Cultura

A Profetisa de Poconé: as visões da Doninha do Tanque Novo que desafiaram políticos, padres e coronéis de Mato Grosso

Conhecida por prever quedas políticas e dizer que via Santa Jesus Maria José, Laurinda de Lacerda Cintra virou lenda viva em Poconé. Meio rezadeira, meio líder comunitária, meio profetisa, ela desafiou o poder local e deixou histórias

PEDRO RIBEIRO/DA EDITORIA 15/11/2025
A Profetisa de Poconé: as visões da Doninha do Tanque Novo que desafiaram políticos, padres e coronéis de Mato Grosso
Doninha dizia ver a Sagrada Família inteira — Jesus, Maria e José — aparecendo sobre o Tanque Novo em clarões que só ela enxergava | Arquivo Página 12

Poucas figuras misturam tão bem a alma de Mato Grosso quanto a Doninha do Tanque Novo. Em Poconé(130 km de Cuiabá), seu nome atravessa décadas, ressurge em conversas de varanda, festas de santo e rodas de tereré, sempre envolto em um misto de medo, respeito e fascínio.

Laurinda de Lacerda Cintra — quem a conheceu difícilmente a chamava pelo nome — era dessas personagens do interior que não precisam de títulos, cargos ou sobrenomes para marcar território. Bastava sua presença magra, o olhar sempre atento ao céu e aquela voz rachada anunciando o que “a Santa tinha mostrado”.

E não era qualquer santa.

Doninha dizia ver a Sagrada Família inteira — Jesus, Maria e José — aparecendo sobre o Tanque Novo em clarões que só ela enxergava. A partir dessas visões, fazia alertas, rezas, profecias e conselhos que muita gente jurava que se cumpriam ao pé da letra.

“Eu vi a Santa Jesus Maria José na luz grande. Foi aviso. Acontece”, repetia ela para quem duvidasse.

Os moradores mais antigos contam que Doninha entrava em espécie de transe. Os olhos ficavam úmidos, vidrados, como se encarassem algo que ninguém mais via. Depois, ela falava:

“Eles mandaram dizer: vão sofrer quem mexe com o pobre dessa terra.”

Era o tipo de frase que, no interior, corre mais rápido que notícia de rádio.

Antes das profecias ganharem fama, Doninha já era conhecida como benzedeira. Sabia usar folhas do cerrado, raízes, ungüentos, chás e rezas fortes. Quem sofria de quebranto, espinhela caída, susto de cobra ou febres sem nome, procurava ela.

Às vezes, a fila começava ao amanhecer e terminava com o sol se pondo atrás do Pantanal.

“Doninha era curadora do corpo e da alma”, diziam.

E era também porta-voz do bairro, uma espécie de liderança natural. Se faltava água, era ela quem ia reclamar. Se tinha confusão, era ela quem acalmava. Se políticos apareciam pedindo voto, encontravam nela uma barreira difícil de atravessar.

Nos anos 1930 a 1960, Mato Grosso ainda respirava coronelismo. Poconé não era diferente. As grandes famílias mandavam e desmandavam, e o povo, em regra, baixava a cabeça.

Mas Doninha não.

Dizia — com a convicção de quem acreditava profundamente nas próprias visões — que muitos dos grandes nomes da política eram “homens do poder sem a bênção”. Falava que haveria queda, “bancarrota”, ruína, derrota em eleição.

Não tardou para arrumar inimigos.

A história oral da região conta que ela bateu de frente com políticos importantes da época, contestando abusos, denunciando injustiças e prevendo derrotas eleitorais. E o povo acreditava.

Até hoje, muitos no Tanque Novo juram que ela previu a perda de poder de famílias inteiras em Mato Grosso.

Uma de suas frases mais conhecidas — e mais temidas — veio anos antes de morrer:

“Vai chegar o tempo em que o Pantanal pega fogo e os filhos do novo milênio trancam as portas, porque uma peste vai rodar o mundo.”

Durante os incêndios devastadores do Pantanal e a pandemia da Covid-19, o nome dela surgiu de novo.

“Foi a Doninha que falou isso. Tava certo”, diziam.

Para muitos, a profecia se cumpriu.

Doninha não estudou, não ocupou cargo público, não tinha sobrenome de peso.
E mesmo assim influenciou gerações de poconeanos.

Para uns, era santa.
Para outros, bruxa.
Para muitos, apenas alguém que enxergava mais longe.

Seu corpo franzino caminhando pelo bairro Tanque Novo é lembrança viva entre os moradores mais velhos. Carregava um terço, um pedaço de pano branco e ervas dentro de uma sacolinha.

E o mais curioso: ninguém conta a mesma história igual. Cada um traz um pedaço da Doninha. E é nessa mistura de memória, medo e devoção que ela se tornou lenda.

A data exata divide opiniões. Alguns apontam para 23 de junho de 1973. Outros, para 1974. Isso, por si só, mostra o quanto sua vida está entre fato e mito.

Morreu pobre, simples, cercada de gente que acreditava nela.
E, desde então, nunca mais deixou de existir.

A Doninha do Tanque Novo é mais que personagem: ela é um pedaço de Mato Grosso que resiste ao tempo. Uma memória regional que mistura fé, história e uma espiritualidade muito própria do interior.

É como se a alma dela ainda rondasse o Tanque Novo, silenciosa, olhando o céu, esperando o próximo sinal da Santa que só ela via.

E, de certa maneira, continua profetizando — agora através da boca do povo que mantém viva a história da mulher que ousou desafiar os poderosos e acreditar que a luz divina realmente descia sobre Poconé.