Política

O que é o projeto de anistia, origem da nova ofensiva de bolsonaristas no Congresso

A estratégia dos bolsonaristas é de testar o poder do ex-presidente nas mobilizações nas ruas, enquanto pressionam para o projeto ser colocado na pauta da Câmara dos Deputados

PEDRO RIBEIRO/DA EDITORIA/COM BBC 07/04/2025
O que é o projeto de anistia, origem da nova ofensiva de bolsonaristas no Congresso
Perdão a envolvidos nos atos de 8 de janeiro, a anistia poderia beneficiar também Bolsonaro | Isaac Fontana/EPA

O projeto que prevê a anista - ou o perdão - a pessoas envolvidas na invasão das sedes dos Três Poderes, em Brasília, no dia 8 de janeiro de 2023 foi a pauta de mais uma manifestação convocada pelo ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) em São Paulo no domingo (6/4).

A estratégia dos bolsonaristas é de testar o poder do ex-presidente nas mobilizações nas ruas, enquanto pressionam para o projeto ser colocado na pauta da Câmara dos Deputados.

Por isso, durante o ato, o presidente da Câmara, Hugo Motta (Republicanos-PB), foi pressionado, sendo chamado de "vergonha da Paraíba" pelo pastor e aliado de Bolsonaro, Silas Malafaia.

Dos Estados Unidos, o deputado federal licenciado Eduardo Bolsonaro (PL-SP) disse, na sexta-feira, que Motta age como "esquerdista do PSOL", em entrevista à rádio Auriverde Brasil.

"Ele tem falado basicamente igual a um esquerdista do PSOL, falando que é contra anistia, [pela] democracia e aquelas coisas todas que estamos acostumados a ouvir da boca de Lula e de outros puxadinhos do PT."

Diante das pressões, Motta afirmou que o projeto de lei da anistia não é a "pauta única" do Brasil e do Congresso, enquanto ponderou que é preciso avançar nas discussões sobre supostos exageros nas penas aplicadas pelo Supremo Tribunal Federal (STF).

"Defendo dois pontos. Primeiro, a sensibilidade para corrigir algum exagero que vem acontecendo com relação a quem não merece receber uma punição. Acho que essa sensibilidade é necessária, toca a todos nós", afirmou Motta a jornalistas em um evento em São Paulo nesta segunda-feira (7/4).

"E a responsabilidade de poder, na solução desse problema, que é sensível e é justo, nós não aumentarmos uma crise institucional que nós estamos vivendo."

Em fevereiro, o presidente da Câmara disse, em entrevista à Globo News, que não admitiria "qualquer flerte com a ditadura", e lembrou que quem decide a pauta das votações é o Colégio de Líderes, composto por todos os líderes partidários.

"Vamos tratar tudo de forma muito tranquila e de maneira muito serena. Nosso trabalho será a busca de uma pacificação nacional, de harmonia, para que os Poderes constituídos tenhamos uma pauta de convergência nacional. É isso que o Brasil espera de nós."

Analistas apontam que, ao colocar o projeto da anistia em votação, Motta compraria uma briga com o Supremo Tribunal Federal (STF), que acabou de aceitar a denúncia contra Bolsonaro, tornando-o réu, junto a outras sete pessoas, por envolvimento em uma suposta trama golpista.

Diante do impasse com Hugo Motta, os aliados de Bolsonaro correm para tentar reunir as assinaturas necessárias para o projeto ser votado com urgência, o que pularia as etapas de discussões nas comissões e levaria a votação direto ao plenário.

O líder do PL na Câmara, deputado Sóstenes Cavalcante (PL-RJ), afirmou que vai conseguir as 257 assinaturas necessárias para o requerimento de urgência e ameaçou expor que ainda não havia assinado, por meio da publicação dos nomes daqueles que aderiram ao projeto.

A promessa de Cavalcante era de publicar a lista na manhã desta segunda-feira, algo que, até o fechamento desta reportagem, ainda não havia ocorrido.

Até o momento, a base bolsonarista na Câmara afirma ter conseguido cerca de 180 assinaturas. Por isso, os deputados correm também por outra via, tentando obstruir a pauta para forçar a votação do projeto.

