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Por que histórica decisão da Alemanha de aumentar gasto militar revela guinada na Europa
O Parlamento alemão aprovou na terça-feira (18) um projeto de lei que isenta os gastos militares das rígidas regras de dívida nacional do país

Trata-se de uma medida que pode ajudar a transformar a maneira como a Alemanha e a Europa concebem sua defesa há décadas.
O Parlamento alemão aprovou na terça-feira (18) um projeto de lei que isenta os gastos militares das rígidas regras de dívida nacional do país.
Uma maioria de dois terços dos parlamentares — 513 votos a favor e 207 contra — votou para permitir que os gastos com defesa não estejam mais sujeitos ao chamado "freio da dívida", uma norma constitucional que limita rigorosamente o endividamento do governo federal a apenas 0,35% do Produto Interno Bruto (PIB).
A expectativa é de que a nova regra, que vai permitir destinar bilhões de dólares para as Forças Armadas da Alemanha e para um fundo de defesa pan-europeu, seja aprovada nesta sexta-feira (21/03) pelo Conselho Federal, um órgão no qual estão representados os 16 Estados federados da Alemanha.
Embora o "freio da dívida" tenha sido introduzido em 2009, no contexto da crise econômica global, os gastos militares alemães caíram drasticamente após o fim da Guerra Fria, passando de 2,53% do PIB em 1989 (ano da queda do Muro de Berlim) para 1,32% em 2021.
Mas o país já havia dado uma guinada cultural e política há décadas, se distanciando do militarismo que o caracterizou no período que antecedeu as duas guerras mundiais.
Neste momento, no entanto, o país sente a necessidade de fortalecer suas capacidades de defesa.
Friedrich Merz, o líder conservador que promoveu esta mudança e que deve se tornar o próximo chanceler da Alemanha, disse em um discurso na terça-feira que seu país havia sentido "uma falsa sensação de segurança" na última década.
"A decisão que estamos tomando hoje.... não pode ser nada menos do que o primeiro grande passo em direção a uma nova comunidade de defesa europeia", ele afirmou, acrescentando que vai incluir países que "não são membros da União Europeia".
O estímulo para a defesa europeia

Crédito,Reuters
Por trás desta guinada histórica na Alemanha, estão dois fatores: a invasão russa da Ucrânia e o retorno de Donald Trump à presidência dos EUA.
Em uma entrevista no domingo, Merz abordou especificamente os temores de que os EUA abandonem seu compromisso histórico de ajudar a defender seus aliados europeus, assim como as conversas entre Trump e o presidente russo, Vladimir Putin.
O líder alemão disse ainda que a situação havia piorado nas últimas semanas. "É por isso que temos que agir rapidamente", destacou.
Já durante seu primeiro governo (2017-2021), Donald Trump lançou dúvidas sobre seu apoio à Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) — e, neste ano, logo após voltar à Casa Branca, os sinais que seu governo deu não foram muito favoráveis.
"A Europa ainda está digerindo o choque dos anúncios do governo Trump. Na Conferência de Segurança de Munique, no mês passado, observei como os delegados escutavam de boca aberta o ataque virulento do vice-presidente dos EUA, J.D. Vance, às políticas europeias de migração e liberdade de expressão", diz o jornalista Frank Gardner, correspondente de segurança da BBC.
"Isso foi precedido dias antes pela declaração do secretário de Defesa dos EUA, Pete Hegseth, que disse aos membros da Otan que o guarda-chuva defensivo de 80 anos dos EUA para a Europa não deveria mais ser dado como certo."
"Os estrategistas de defesa europeus já estão planejando o impensável: uma Rússia semivitoriosa que avança na Ucrânia, para depois reconstruir seu Exército e ameaçar os membros orientais da Otan, como os países bálticos, dentro de três anos ou menos", acrescenta.
Após a invasão da Ucrânia pela Rússia em 2022, muitos países europeus começaram a aumentar seus orçamentos de defesa.
No caso da Alemanha, os gastos com defesa subiram 23,2% no ano passado, ajudando a impulsionar um aumento recorde de 11,7% nos gastos europeus com defesa.
Mas estes aumentos não são suficientes para preencher o vácuo que os EUA deixariam se decidissem, por exemplo, retirar o apoio à Ucrânia.
O que a Europa precisa para se defender

