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Por que Trump decidiu focar guerra tarifária na China - e o que pode acontecer agora
Trump disse que o aumento se deve à prontidão de Pequim em retaliar impondo sua própria taxa de 84% sobre os produtos americanos, uma medida que o presidente americano descreveu como "falta de respeito"

De repente, a guerra comercial do presidente americano, Donald Trump, está com um foco mais definido.
Em vez de lutar em todas as frentes contra o mundo, está caminhando mais para um embate em uma arena conhecida de Trump: Estados Unidos x China.
A pausa de 90 dias nas tarifas "retaliatórias" mais altas cobradas de dezenas de países ainda deixa em vigor uma tarifa universal de 10%.
Mas a China — que exporta de tudo, de iPhones a brinquedos, e responde por cerca de 14% de todas as importações dos EUA — foi alvo de um tratamento muito mais severo, com uma taxa astronômica de 145%.
Trump disse que o aumento se deve à prontidão de Pequim em retaliar impondo sua própria taxa de 84% sobre os produtos americanos, uma medida que o presidente americano descreveu como "falta de respeito".
No entanto, para um político que chegou à Casa Branca com base em um discurso anti-China, isso tudo vai muito além de uma simples retaliação.
Para Trump, trata-se de um assunto pendente do primeiro mandato.
"Não tivemos tempo de fazer a coisa certa, o que estamos fazendo agora", disse ele a jornalistas.
O objetivo é nada menos do que derrubar um sistema estabelecido de comércio global centrado na China como a "fábrica do mundo", assim como a visão outrora amplamente difundida que o sustentava — a ideia de que mais desse comércio era, por si só, uma coisa boa.

Crédito,Reuters
Para entender o quanto isso é fundamental para o pensamento do presidente dos EUA, é preciso voltar ao tempo em que ninguém pensava nele como um possível candidato ao cargo, muito menos como um provável vencedor.
Em 2012, quando fiz minha primeira reportagem em Xangai, a capital empresarial da China, o aumento do comércio com o país asiático era visto por quase todo mundo —líderes empresariais globais, autoridades chinesas, governos estrangeiros e delegações comerciais convidadas, correspondentes estrangeiros e economistas experientes — como algo óbvio.
A China estava impulsionando o crescimento global, fornecendo um suprimento infinito de produtos baratos, aprimorando o exército chinês de novos trabalhadores de fábrica cada vez mais inseridos nas cadeias de suprimentos globais, e proporcionando oportunidades lucrativas para as empresas multinacionais que vendiam seus produtos para a recém-formada classe média.
Poucos anos após minha chegada, a China havia ultrapassado os EUA e se tornado o maior mercado do mundo para a Rolls Royce, General Motors e Volkswagen.
Havia também uma justificativa mais profunda.
À medida que a China ficava mais rica, segundo a teoria, o povo chinês começaria a exigir reformas políticas.
Seus hábitos de consumo também ajudariam a China a fazer a transição para uma sociedade de consumo.
Mas o primeiro desses anseios nunca aconteceu, e o Partido Comunista da China apenas fortaleceu sua permanência no poder.
E o segundo não aconteceu rápido o suficiente — a China não apenas ainda é dependente das exportações, como planeja abertamente se tornar cada vez mais dominante.
Seu conhecido plano estratégico — publicado em 2015, e intitulado Made in China 2025 — estabeleceu uma visão ambiciosa apoiada pelo Estado de se tornar líder global em vários setores importantes da manufatura, desde a indústria aeroespacial até a de construção naval e veículos elétricos.
E foi assim que, apenas um ano depois, um completo desconhecido na política começou a concorrer à presidência dos EUA, argumentando repetidamente na campanha que a ascensão da China havia esvaziado a economia americana, impulsionado o declínio do chamado "cinturão da ferrugem" e custado aos operários americanos seus meios de subsistência e dignidade.
A guerra comercial do primeiro mandato de Trump rompeu com os padrões estabelecidos e quebrou o consenso. Seu sucessor, o ex-presidente Joe Biden, manteve grande parte de suas tarifas sobre a China.
E, no entanto, embora tenham causado, sem dúvida, algum sofrimento ao país asiático, elas não fizeram muito para mudar o modelo econômico.
Atualmente, a China produz 60% dos carros elétricos do mundo — uma grande parte deles fabricados por suas próprias marcas nacionais —, e 80% das baterias que os abastecem.
E, agora, Trump está de volta, com essa escalada retaliatória de tarifas.
Este poderia ser o maior choque já sofrido pelo sistema de comércio global estabelecido, se não fosse por todo vaivém de medidas tarifárias que o presidente dos EUA implementou nos últimos dias.

Crédito,Reuters
O que vai acontecer em seguida depende de duas questões fundamentais.
Em primeiro lugar, saber se a China vai aceitar essa oferta para negociar.
E, em segundo lugar, supondo que isso aconteça, se a China está disposta a fazer as concessões importantes que os EUA estão buscando, incluindo uma revisão completa de seu modelo econômico voltado para a exportação.
Ao responder a essas questões, a primeira coisa a dizer é que estamos em um território completamente desconhecido, portanto, devemos desconfiar de qualquer pessoa que diga que sabe como Pequim provavelmente vai reagir.
Mas certamente há razões para ser cauteloso.
A visão da China sobre sua força econômica — baseada em um considerável volume de exportações e em um mercado interno fortemente protegido — está agora intimamente ligada à sua ideia de rejuvenescimento nacional e à supremacia de seu sistema de partido único.
Seu controle rígido sobre a esfera da informação significa que é improvável que o país diminua suas barreiras às empresas americanas de tecnologia, por exemplo.
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Os EUA ainda acreditam no livre comércio? Donald Trump frequentemente sugere que as tarifas são uma coisa boa, não apenas como um meio para alcançar um fim, mas como um fim por si só.
Ele fala sobre o benefício de uma barreira protecionista para os EUA, a fim de estimular o investimento interno, incentivar as empresas americanas a trazerem essas cadeias de suprimentos estrangeiras de volta para o país, e aumentar a receita tributária.
E se Pequim acreditar que esse é, de fato, o objetivo principal das tarifas, pode decidir que não há nada a ser negociado.
Em vez de defender a ideia de cooperação econômica, as duas maiores superpotências do mundo podem se ver presas em uma luta pela supremacia econômica do tipo "o vencedor leva tudo".
Se for este o caso, vai sinalizar uma quebra do antigo consenso, e um futuro muito diferente — e possivelmente muito perigoso.