Polícia

“Bebida e arma dá nisso”: fala de advogado escancara desprezo pela vida de adolescente morta em Mato Grosso

A fala do advogado conseguiu ultrapassar todos os limites do aceitável

PEDRO RIBEIRO/DA EDITORIA/COM PC-MT 05/05/2025
“Bebida e arma dá nisso”: fala de advogado escancara desprezo pela vida de adolescente morta em Mato Grosso
A tentativa da defesa de pintar o crime como um “acidente” causado por uma “combinação infeliz” entre álcool e armas | Divulgação

A sociedade brasileira já está cansada de ver a vida de mulheres — sobretudo meninas — sendo tratada com descaso, insensibilidade e impunidade.

Mas a fala do advogado de Bruno Felisberto Tomiello, médico de 29 anos acusado de matar com um tiro na nuca a adolescente Ketlhyn Vitória de Souza, de apenas 15 anos, conseguiu ultrapassar todos os limites do aceitável.

“Bebida e arma dá nessas coisas”, disse o advogado, referindo-se à morte brutal da jovem como se estivesse comentando um pequeno acidente doméstico — um copo quebrado, um tropeço, um deslize. Mas o que ocorreu foi a execução de uma adolescente dentro de um carro, com um tiro certeiro na cabeça, disparado por um homem adulto, com quem mantinha uma relação que, pela legislação brasileira, já se configura como estupro de vulnerável ou, no mínimo, uma relação ilícita e abusiva.

A banalização do crime: da tragédia ao deboche

A tentativa da defesa de pintar o crime como um “acidente” causado por uma “combinação infeliz” entre álcool e armas não é apenas uma distorção grotesca dos fatos: é uma violência simbólica contra a vítima e contra todas as mulheres que vivem sob o risco da misoginia e do machismo institucionalizados.

Ao colocar a arma e a bebida no centro da narrativa, o advogado apaga deliberadamente o autor do disparo, seu cliente — um homem adulto, médico, armado, que aparece em vídeo, pouco antes da tragédia, dançando com uma pistola em punho, enquanto dirige o carro em que Ketlhyn estava. O mesmo carro onde, minutos depois, a jovem foi baleada.

Narrativa covarde: da paixão à impunidade

Como se não bastasse a frieza ao tratar do assassinato, o advogado ainda tentou emocionar a opinião pública com frases patéticas: “Ele amava essa jovem, queria casar com ela”. Como se amor fosse desculpa para homicídio. Como se o amor de um homem de 29 anos por uma menina de 15 anos — que sequer terminou o ensino médio — não fosse, na verdade, mais um retrato da cultura de dominação que transforma adolescentes em presas fáceis para predadores travestidos de namorados.

Se esse “amor” existia, ele se manifestou com um tiro na nuca. Com a fuga do médico após o crime. Com a destruição de portas e janelas no hospital onde ela morreu. Com o silêncio conveniente de uma rede de proteção que possivelmente facilitou sua fuga — já que há suspeitas de que o hospital envolvido seja gerido por parentes do suspeito.

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Não foi acidente. Foi feminicídio. E talvez estupro de vulnerável.

É preciso repetir isso quantas vezes for necessário. Porque enquanto o discurso da defesa tenta suavizar a barbárie, o laudo pericial fala mais alto: o tiro foi dado de trás para frente, da direita para a esquerda — uma trajetória incompatível com suicídio ou disparo acidental.

E mais: mesmo que a relação entre os dois tenha começado depois dos 14 anos (o que ainda está sob investigação), não há como ignorar o desequilíbrio, a manipulação e o poder de um homem adulto, rico, armado, diante de uma adolescente em situação de vulnerabilidade afetiva, social e emocional.

Chega de naturalizar crimes contra meninas

A frase do advogado não é só infeliz — é criminosa no seu efeito social. É a velha tentativa de transformar feminicídio em fatalidade. De transformar abuso em romance. De transformar assassino em apaixonado.

Mas a sociedade está mudando. E Ketlhyn Vitória não será esquecida.