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Ação contra Harvard fere imagem do próprio governo Trump, diz pesquisador brasileiro que atuou na universidade

A medida foi suspensa por uma liminar (decisão temporária) da Justiça americana nesta sexta-feira,23

PEDRO RIBEIRO/DA EDITORIA/COM BBC 24/05/2025
Ação contra Harvard fere imagem do próprio governo Trump, diz pesquisador brasileiro que atuou na universidade
A decisão do presidente Donald Trump de proibir matrículas de estrangeiros na Universidade de Harvard fere a imagem dos Estados Unidos | REUTERS

A decisão do presidente Donald Trump de proibir matrículas de estrangeiros na Universidade de Harvard fere a imagem dos Estados Unidos e de seu próprio governo, afirma o cientista político Hussein Kalout, que atuou como pesquisador da instituição entre 2013 e 2024.

A medida foi suspensa por uma liminar (decisão temporária) da Justiça americana nesta sexta-feira (23).

"Eu acho que é uma medida que, cedo ou tarde, terá de ser revista, porque isso gera um prejuízo enorme para a imagem dos Estados Unidos, um prejuízo enorme para a universidade e um prejuízo também para o governo Trump", disse Kalout à BBC News Brasil horas antes da decisão da juíza federal Allison Burroughs bloqueando temporariamente a determinação de Trump.

"Eu creio que a Justiça americana será muito ponderada para tratar a matéria com o esmero e o cuidado que isso merece. A tendência é que algumas decisões tomadas pelo governo (contra Harvard) sejam revogadas", afirmou ainda.

Esse é mais um capítulo que intensifica a disputa entre a Casa Branca e uma das instituições de ensino e pesquisa mais prestigiadas dos Estados Unidos. Na ação judicial movida na cidade de Boston, a universidade classificou as ações do governo como uma "violação flagrante" da lei.

O governo Trump afirma que Harvard não fez o suficiente para combater o antissemitismo e mudar práticas de contratação e admissão — alegações que a universidade nega com veemência.

Foi nesse contexto que o Departamento de Segurança Interna (DHS) revogou na quinta-feira (22/05) o acesso de Harvard ao Programa de Estudantes e Visitantes de Intercâmbio (SEVP) – um banco de dados do governo que gerencia estudantes estrangeiros.

Há cerca de 6.800 estudantes internacionais em Harvard, representando mais de 27% das matrículas deste ano.

Para Hussein Kalout, a disputa judicial é "o único recurso de Harvard" diante da opção de Trump de "antagonizar" com a tradicional universidade.

"Minha leitura é que simplesmente interessa ao governo Trump, digamos, ter [em Harvard] um ponto de antagonização. Isso serve muito bem à sua base eleitoral".

"A universidade, desde o início do governo, tem sido aberta ao diálogo. E, quando há medidas impositivas que ela entende que ferem alguns direitos, ela tem acionado a Justiça. É o recurso que cabe", continuou.

Em seu segundo mandato, Trump tem pressionado as universidades americanas a se alinharem à sua agenda política, usando medidas como o corte de verbas para pesquisa científica como retaliação às que, na visão do governo, não têm colaborado. Harvard é a universidade que mais tem resistido às ações da Casa Branca.

O cientista político contesta as acusações de Trump sobre antissemitismo na universidade.

"São acusações que não encontram amparo na realidade, porque a universidade é muito cuidadosa, tem um código de conduta muito rígido. Ali não há espaço para descriminação."

"Se, porventura, isso aconteceu, de forma individual, a punição não pode ser coletiva. Isso não é uma política da universidade, nem do corpo docente, nem dos pesquisadores, nem dos alunos".

Segundo Kalout, a decisão de Trump, agora suspensa pela Justiça, trouxe enorme insegurança jurídica e deixou milhares de alunos estrangeiros da instituição "em compasso de incerteza".

"Imagina, por exemplo, alunos que já estão na metade do curso. Vai expulsar o estudante? Ele tem que ir para outra universidade? Se tem bolsa em Harvard, ele vai ter bolsa [em outra universidade]?", questiona.