O recurso é utilizado pelos parlamentares para impedir o prosseguimento dos trabalhos e para ganhar tempo, por meio de pronunciamentos, pedidos de adiamento da discussão e da votação e ausência no plenário para evitar quórum para as votações.

Na semana passada, a obstrução do PL foi suspensa para os parlamentares votarem a lei da reciprocidade contra as tarifas anunciadas por Donald Trump. Mas a promessa é de seguir com a obstrução nesta semana.

Motta ressaltou que a obstrução regimental do PL é legítima, mas há outras pautas que interessam ao país. "Vamos tratar as pautas dos outros partidos, não podemos ficar uma Casa de uma pauta só", disse.

Nesta segunda, Motta afirmou novamente que "Não vamos ficar restritos a um só tema, vamos levar essa decisão ao Colégio de Líderes, vamos conversar com o Senado e com os Poderes Judiciário e Executivo, para que uma solução de pacificação possa ser dada. Aumentando uma crise, não vamos resolver esses problemas, não embarcaremos nisso".

A manifestação do domingo reuniu 44,9 mil pessoas, segundo o Monitor do Debate Político do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap) em parceria com a ONG More in Common. A mesma metodologia contabilizou 18,3 mil pessoas no ato de Copacabana, ocorrido em 16 de março.

Diante de uma eventual condenação, e do fato de já estar inelegível em 2026, Bolsonaro reuniu apoiadores na avenida Paulista, trazendo sete governadores da direita que hoje brigam, justamente, pelo vácuo que o ex-presidente deixará no ano que vem.

Estavam com Bolsonaro os governadores de Minas Gerais, Romeu Zema (Novo), do Amazonas, Wilson Lima (União Brasil), de Santa Catarina, Jorginho Melo (PL), de Mato Grosso, Mauro Mendes (união Brasil), de São Paulo, Tarcísio de Freitas (Republicanos), do Paraná, Ratinho Junior (PSD), e de Goiás, Ronaldo Caiado (União Brasil).

A ex-primeira-dama, Michelle Bolsonaro, apontada em pesquisas como alguém com certo apelo entre os eleitores na ausência do ex-presidente na disputa, também esteve presente.

Segundo pesquisa realizada pelo instituto Datafolha e divulgada no sábado (5/4), Michelle Bolsonaro teria 15% das intenções de voto, ficando atrás de Lula (35%) e na frente dos demais testados neste cenário:

Ciro Gomes (PDT), com 12%, Pablo Marçal (PRTB), com 10%, Ratinho Junior (PSD), com 5%, Romeo Zema (Novo), com 4%, Eduardo Leite (PSDB), com 3% e Ronaldo Caiado (União Brasil), com 3%. Responderam em branco/nulo ou nenhum: 10%, e que não sabem, 2%.

Michelle Bolsonaro.

Crédito,Amanda Perobelli/Reuters

Legenda da foto,Michelle Bolsonaro tem apelo dentro do eleitorado bolsonarista, mas, segundo pesquisa, ainda fica atrás de Lula, com margem ampla

Um relatório do Supremo Tribunal Federal (STF) de janeiro deste ano apontou que 371 pessoas haviam sido condenadas por crimes relacionados ao 8 de janeiro de 2023. Outras 527 teriam admitido a prática de crimes relacionados e feito acordos com o Ministério Público Federal (MPF) para não serem processadas.

Este é o segundo ato pela anistia convocado por Bolsonaro e seus apoiadores. No primeiro, Bolsonaro postou um vídeo com a foto de quase uma dezena de mulheres condenadas por seus envolvimentos no episódio - sem mencionar, contudo, que uma possível aprovação da anistia poderia beneficiá-lo diretamente.

É o que afirmam juristas ouvidos pela BBC News Brasil que avaliaram o projeto. Segundo eles, o texto prevê a anistia para pessoas direta ou indiretamente envolvidas no 8 de janeiro e até mesmo por atos anteriores.

