Política
O caso de condenado pelo 8 de Janeiro que virou símbolo da campanha bolsonarista por anistia
O projeto de lei da oposição prevê anistiar "todos os que participaram de manifestações com motivação política e/ou eleitoral, ou as apoiaram, por quaisquer meios

O caminhoneiro Ezequiel Ferreira Luís, preso em flagrante dentro do Palácio do Planalto em 8 de janeiro de 2023, se tornou símbolo da campanha da oposição por anistia, principal mote de um ato realizado pelo ex-presidente Jair Bolsonaro no domingo (16/3), no Rio de Janeiro.
Naquela tarde, centenas de bolsonaristas insatisfeitos com a eleição do presidente Luiz Inácio Lula da Silva invadiram as sedes dos Três Poderes.
Sua defesa alega que não há provas mostrando que Ferreira Luís teria agido de forma violenta. Diz também que ele estava na cidade a trabalho e compareceu aos atos por curiosidade, quando acabou dentro do Palácio para se proteger das balas de borracha e do gás lacrimogênio usados pela polícia para conter os vândalos.
A versão não convenceu a maioria do Supremo Tribunal Federal (STF), que o condenou a 14 anos de prisão por crimes como tentativa de abolição do Estado Democrático de Direito e golpe de Estado. Para lideranças bolsonaristas, no entanto, o caso é um exemplo de condenação sem provas nos processos do 8 de janeiro.
Bolsonaro chegou a visitar em setembro passado sua família — a esposa Vanessa Vieira e seis filhos — em Ji-Paraná (Rondônia), cidade onde residia o caminhoneiro até sumir após sua condenação, tornando-se foragido da Justiça.
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"Supremo Tribunal Federal, pelo amor de Deus, vocês não têm coração? Não é por mim, não. Esqueça a mim. Eu sei o que alguns querem fazer comigo aí, não sei se vão conseguir. Agora, perseguir essas crianças?", questionou o ex-presidente, depois denunciado pela PGR por liderar a suposta trama golpista, o que ele nega.
A primeira Turma do Supremo começa a julgar em 25 de março se abre um processo contra ele e mais sete acusados de integrar o núcleo crucial da organização criminosa, incluindo os ex-ministros e generais Braga Netto e Augusto Heleno.
Já em fevereiro deste ano, Vanessa Vieira esteve na Câmara dos Deputados, acompanhando dos filhos, momento em que rogou pela "misericórdia" de Hugo Motta (Republicanos-PB), presidente da Casa, que já chegou a criticar o STF publicamente por excessos nas condenações do 8 de janeiro.
É ele que tem o poder de colocar em votação uma proposta de lei anistia.
O projeto de lei da oposição prevê anistiar "todos os que participaram de manifestações com motivação política e/ou eleitoral, ou as apoiaram, por quaisquer meios, inclusive contribuições, doações, apoio logístico ou prestação de serviços e publicações em mídias sociais e plataformas, entre o dia 08 de janeiro de 2023 e o dia de entrada em vigor desta Lei".
O texto prevê ainda perdoar "todos que participaram de eventos subsequentes ou eventos anteriores aos fatos acontecidos em 08 de janeiro de 2023, desde que mantenham correlação com os eventos acima citados", trecho que poderia beneficiar Bolsonaro, já que a PGR o acusa de um suposto plano golpista que teria culminado na invasão aos Três Poderes.
No momento, a oposição busca reunir apoio da maioria dos deputados, e, segundo o líder do PL na Câmara, deputado Sóstenes Cavalcante (RJ), já estaria se aproximando dos votos necessários para aprovação (ao menos 257 dos 513 deputados).
Caso de fato consigam aprovar a anistia na Câmara, a proposta ainda seria analisada no Senado e, se virar lei, tende a ser questionada judicialmente no STF.
Para o professor de Direito da Universidade de São Paulo (USP) Rafael Mafei, é claro o interesse de Bolsonaro em se beneficiar com uma eventual lei da anistia.
Ele nota que as altas penas impostas pelo STF aos condenados pelos atos de 8 de janeiro - as maiores chegam a 17 anos - indicam que o ex-presidente receberá uma pena ainda maior, caso seja julgado como líder da trama golpista, como acusa a PGR.
"Assumindo que ele seja condenado por todos aqueles crimes pelos quais ele foi denunciado, a gente começa falando de algo na casa dos 30 anos [de pena de prisão] pra cima", ressalta.
O próprio Bolsonaro reconheceu o risco de receber uma pena elevada durante o ato de domingo, no Rio da Janeiro.
"O que eles querem? É uma condenação. Se é 17 anos de prisão para as pessoas humildes, é para justificar 28 anos para mim", disse sobre um caminhão de som, na praia de Copacabana.
Segundo balanço divulgado em janeiro pelo STF, já houve 1659 denúncias relacionadas ao 8 de janeiro, que resultaram, até o momento, em 371 condenações (penas de 1 a 17 anos) e 5 absolvições.
Ainda há 485 investigações em andamento, enquanto 34 foram arquivadas por ausência de justa causa, quando um caso é encerrado por falta de evidências suficientes para uma denúncia.
