Cotidiano
Após 6 anos de omissão, Justiça obriga Funai a cumprir expedição no território Tapayuna em MT
Sentença reconhece negligência histórica do Estado e impõe multa de R$ 40 mil à autarquia; indígenas foram removidos à força em 1970 e parte pode ter permanecido isolada no Rio Arinos

A Justiça Federal determinou que a Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) cumpra, no prazo máximo de 60 dias, uma expedição no território tradicional reivindicado pelo povo Tapayuna (ou Kajkwakratxi), na região do Rio Arinos, no norte de Mato Grosso. A sentença atende a um pedido do Ministério Público Federal (MPF) e encerra mais de seis anos de descumprimento de decisão liminar anterior, proferida ainda em 2019.
A expedição tem como objetivo a coleta de evidências sobre a presença de indígenas isolados ou remanescentes da comunidade que foi forçadamente removida em 1970 para o Parque Indígena do Xingu, sob o argumento de “proteção”. No entanto, a remoção ocorreu após décadas de violência estatal, epidemias e envenenamentos, segundo apurado pelo MPF.
Na sentença, proferida no dia 24 de setembro, o juiz reconheceu a omissão grave e reiterada da Funai, que ignorou sucessivos alertas e manifestações do MPF. A autarquia sequer deu início aos procedimentos técnicos para formação de grupo de trabalho e coleta de subsídios.
Inicialmente, o descumprimento da liminar havia sido penalizado com multa diária de R$ 2 mil, valor que foi elevado para R$ 5 mil por dia em 2020, diante da persistência da omissão. Agora, com a sentença final, a Justiça impôs multa única de R$ 40 mil, devida após o trânsito em julgado da decisão.
Apesar da remoção forçada de 1970 — considerada uma das mais violentas da história indígena no país — há indícios documentados de que parte dos Tapayuna jamais deixou sua terra de origem, permanecendo nas matas da região do Rio Arinos, entre os municípios de Juara, Porto dos Gaúchos e Brasnorte.
Expedições técnicas anteriores, promovidas por indigenistas independentes e órgãos parceiros, registraram vestígios, trilhas, estruturas rústicas e utensílios, sugerindo a presença de indígenas em isolamento voluntário.
O MPF sustenta que, caso sejam localizados grupos isolados ou descendentes que tenham permanecido no território, a Funai deverá estabelecer uma área de restrição de uso, com proteção efetiva e fiscalização ambiental.
O processo resgata um trágico histórico de violência contra os Tapayuna, que viveram sucessivas investidas desde a década de 1950: surtos epidêmicos não controlados, distribuição de alimentos contaminados, contaminação de rios e terras com veneno, e avanço descontrolado de garimpeiros e fazendeiros.
A remoção compulsória promovida pela Funai em 1970 para o Xingu, segundo o MPF, representou uma política genocida disfarçada de proteção institucional. À época, menos de 50 indígenas sobreviveram ao contato com a sociedade não indígena.
Atualmente, os Tapayuna vivem majoritariamente em aldeias localizadas dentro do Parque do Xingu, mas reivindicam a reparação territorial histórica — inclusive com demarcação definitiva da área original no Rio Arinos, processo que tramita em ação paralela ainda pendente de julgamento.
A reportagem procurou a Funai para comentar a decisão e a atual situação do processo, mas até o fechamento desta edição não obteve resposta.
A Ação Civil Pública nº 1000040-85.2019.4.01.3604, que tramitou na Subseção Judiciária de Juína, poderá ser um marco na reversão de décadas de invisibilização dos Tapayuna — um povo que sobreviveu ao extermínio e agora, pela primeira vez em meio século, poderá ver reconhecida sua história e seu direito ao território ancestral.
“Não se trata apenas de reparar o passado, mas de garantir o futuro. O Estado brasileiro precisa deixar de ser agente do apagamento e se tornar promotor da justiça para os povos indígenas”, afirmou um procurador do caso, sob condição de anonimato.