Isso, em tese, beneficiaria Bolsonaro, acusado pelos crimes de golpe de Estado, abolição violenta do Estado Democrático de Direito, organização criminosa armada, dano qualificado pela violência e grave ameaça contra o patrimônio da União e deterioração de patrimônio tombado.

Ele nega todas as acusações.

Mas o que diz exatamente o projeto de anistia e quais as chances de ser aprovado?

A BBC News Brasil questionou juristas, políticos e cientistas políticos para responder a estas perguntas e explicar como a anistia aos presos pelo 8 de janeiro pode, sim, favorecer também o ex-presidente.

A reportagem procurou sua defesa, mas, até o momento da publicação, não houve resposta.

Ato na Paulista pela anistia em 6 de abril de 2025

Crédito,Jorge Silva/Reuters

Legenda da foto,Deputados bolsonaristas tentam reunir as assinaturas para que projeto da anistia seja votado em regime de urgência, enquanto Bolsonaro testa seu apelo nas ruas

O que diz o projeto?

Levantamento realizado pelo Congresso em Foco em março, localizou ao menos sete projetos de lei de anistia a réus na Câmara, e ao menos outros quatro no Senado.

O projeto mais avançado de anistia ao 8 de janeiro é de autoria do ex-deputado federal Major Vitor Hugo (PL-GO), um dos principais aliados de Bolsonaro durante seu governo.

O PL 2.858 foi apresentado em novembro de 2022 e, inicialmente, tinha o objetivo de anistiar manifestantes que teriam participado de protestos no dia 30 de outubro, após a derrota de Bolsonaro no segundo turno das eleições daquele ano.

Naquela ocasião, manifestantes contra a vitória de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) bloquearam rodovias impedindo a circulação de pessoas e automóveis em diversas partes do Brasil, o que gerou uma série de prisões.

Em 2023, os parlamentares mudaram o projeto para anistiar também quem participou do 8 de janeiro. O projeto, em síntese, prevê o seguinte:

  • Anistia a todos que apoiaram ou financiaram e participaram direta ou indiretamente dos atos de 8 de janeiro de 2023, em atividades relacionadas antes ou depois dos protestos;
  • A medida também beneficiaria quem fez mobilizações em redes sociais em prol dos atos;
  • A anistia se aplicaria a todos já julgados ou quem ainda esteja sendo julgado, com extinção da pena de todas as pessoas já condenadas;
  • Mudanças no Código Penal, como a exigência de que seja caracterizado o uso de violência grave contra pessoas nos casos em que suspeitos são processados por tentativa de abolição do Estado democrático de direito;
  • Manutenção dos direitos políticos dos condenados ou investigados;

O projeto chegou a tramitar na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara dos Deputados no ano passado, mas não foi votado.

Ato na Paulista pela anistia em 6 de abril de 2025.

Crédito,Amanda Perobelli/Reuters

Legenda da foto,Lei da anistia, se aprovada, poderia beneficiar Bolsonaro, dizem especialistas

Como a anistia poderia beneficiar Bolsonaro?

Juristas ouvidos pela BBC News Brasil afirmam que, da forma como está escrito, o projeto de lei pode beneficiar diretamente o ex-presidente Jair Bolsonaro.

Isto por conta de dispositivos como um inciso do primeiro artigo do projeto:

"§ 3º Fica também concedida anistia a todos que participaram de eventos

subsequentes ou eventos anteriores aos fatos acontecidos em 08 de janeiro de

2023, desde que mantenham correlação com os eventos acima citados".

Na prática, o texto diz que as pessoas que participaram de eventos antes ou depois de 8 de janeiro de 2023 que tenham conexão com os atos daquele dia também seriam alvo da anistia.

"Do jeito que está colocado, o projeto de anistia abre margem jurídica para beneficiar o ex-presidente", diz o professor de Direito Penal da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj) Davi Tangerino.

"Isso acontece porque, na visão da PGR, Bolsonaro teria tomado medidas que levaram ao 8 de janeiro. Como o texto do projeto é amplo e prevê anistia a atos anteriores ao 8 de janeiro, em tese, o ex-presidente poderia ser beneficiado."

Ato na Paulista pela anistia em 6 de abril de 2025.