A anistia a pessoas envolvidas na invasão das sedes dos Três Poderes foi um dos principais temas das falas da manifestação liderada por Bolsonaro em Copacabana, no Rio de Janeiro, no domingo (16/3).
No discurso a apoiadores, o ex-presidente disse que há votos suficientes para aprovar o texto do projeto de anistia que atualmente tramita no Congresso Nacional e emendou que, se o presidente Lula vetar, "nós derrubaremos o veto".
Ele abriu sua fala dizendo que este era "um dos dias mais difíceis" de sua vida.
"Porque vamos falar aqui sobre a vida de inocentes, de pessoas que estão sendo injustiçadas", completou, antes de iniciar uma defesa de seus apoiadores.

Crédito,Reprodução Facebook
Ezequiel Ferreira Luís: golpista ou condenado sem provas?
Acusado pela PGR de integrar uma turba que buscava, de forma violenta, derrubar o governo e colocar Bolsonaro de volta ao comando do país, Ferreira Luís foi condenado em março de 2023 a 14 anos de prisão, por cinco crimes: tentativa de abolição do Estado Democrático de Direito, golpe de Estado, dano qualificado, associação criminosa e deterioração de patrimônio público.
Assim que saiu sua condenação, rompeu sua tornozeleira eletrônica e fugiu e segue foragido até o momento.
O caminhoneiro afirma ser inocente e diz que saiu de Ji-Paraná, em Rondônia, para a Brasília, no dia 6 de janeiro para devolver um carro alugado por um amigo, que o contratou para esse serviço por R$ 800.
Afirma também que chegou no dia 8 à capital federal na parte da tarde e foi à Esplanada acompanhar a manifestação por curiosidade. Segundo sua defesa, entrou no Palácio do Planalto para se proteger da confusão e acabou sendo detido no local com outras pessoas.
"Ao chegarem no saguão do prédio, foram recepcionados por soldados do Exército que os informaram que os tirariam de lá em segurança. Foi quando ficaram aguardando junto a eles até que a tropa de choque adentrou o prédio jogando bombas de gás, agredindo as pessoas e proferindo palavrões", disse ainda a advogada Fernanda Rodrigues, à BBC News Brasil.
"Por fim, deram voz de prisão e algemaram todos os que estavam ali, os encaminharam para um ônibus e os levaram para a delegacia", acrescentou.
Relator do caso, Alexandre de Moraes considerou a justificativa para sua ida à Brasília e a presença no Palácio do Planalto durante a manifestação bolsonarista inverossímil e o julgou culpado, sendo acompanhado pela maioria da Corte.
"Não é crível a versão de que teria entrado no Palácio do Planalto para se proteger. Ora, é evidente, diante de todas as circunstâncias já narradas no presente voto, que o cenário era extremamente hostil, sendo público e notório que, para chegar ao local onde foi preso, o réu invadiu, de forma consciente, locais de acesso vedado ao público, não somente em razão dos gradis existentes, mas pela própria situação dos prédios públicos, com os vidros quebrados, todos vandalizados", escreveu em seu voto.
"Assim, a dinâmica dos acontecimentos narrada nesse tópico evidencia ser absolutamente improvável não saber o que estava ocorrendo, o que afasta qualquer credibilidade de sua versão de que, enquanto se apresentava um cenário de guerra, o acusado tenha ido à Esplanada dos Ministérios sem saber o que ocorria, e lá tenha permanecido até ser obrigado a se proteger justamente no interior do Palácio do Planalto", continuou.
O ministro disse que havia "robusto conjunto probatório" contra o réu e aceitou a argumentação da PGR de que Ferreira Luís invadiu o Palácio e participou de um crime multitudinário, ou seja, cometido em grupo por uma multidão, não sendo necessário individualizar sua atuação.
"Nesse sentido, torna-se irrelevante discriminar qual ou quais bens o denunciado danificou, ou mesmo especificar como o denunciado confrontou as forças de segurança pública", diz a alegações finais da acusação.
"Isso porque, pelo que se verifica dos elementos probatórios coligidos, os crimes, praticados em contexto de multidão, somente puderam se consumar com a soma das condutas e comunhão dos esforços de todos que, unidos pelo vínculo psicológico - propósito comum ou compartilhado -, contribuíram efetivamente para a realização dos resultados pretendidos", continuou a PGR.

Crédito,Reuters
A condenação a 14 anos de prisão imposta por Moraes foi acompanhada integralmente pela maioria do Supremo, enquanto os ministros Cristiano Zanin, Edson Fachin e Luís Roberto Barroso votaram pela condenação, mas sugeriram penas menores.
Já os ministros Nunes Marques e André Mendonça julgaram Ferreira Luís inocente, por falta de acusações individualizadas contra o caminhoneiro.
Nunes Marques, ministro revisor do caso, argumentou em seu voto que a investigação da Polícia Federal não apontou imagens da atuação de Ferreira Luís dentro do Planalto, nem identificou material genético ou impressões digitais do caminhoneiro no local.
O ministro citou ainda que "não há informação acerca da apreensão de telefone celular do réu, tampouco da realização de exame pericial no aparelho, a fim de que fossem identificados arquivos de fotos e vídeos aptos a demonstrar sua participação nos crimes imputados".
