávamos aterrorizados só de ouvir os tiros e os gritos das pessoas na vizinhança. Ficávamos sabendo das mortes por postagens esporádicas no Facebook, quando conseguíamos nos conectar. Mas quando chegaram ao nosso prédio, achamos que era o fim", contou.

"Eles estavam atrás de dinheiro. Bateram na porta do nosso vizinho e levaram seu carro, dinheiro e todo o ouro ou objetos de valor que ele tinha em casa. Mas ele não foi morto."

Terreno gramado e três explosões no céu vindas de uma arma. Um homem está se afastando dele, enquanto outro homem - no canto inferior esquerdo - está observando

Crédito,Getty Images

Legenda da foto,No início desta semana, ocorreram combates entre as forças de segurança sírias e os partidários de Assad na região costeira do país

Ali e sua família foram acolhidos por vizinhos sunitas, que seguem um ramo diferente do islamismo, e agora estão hospedados com eles.

"Vivemos juntos por anos, alauítas, sunitas e cristãos. Nunca passamos por algo assim", disse ele.

"Os sunitas correram para proteger os alauítas do massacre, e agora as forças oficiais estão na cidade para restaurar a ordem."

Ali contou que as famílias foram levadas para uma escola em um bairro predominantemente sunita, onde estarão protegidas até que os membros das facções responsáveis pelos assassinatos sejam expulsos de Banias.

A violência começou na quinta-feira (09/03), quando grupos leais a Assad — que se recusaram a entregar as armas — emboscaram forças de segurança nas cidades costeiras de Latakia e Jableh, matando dezenas de agentes.

Ghiath Dallah, ex-general de brigada do exército de Assad, anunciou uma nova rebelião contra o atual governo, afirmando que estava fundando o "Conselho Militar para a Libertação da Síria".

Alguns relatos sugerem que ex-agentes de segurança do regime de Assad, que se recusaram a entregar as armas, estão formando um grupo de resistência nas montanhas.

Fares afirmou que a maioria da comunidade alauíta rejeita o grupo e culpa Dallah e outros leais radicais a Assad pela violência.

"Eles se beneficiam do derramamento de sangue que está ocorrendo. O que precisamos agora é que a segurança oficial prevaleça e que os assassinos das facções que cometeram os massacres sejam processados, para que o país volte a ter segurança", disse.

Mas outros também culpam o presidente interino Ahmad al-Sharaa, dizendo que ele desmontou os sistemas de segurança, Exército e polícia da Síria sem uma estratégia clara para lidar com milhares de oficiais e agentes que ficaram desempregados.

Alguns desses indivíduos, especialmente entre a polícia, não tiveram envolvimento com os crimes cometidos durante o regime de Assad. As novas autoridades também demitiram milhares de funcionários públicos de seus cargos.

Com 90% da população da Síria vivendo abaixo da linha da pobreza e milhares sem fonte de renda, o país é terreno fértil para uma rebelião.

Há uma divisão de opiniões na Síria sobre o que está acontecendo. A comunidade em geral condena o assassinato de civis, e manifestações foram organizadas em Damasco para lamentar as mortes e condenar a violência.

Mas, nos últimos dois dias, também houve apelos por "jihad" em diferentes partes da Síria. Moradores de Banias disseram que, junto com as facções, havia alguns civis armados que se juntaram aos massacres.

Veículo blindado com seis soldados em pé na parte de trás

Crédito,Getty Images

Legenda da foto,O exército sírio enviou reforços após a violência para estabilizar a região

Os sunitas, maioria na Síria, sofreram atrocidades nas mãos das forças do regime de Assad ao longo dos últimos 13 anos. Isso alimentou o ódio sectário, principalmente contra a minoria alauíta, da qual muitos membros estão associados a crimes de guerra.

Segundo grupos de direitos humanos, há evidências de que agentes de segurança alauítas estiveram envolvidos na tortura e morte de milhares de sírios — a maioria sunitas — durante o regime Assad.

Os membros das forças armadas e de segurança mortos recentemente são, em sua maioria, da comunidade sunita, e agora há quem, entre os sunitas, esteja clamando por retaliação. Mas o presidente pediu calma.

Sharaa, cujas forças islamistas derrubaram Assad há três meses, agora precisa equilibrar a garantia de segurança para todos com a busca por justiça pelos crimes cometidos pelo regime de Assad e seus aliados.

Embora ele tenha autoridade sobre parte das tropas que o ajudaram a chegar ao poder, algumas facções claramente estão fora de seu controle. Essas facções incluem também combatentes estrangeiros com uma agenda islamista radical.

Para conduzir a Síria rumo a um futuro seguro e democrático, muitos defendem que Sharaa precisa acabar com a presença de combatentes estrangeiros e apresentar uma Constituição que proteja os direitos de todos os sírios, independentemente de sua origem ou religião.

Embora seja visto como alguém que está trabalhando no arcabouço legal para tal Constituição, controlar as facções violentas e expulsar os combatentes estrangeiros será um dos maiores desafios.