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As crianças levadas a tribunais de imigração nos EUA sem advogados: 'É como tirar paraquedas antes de jogar do avião'
Existem 26 mil crianças que poderão acabar nesta mesma situação, enfrentada hoje por centenas de menores de idade nos Estados Unidos: precisar se defender em processos migratórios por conta própria

A juíza Olga Attia pede um livro para colorir.
"Assim, você pode ficar mais entretida", diz ela à menina de 5 anos que está sentada à sua frente. Ela enfrenta um processo de deportação no Tribunal de Migração de San Diego, na Califórnia (Estados Unidos).
A menina chegou ao país em março de 2024, sem seus pais nem outros adultos responsáveis.
Ela veio do México com sua irmã de 13 anos e seu irmão de 15. Os três foram detidos por terem cruzado a fronteira de forma irregular.
A menor começa a pintar e a magistrada se esforça para fazer com que ela explique seu caso.
Ela precisa atravessar sozinha todo o labirinto jurídico, sem advogado, como explica sua mãe, que emigrou para os Estados Unidos em outro momento e está presente na audiência.
"Não podemos permitir isso", declarou ela à agência de notícias Associated Press (AP).
Attia sugere uma organização que poderá oferecer orientações e agenda uma nova audiência para o mês de maio.
Existem 26 mil crianças que poderão acabar nesta mesma situação, enfrentada hoje por centenas de menores de idade nos Estados Unidos: precisar se defender em processos migratórios por conta própria.
No último dia 21 de março, o governo americano cancelou os contratos mantidos com dezenas de organizações que oferecem representação legal a menores não acompanhados – imigrantes com menos de 18 anos que atravessaram a fronteira sem seus pais ou tutores. Mas uma juíza federal bloqueou esta decisão até o dia 16 de abril.
A maioria das crianças é procedente da América Central. Mas há também menores de outras regiões da América Latina e de outros continentes.
Muitos deles não entendem inglês. Outros são bebês com meses de idade, que ainda nem aprenderam a falar.
"É como retirar deles o paraquedas antes de lançá-los do avião", declarou à BBC News Mundo – o serviço em espanhol da BBC – o advogado Jonathan D. Ryan, do escritório Advokato. Ele defende 50 menores de idade no Estado americano do Texas.
"Sou advogado, estudei na Faculdade de Direito e sou especializado em imigração há 20 anos", ele conta. "E, ainda assim, cada caso para mim é um desafio. Dedico cerca de 100 horas de trabalho a cada pedido de asilo."
"Por isso, a ideia de que qualquer pessoa, não apenas uma criança, possa preparar uma ação e apresentá-la de forma eficiente perante um juiz de imigração com um promotor muito bem preparado, bem pago e altamente motivado litigando contra ela não é apenas falsa. É realmente uma manifestação de crueldade."
Como outros advogados que conversaram com a BBC, Ryan está analisando quais são seus casos mais urgentes para calcular quantos ele poderá assumir pro bono (de forma gratuita e voluntária), sem descuidar dos seus deveres éticos e das regras de conduta profissional.
Esses advogados o fazem sabendo que poderão enfrentar consequências legais se decidirem prosseguir com os litígios contra o governo, para que seus clientes permaneçam em território americano.

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Garantias para os mais vulneráveis
"Você tem direito a um advogado. Se não puder pagar, será designado um advogado de ofício." Essas frases são típicas dos filmes e séries de TV americanas.
Mas, na verdade, essa obrigação de oferecer representação legal sem custo nos Estados Unidos só atinge os processos penais. E os casos migratórios são decididos pela justiça civil.
Em 2005, o Congresso americano aprovou a Lei de Proteção a Crianças Estrangeiras não Acompanhadas, com o apoio dos dois partidos, Democrata e Republicano. A legislação estabeleceu certas garantias para os mais vulneráveis, frente ao complicado sistema migratório do país.
Além de impedir que os imigrantes menores de idade sejam levados ao mesmos centros de detenção dos adultos ou delinquentes juvenis, a lei determina que eles não sejam expulsos para suas nações de origem ou de última residência, "se a sua vida ou segurança estiverem em risco" naqueles países.
O artigo sexto da lei determina que é preciso assegurar que os menores sob custódia do Estado tenham acesso a assessoria e representação legal "competente", por meio de organizações sem fins lucrativos subcontratadas ou agências privadas com "experiência relevante" com crianças migrantes, "ao máximo possível".
Essa última disposição também consta na Lei de Reautorização da Prevenção e Proteção das Vítimas do Tráfico de Pessoas do país. Aprovada em 2008, ela determina que os menores vulneráveis tenham acesso à defesa legal.