Crédito,Isaac Fontana/EPA

Rafael Mafei, professor de Direito da Universidade de São Paulo (USP), argumenta na mesma linha de Tangerino.

"Quando a denúncia incluiu o 8 de janeiro nesse grande enredo do golpe, ela, de certa maneira, deu um argumento para que se possa sustentar que ele [Bolsonaro] possa dizer que, nos termos da denúncia da PGR, tudo isso deve ser considerado conexo ao 8 de janeiro, porque a própria PGR fez essa conexão. Então, ele teria essa margem para construir essa interpretação ampliativa da anistia", diz Mafei.

O professor de Direito Penal da Universidade de São Paulo (USP) Pierpaolo Bottini aponta que outro trecho do projeto que abre brechas para beneficiar Bolsonaro está no inciso primeiro do artigo 1º.

"A anistia de que trata o caput compreende os crimes com motivação política e/ou eleitoral, ou a estes conexos, bem como aqueles definidos no Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 – Código Penal", diz o trecho.

Na avaliação de Bottini, a utilização do termo "conexo" possibilita a inclusão de Bolsonaro no rol de beneficiados pela anistia.

"Crime conexo é o termo técnico para designar tudo aquilo que é relacionado a um determinado fato, neste caso, os atos de 8 de janeiro", diz o professor à BBC News Brasil.

"Dessa forma, quaisquer atos que tenham vínculo com 8 de janeiro estariam passivos de anistia. Isso permitiria, em tese, anistiar Bolsonaro."

Bottini diz, no entanto, que a anistia, se fosse aplicada a Bolsonaro, não poderia, em tese, reabilitá-lo a disputar as eleições em 2026.

Isto porque o ex-presidente está inelegível até 2030 por conta de duas condenações por infrações eleitorais julgadas pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE) e não pelos supostos crimes relacionados ao 8 de janeiro.

"Até onde se sabe, essa anistia se aplicaria apenas à esfera criminal e não à eleitoral. Ele poderia não ser condenado pelo STF, mas isso não teria influência sobre sua inelegibilidade", afirma Bottini.

Alexandre de Moraes usando toga dentro do STF com a cabeça inclinada.

Crédito,Getty Images

Legenda da foto,Ministros do STF como Alexandre de Moraes poderão ser chamados a se pronunciar sobre a constitucionalidade da anistia aos condenados pelos atos de 8 de janeiro caso a proposta seja aprovada

A palavra final

Apesar do empenho da oposição em acelerar a tramitação do projeto da anistia, especialistas avaliam que isso, sozinho, não será suficiente para que o perdão aos crimes cometidos no dia 8 de janeiro sejam perdoados.

Segundo eles, ainda que o projeto seja aprovado, poderá caber ao STF avaliar se ele é constitucional ou não.

"Não há a menor dúvida de quem decidirá se essa anistia vai valer ou não é o STF. Caso ela seja aprovada, o tema será com certeza judicializado", diz o jurista Davi Tangerino.

"O STF vai ser chamado a decidir se essa anistia é constitucional ou não. E pelo que temos visto, a tendência é de que a Corte decida contra uma medida dessa natureza."

O professor Pierpaolo Bottini diz que um dos temas a serem questionados junto ao STF é se é possível conceder anistia a pessoas que cometerem crimes contra um ou mais dos Poderes da República.

"A legislação prevê anistia a crimes hediondos, e o STF já se posicionou, no caso do deputado Daniel Silveira, que medidas como essa não podem ser adotadas quando o crime é cometido contra um dos Poderes da República", afirma o professor.

"Se a anistia for aprovada, o STF deverá ser provocado a se posicionar sobre se crimes contra os Poderes da República podem ou não ser anistiados. Creio que o STF se posicionaria contra."

Luciana Santana avalia de forma semelhante. "Não podemos desconsiderar que temos o Judiciário neste processo. Com certeza, qualquer projeto de anistia pode vir a ser judicializado e ser inviabilizado pelo Judiciário", afirma Santana.

"Considerando que já há várias condenações sobre isso dadas pelo STF, as chances de judicialização desse tema são muito altas."