Ele também citou depoimentos de policiais que atuaram na contenção dos manifestantes e afirmaram que nem todos atuavam com vandalismo.
"A utilização de uma fórmula geral para imputar a todos os denunciados presos na tarde de 8 de janeiro a responsabilidade integral por todos os atos de vandalismo não é adequada, nem justa, e não pode dispensar a verificação das filmagens dos ambientes dos prédios e a identificação do que cada réu fez, ou o apontamento, por testemunhas", afirmou Marques.
"Mesmo que se considere a perspectiva de delitos multitudinários pretendida pela acusação, nos parece que não se pode responsabilizar aqueles indivíduos em relação aos quais não há provas de que tenham tomado parte em qualquer ato de vandalismo diretamente, especialmente em um contexto, como já afirmado neste voto, no qual há testemunhos afirmando que havia manifestantes com extintores tentando apagar focos de incêndio e outros que se opunham às depredações", acrescentou.
Até essa condenação, Ferreira Luís tinha a ficha criminal limpa. De acordo com reportagem do UOL, ele possuía duas armas em seu nome: uma pistola e um rifle semiautomático.
Procurado pela BBC News Brasil, a advogada de Ezequiel disse que ele "possuía armas devidamente registradas para a prática de Tiro Desportivo".
"Em total conformidade com a lei, essas armas não estavam em sua posse no dia de sua prisão, tendo sido transferidas conforme determinação do Judiciário. Ele cumpriu rigorosamente todas as medidas [preventivas] impostas", disse ainda.
Defensoria questiona condenações
O defensor público federal Gustavo Ribeiro, que atua na defesa de réus do 8 de Janeiro, diz que há diversos casos semelhantes ao de Ferreira Luís, em que pessoas foram condenadas sem qualquer individualização de suas condutas.
Para ele, é um erro generalizar que todos os presentes na manifestação seriam igualmente responsáveis, até porque houve casos de pessoas absolvidas, como ambulantes e pessoas em situação de rua que acabaram se misturando à multidão.
"Há casos de pessoas condenadas em que não se provou absolutamente nada", afirma.
Ribeiro entende que há uma pressão para punir os responsáveis por atos graves contra a democracia, mas diz que a falta de individualização está condenando inocentes.
"Se forem cinco em cem condenados, já são cinco inocentes [punidos indevidamente]. No direito penal, a dúvida favorece o réu, e a acusação deve ter um mínimo de provar contra a pessoa", argumenta.

Crédito,Carlos Moura/STF
Professor da USP defende atuação do STF
Ressaltando não conhecer os detalhes do caso de Ferreira Luís, o professor da USP Rafael Mafei questionou a necessidade de a PGR individualizar as condutas dos denunciados pelo 8 de janeiro.
"A individualização é necessária na medida em que é condição para que a pessoa consiga se defender", argumentou.
"Então, se a acusação diz que essa pessoa participou de uma invasão violenta do Congresso Nacional ou do Palácio do Planalto, que tinha por objetivo produzir determinados efeitos que fazem com que seja um crime, essa pessoa precisa dizer que ela não participou ou que ela participou, mas com outra intenção que não aquela óbvia que levou aquele ato [a invasão] a ser praticado", continuou.
Na sua visão, a atuação do STF tem sido "muito importante".
"Seria muito trágico que esse ato não fosse exemplarmente punido. E acho muito importante também que a punição não se limite a essas pessoas [presas no 8 de janeiro], que foram instrumentalizadas para esse propósito de gerar um benefício político para o Bolsonaro, para o Braga Netto, ajudar a viabilizar uma intervenção militar ilegítima", ressalta.
Ele diz, porém, concordar com questionamentos sobre as penas impostas aos condenados, sobretudo quanto à condenação simultânea pelos crimes de golpe de Estado e de tentativa de abolição violenta do Estado Democrático.
Na visão de alguns juristas, é possível entender que ambos são crimes subsidiários, ou seja, que caso ambos sejam cometidos, o mais grave (golpe de Estado), "absorveria" o menos grave (abolição do Estado democrático de direito) — então, a pessoa seria condenada apenas pelo primeiro.
No caso de Ferreira Luís, isso diminuiria sua pena em quatro anos e seis meses.
Mafei chama ainda atenção para a forte campanha do bolsonarismo pelos direitos dos acusados no caso do 8 de janeiro, em contraste com o tradicional discurso desse campo contra os direitos humanos.
Na sua visão, a postura não chega a ser contraditória, já que esse grupo não tem uma visão universal dessas garantias.
"Eles enxergam direitos como uma espécie de uma prerrogativa jurídica que é merecida de uma maneira que não é universal. Tem um bordão repetido há muito tempo, antes do bolsonarismo ser forte, que é o do 'direitos humanos para os humanos direitos'", nota o professor.
"Então, acho que na cabeça deles não há nenhuma perplexidade em se indignarem quando algum direito deles é violado e não acharem nenhum problema quando aquele aparente mesmo direito é violado em desfavor do outro, porque ele não considera que o outro tem esse direito", reforça.