"Então, na verdade, mexe estruturalmente com a vida de muitas pessoas, a maioria jovens, que estão no início de sua vida".

Fachada de prédio da Universidade de Harvard

Crédito,Reuters

Legenda da foto,Harvard classificou a decisão do governo Trump como 'ilegal'

Entenda o caso

Na quinta-feira (22/5), o governo de Donald Trump anunciou medidas para impedir que Harvard matricule estudantes estrangeiros.

A secretária de Segurança Interna, Kristi Noem, escreveu na rede social X que o governo revogou a "certificação do Programa de Estudantes e Visitantes de Intercâmbio devido a falhas [de Harvard] em cumprir a lei".

"Que isso sirva de aviso a todas as universidades e instituições acadêmicas do país", acrescentou ela.

Quase 7 mil estudantes estrangeiros estavam matriculados na universidade no último ano letivo, segundo dados da própria instituição — o que representa 27,2% do corpo discente.

Em um primeiro comunicado, Harvard classificou a decisão do governo como "ilegal".

"Estamos totalmente comprometidos em manter a capacidade de Harvard de receber nossos estudantes e acadêmicos internacionais, que vêm de mais de 140 países e enriquecem a universidade — e esta nação — imensamente", afirmou a instituição na quinta-feira (22/5).

"Estamos trabalhando agilmente para dar orientação e apoio aos membros da nossa comunidade. Esta retaliação [de Trump] ameaça causar sérios danos à comunidade de Harvard e ao nosso país, além de minar a missão acadêmica e de pesquisa de Harvard."

A Casa Branca vinha exigindo que a universidade implementasse mudanças nas práticas de contratação, admissão e ensino para combater o antissemitismo no campus.

O governo Trump também ameaçou revogar a isenção fiscal da universidade e congelar bilhões de dólares em subsídios governamentais.

Harvard afirmou anteriormente que já tomou diversas medidas para combater o antissemitismo e que as exigências visam controlar as "condições intelectuais" da universidade.

Mulher em pé acenando com a mão; atrás, Trump em palanque

Crédito,Reuters

Legenda da foto,Medida contra Harvard foi anunciada por Kristi Noem, secretária de Segurança Interna do governo Trump

Em abril, Noem ameaçou revogar o acesso da universidade a programas de visto para estudantes caso a instituição não atendesse a uma ampla solicitação por acesso a registros administrativos de seus estudantes internacionais.

Em um documento desta quinta-feira, Noem afirmou que Harvard deve cumprir uma lista de exigências para ter a "oportunidade" de recuperar a possibilidade de matricular estudantes estrangeiros.

As exigências incluem o acesso a registros disciplinares de estudantes americanos matriculados em Harvard nos últimos cinco anos.

Noem também exigiu que Harvard entregasse registros, vídeos e áudios de atividades "ilegais" e "perigosas ou violentas" no campus, incluindo com a participação de estudantes americanos.

A notificação deu a Harvard 72 horas para atender à solicitação do Departamento de Segurança Interna.

O governo Trump vem tentando restringir drasticamente os vistos para estudantes estrangeiros, causando caos e confusão nos campi universitários dos EUA e levando a uma onda de processos judiciais.

Em alguns casos, essas revogações pareceram afetar estudantes estrangeiros que já participaram de protestos políticos ou que tiveram infrações de trânsito e antecedentes criminais.

Harvard conseguiu resistir à ofensiva de Trump, em parte, por conta de seu patrimônio: esta é a universidade mais rica do país e do mundo.

Ela tem um patrimônio (ativos próprios que investe para financiar suas atividades) de US$ 53 bilhões (R$ 308 bilhões), mais que o Produto Interno Bruto (PIB) de 120 países, incluindo Islândia, Bolívia, Honduras e Paraguai.

Esse patrimônio é composto por doações milionárias, mensalidades altas, investimentos bem-sucedidos, isenções fiscais e verbas públicas.