Crédito,Getty Images
De acordo com o Instituto Kiel, que monitora de perto os dados de defesa, a Europa destina apenas 0,1% de sua riqueza para a defesa da Ucrânia, enquanto os Estados Unidos destinam 0,15%.
"Isso significa que se a Europa quiser compensar o déficit, precisa dobrar sua contribuição para 0,21%", explica Giuseppe Irto, pesquisador do Instituto de Kiel.
Mas não se trata apenas de dinheiro.
Muitas das armas mais cobiçadas do arsenal da Ucrânia vêm dos Estados Unidos, como o sistema de defesa aérea Patriot e os sistemas de artilharia de longo alcance Himars. O Instituto Kiel estima que 86% da artilharia de foguetes da Ucrânia são provenientes dos EUA, e que 82% de sua munição de obuses também é de origem americana.
Soma-se a isso as informações de inteligência que os EUA fornecem a Kiev — grande parte derivada de satélites e imagens geoespaciais. Se Washington desativar permanentemente este sistema, as forças ucranianas correm o risco de ficar parcialmente no escuro.
Excluindo o arsenal nuclear americano, há uma enorme disparidade entre as mais de 5 mil ogivas da Rússia e o total combinado de armas nucleares do Reino Unido e da França, que é menos de um décimo deste número. Mas, em teoria, ainda é suficiente para atuar como força de dissuasão nuclear.
Quando se trata de armas convencionais, os chefes de defesa ocidentais costumam afirmar que as forças combinadas da Otan são superiores às da Rússia.
"Pode ser que seja, mas se há uma lição clara a ser tirada da guerra na Ucrânia, é que a 'massa' é importante. O Exército russo pode ser de baixa qualidade, mas Putin conseguiu enviar um número tão grande de soldados, drones, projéteis e mísseis para a linha de frente ucraniana, que os russos estão avançando inexoravelmente, embora lentamente e a um custo enorme", observa Gardner.

Crédito,Getty Images
"Isso não deveria ser nenhuma surpresa. Moscou colocou sua economia em pé de guerra há muito tempo. Nomeou um economista como ministro da Defesa e reequipou muitas de suas fábricas para produzir grandes quantidades de munições, especialmente drones suicidas. Enquanto muitos países europeus têm relutado em aumentar os gastos com defesa acima dos 2% do PIB exigidos pela Otan, a Rússia está perto de 7%. Cerca de 40% do orçamento nacional da Rússia é gasto em defesa", acrescenta o correspondente da BBC.
Daí a importância da decisão de terça-feira em Berlim para a Alemanha e a Europa.
"Esta votação no Bundestag (o Parlamento alemão) é absolutamente crucial", diz à BBC Monika Schnitzer, presidente do Conselho de Especialistas Econômicos da Alemanha.
"Após a Conferência de Segurança de Munique, e o bate-boca entre Trump e [o presidente ucraniano Volodymyr] Zelensky, a Europa recebeu um alerta. Pela primeira vez, os europeus talvez não possam confiar em Washington. Muita gente passou noites em claro depois disso."
Fenella McGerty, pesquisadora da área de economia de defesa do Instituto Internacional de Estudos Estratégicos, com sede em Londres, concorda: "A perspectiva para os gastos com defesa na Europa depende do desempenho da Alemanha, que detém o maior orçamento de defesa da região."
A presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, está promovendo a iniciativa ReArm Europe, que visa mobilizar até US$ 868 bilhões (800 bilhões de euros) para financiar investimentos na área de defesa.
E a eliminação destas restrições constitucionais ao endividamento na Alemanha poderia, em teoria, liberar bilhões de euros para gastos com defesa, tanto para as Forças Armadas alemãs quanto para um fundo pan-europeu de defesa.
Graças a esta medida, qualquer gasto com defesa acima de 1% do PIB alemão não estará mais sujeito a um limite de empréstimo.