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Atualmente, a entidade contratada para oferecer esta defesa é o Centro Acacia para a Justiça. Sua rede de prestadores é formada por mais de 90 organizações e escritórios de advocacia de todo o país.
Com US$ 200 mil (cerca de R$ 1,18 bilhão) anuais, procedentes de fundos federais, a organização oferece representação legal a 26 mil menores de idade, além de orientações e informações sobre seus direitos e outros tipos de assistência a um total de 100 mil menores.
Esse programa é quinquenal. Mas, ao fim de cada ano, o governo pode decidir pela renovação ou não do contrato.
No dia 18 de fevereiro, o governo Donald Trump já havia emitido uma ordem para que as organizações envolvidas suspendessem a representação legal. O governo voltou atrás três dias depois.
A notícia da rescisão do contrato chegou em 21 de março, apenas oito dias antes da data em que se esperava sua extensão.
A AP informou ter obtido uma cópia da carta de cancelamento. Ela afirma que a decisão de encerrar o acordo foi tomada "por conveniência do governo", segundo a agência.
A BBC News Mundo solicitou a versão do Departamento de Saúde e Serviços Humanos dos Estados Unidos, encarregado pelos menores imigrantes, mas não recebeu resposta até o fechamento desta reportagem.

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Restabelecimento temporário
No dia 1º de abril, depois que 11 organizações subcontratadas entraram com uma ação na Justiça americana, uma juíza federal da Califórnia ordenou ao governo Trump o restabelecimento da assistência de forma temporária.
A juíza Araceli Martínez-Olguín, do distrito de São Francisco, escreveu na sua decisão que as entidades apresentaram perguntas legítimas. Elas questionam se o governo teria violado a lei de 2008, o que justifica o retorno ao status quo enquanto o caso avança na Justiça.
"O tribunal também considera que o financiamento contínuo da representação legal para menores não acompanhados promove a eficiência e a equidade do sistema migratório", acrescentou a magistrada. A ordem entrou em vigor no mesmo dia e ficará vigente até 16 de abril.
A decisão de suspender o financiamento para essas organizações surge em meio a relatos que indicam que o governo Donald Trump pretende rastrear as crianças imigrantes não acompanhadas. A intenção é garantir que elas compareçam perante a Justiça migratória ou sejam deportadas, caso seja emitida uma ordem final de expulsão do país.
Foi o que noticiou em janeiro a agência de notícias Reuters. Ela menciona um memorando interno do Serviço de Imigração e Alfândega dos Estados Unidos (ICE, na sigla em inglês), a que a agência teve acesso. Ele detalharia as fases para levar a cabo esse projeto.
Tom Homan, nomeado por Trump como "czar da fronteira" e encarregado do seu plano de deportação, declarou que o governo Biden perdeu o paradeiro de 300 mil crianças imigrantes que entraram nos Estados Unidos sozinhas. Mas advogados de imigração e grupos de direitos humanos refutam essa informação.
"Eles não estão perdidos", garante Jonathan Ryan. "Eles foram reunidos aos seus familiares ou patrocinadores."
"Os assistentes sociais e o Escritório de Relocação de Refugiados – a entidade subordinada ao Departamento de Saúde e Serviços Humanos encarregada das crianças quando elas são detidas – sabem onde elas estão."
"Mas, mesmo se aceitarmos o argumento de Tom Homan, se existe uma forma de garantir que as crianças não se percam, não sejam exploradas nem passem a ser vítimas de tráfico, é fornecer advogados que deem esperança e proteção para que elas possam defender seus casos", afirma Ryan.
Sem advogados, nem opções
O número de menores de idade que cruzam a fronteira entre o México e os Estados Unidos sozinhos aumentou ano após ano na última década, até atingir um pico de 128 mil em 2022, segundo dados oficiais do governo americano.
O governo anterior, do presidente democrata Joe Biden, ampliou o acesso aos serviços jurídicos para estes menores não acompanhados.
Por isso, no ano fiscal de 2024, quase dois terços deles contaram com um advogado que defendesse seus casos, segundo as estatísticas do Escritório Executivo de Revisão da Imigração (EOIR, na sigla em inglês) do Departamento de Justiça – a agência que administra os tribunais de imigração nos Estados Unidos.
Os menores não acompanhados podem conseguir permanecer em território americano, mediante a obtenção de status especial de imigrante juvenil. Para isso, eles precisam demonstrar que foram vítimas de abuso, abandono ou negligência.
Eles também podem conseguir asilo, se conseguirem provar que foram perseguidos no seu país de origem; ou podem permanecer por meio do programa de proteção a sobreviventes de delitos ou tráfico de pessoas.
Mas conseguir esses "alívios migratórios", como são chamados no jargão do setor, é quase impossível sem a ajuda de um defensor, segundo todos os especialistas consultados pela BBC.
Além disso, uma análise elaborada com base nos dados do EOIR obtidos pela Universidade de Siracusa, no Estado americano de Nova York, o comparecimento às audiências das crianças que contam com um advogado para representá-las é de 95%, contra apenas 33% entre aquelas que não contam com um representante legal.

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Nos últimos anos, milhares de imigrantes que não compareceram às suas audiências judiciais acabaram sendo deportados.
"É possível alegar que são muitos casos para assumir a todos, mas os Estados Unidos detêm os recursos e a capacidade de pagamento da representação legal de cada criança que enfrentar um processo de deportação", assegura Ryan.
"Gastamos centenas de milhares de dólares na judicialização destas crianças. Os juízes ganham de US$ 130 mil a quase US$ 200 mil [cerca de R$ 768 mil a R$ 1,18 milhão por ano] e os promotores do Departamento de Segurança Nacional ganham outro tanto. Existem os intérpretes, os secretários do Judiciário, o custo da sala do tribunal..."
"De todos os presentes, o menor custo é o do advogado defensor da criança e é o mínimo que podemos fazer", destaca ele.
"Ante a perspectiva de ir sozinho a julgamento e a realidade do que isso implica, muitas crianças provavelmente nem irão comparecer, por medo, intimidação e desesperança", segundo Ryan.
'O que digo à minha cliente de dois anos de idade?'
"Como digo à minha cliente de dois anos que ela precisa se defender sozinha?", questionou Daniela Hernández Chong Cuy, ao saber da primeira ordem do governo, em fevereiro. Ela se referia a uma dentre 83 menores de idade representados pelo seu escritório em Los Angeles, na Califórnia.
Na verdade, esse caso está relacionado a outro que também está sob sua responsabilidade, como explica a advogada à BBC News Mundo. Chong Cuy oferece assistência à menina e à sua mãe, que também é menor de idade.
"A mãe saiu grávida do seu país de origem e a bebê nasceu a caminho dos Estados Unidos, no México", conta a advogada. "Quando se apresentaram na fronteira, uma tinha 15 anos e a outra, um mês."
Primeiramente, elas foram levadas para um albergue de menores. E, depois que os assistentes responsáveis pelo caso concluíram que mãe e filha não tinham ninguém que se encarregasse delas nos Estados Unidos, eles as enviaram para um programa de lares de acolhimento.
"Embora seja uma unidade familiar, elas são de nacionalidades distintas, com diferentes histórias de vida e abandono", conta a advogada.
"No caso da bebê, abandono por parte do pai e, no caso da mãe, por ser menor de idade, abandono por parte de pai e mãe, além de negligência e maus tratos."
"Além disso, a mãe sofreu perseguição no seu país de origem e forte depressão pós-parto", acrescenta ela.
"Elas poderiam conseguir ficar nos Estados Unidos, por caminhos legais diferentes." Mas, sem uma advogada que defenda seus interesses, Chong Cuy duvida que elas tenham sucesso.
"Elas precisam se apresentar à Justiça, decidir se irão tentar conseguir alívio migratório, atender às exigências que foram feitas a elas quando forem citadas...", descreve ela.

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Chong Cuy reconhece que este não é o único caso complexo que ela tem em mãos.
"Temos menores da África ocidental, clientes do Afeganistão, de países latino-americanos que são de povos indígenas e não falam espanhol e, por isso, precisamos trabalhar com intérpretes", ela conta. "E, ainda assim, encontramos uma série de barreiras."
A BBC voltou a conversar com a advogada depois da ordem judicial de 21 de março. Ela estava "em fase de diagnóstico" dos seus casos.
"Estou vendo em qual etapa do processo eles estão, para quais falta apresentar pedidos, quais têm tribunal definido e, nos próximos meses, quais estão a ponto de atingir a maioridade e quais são os processos mais sensíveis que exigem atenção imediata", explicou ela.
"Pouco mais de 20 dos meus casos são menores em custódia federal e são prioritários", ela conta. "Mas vão permitir que tenhamos acesso a eles? Estamos aguardando."
Chong Cuy destaca que também gostaria de consultar uma advogada especializada em ética profissional sobre esta situação.
Para analisar este panorama, os defensores precisam ter outro elemento em conta: um memorando emitido pela Casa Branca, com data do mesmo dia 21 de março, intitulado "Prevenir abusos no sistema judiciário e nos tribunais federais".

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"O sistema de imigração está repleto de comportamentos inescrupulosos de advogados e escritórios", destaca o texto. "A ordem dos advogados e os defensores sem fins lucrativos aconselham frequentemente seus clientes a ocultar o passado ou mentir, ao apresentar seus pedidos de asilo."
Com aquele documento de cinco páginas, o presidente Trump instrui sua procuradora-geral, Pam Bondi, a "revisar a conduta" de todos os escritórios e advogados que processaram o governo federal nos últimos oito anos.
Se forem encontradas provas do que o memorando chama de "má conduta", serão tomadas medidas, que poderão variar do cancelamento de contratos até a perda de acessos de segurança para apresentar litígios e outras sanções não especificadas.
Para Ryan, tudo isso serve apenas para alimentar uma certa narrativa.
"Mas qualquer pessoa que se aproximar de uma destas salas e observar, no banco dos réus, uma criança cujos pés não chegam sequer a tocar o piso saberá, no fundo do seu coração e seja qual for sua inclinação política, que alguém deveria estar sentado ao lado dela."