Política
O que o Brasil ganha com viagem de Lula à França?
Ao todo, o presidente já visitou mais de 30 países desde o início do seu mandato atual - sendo que oito apenas em 2025

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) concluiu nesta segunda-feira (9/6) sua agenda intensa de compromissos na França e retornou ao Brasil.
Durante seis dias, o chefe de Estado se encontrou com diversas autoridades locais e internacionais, assinou acordos e atos de cooperação e visitou quatro cidades – em território francês, mas também em Mônaco, um principado independente localizado na zona costeira do Mediterrâneo.
Ao todo, o presidente já visitou mais de 30 países desde o início do seu mandato atual - sendo que oito apenas em 2025.
Segundo Lula, muitos o questionam sobre seus gastos nos giros internacionais. Mas na França, ele defendeu que têm valido a pena.
"Eu não sei quanto estou gastando porque não cuido disso. Mas sei o quanto estou levando de volta para o Brasil", afirmou em uma coletiva de imprensa no sábado (7/6) em Paris.
"O Brasil precisa deixar de ser pequeno. O Brasil precisa se colocar como um país grande. Os nossos embaixadores têm que pensar grande. A gente não é menor nem inferior do que ninguém", argumentou.
Mas afinal, o que a ida à França trouxe de ganhos ao governo e ao Brasil? E quais foram os pontos de destaque da viagem?
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O tópico que dominou a passagem de Lula pela França foi a negociação sobre o acordo entre União Europeia (UE) e Mercosul.
O tema é o grande calcanhar de Aquiles da relação entre Lula e Emmanuel Macron, presidente da França.
O avanço das negociações para colocar o tratado em vigor é tema prioritário da política externa de Lula, mas encontra uma clara objeção por parte do governo de Macron — que comanda hoje a segunda maior economia da UE.
O acordo foi assinado no final do ano passado, mas ainda precisa ser ratificado pelo Parlamento Europeu e os legislativos de cada país de ambos os blocos.
Quando a finalização das negociações foi anunciada durante encontro do Mercosul em Montevidéu em dezembro de 2024, o governo da França já havia se manifestado e classificado a versão aprovada do pacto como "inaceitável".
A oposição francesa se deve principalmente à forte objeção de produtores agrícolas. O setor alega que a entrada em vigor do tratado colocaria em risco milhares de empregos ao abrir as portas do mercado francês a produtos agrícolas produzidos sem os mesmos padrões de qualidade ambiental e sanitários exigidos dos fazendeiros franceses.
Durante o encontro entre Lula e Macron no Palácio do Eliseu nesta semana, as discordâncias em torno do tema foram mais uma vez expostas e não houve nenhum anúncio oficial sobre avanço nas negociações.

Crédito,Getty Images
Segundo o diplomata e ex-embaixador do Brasil nos EUA, Rubens Barbosa, o governante francês não mostra qualquer sinal de flexibilização da sua posição.
Ainda assim, diz, a aproximação entre os dois líderes, selada pela viagem de Estado, pode ser positiva para o futuro do pacto.
"O que Lula vem fazendo é tentar evitar que o Macron e a França tenham uma ação militantes contra o acordo", diz. "E acho que ele vai conseguir. Creio que o país vai continuar se opondo, mas sem agir como um ativista contra."
Para Andreza Aruska, diretora do Programa de Estudos Brasileiros da Universidade de Oxford, independentemente da posição francesa, a aproximação comercial entre os dois países é necessária no momento atual, ainda que haja discordâncias.
A especialista explica que os Estados Unidos são um grande parceiro para o Brasil e o Mercosul, mas também para a Europa. E, diante da aplicação de novas tarifas pelo governo de Donald Trump, todos precisam buscar alternativas para negócios.
"O fato da Europa também estar buscando novos parceiros pode alavancar o acordo União Europeia e Mercosul", diz. "Mas a verdade é que a objeção da França vai muito além da dificuldade de cumprimento das regras sanitárias ou ambientais. Mesmo se o Brasil se adequasse, ainda haveria o protecionismo."
Justamente por isso, afirma Aruska, a busca por novos parceiros comerciais deve seguir entre os países do Mercosul, especialmente porque a América Latina não possui um mercado de exportação muito diversificado.
Investimentos e comércio
Durante a visita de Estado de Lula à França também aconteceu o Fórum Econômico França-Brasil, organizado pela Agência Brasileira de Promoção de Exportações e Investimentos (ApexBrasil).
Durante o evento, empresários e investidores de ambos os países tiveram a oportunidade de se reunir e discutir novas oportunidades.
Nesse contexto, um grupo de empresários franceses se comprometeram a investir R$ 100 bilhões no Brasil até 2030 durante uma reunião privada com Lula.
Segundo Jorge Viana, presidente da organização, um dos empresários presentes na reunião com o presidente foi Jean-Pierre Clamadieu, presidente do conselho de administração da Engie, multinacional francesa do setor de energia. Ele também integra o conselho da Business France, basicamente uma versão francesa da Apex.
Entre os organizadores brasileiros do evento, o clima foi de comemoração e expectativa após o anúncio.
Os especialistas consultados pela BBC Brasil alertam, porém, que o anúncio é apenas uma "intenção positiva".
"É preciso criar condições para que essa intenção se concretiza. Mas tudo vai depender da situação política e jurídica e da segurança politica no Brasil", pondera o ex-embaixador Rubens Barbosa.
Segundo o diplomata, uma mudança de governo nas próximas eleições brasileiras - e até a saída de Macron da presidência - é também um fator que pode fazer com que os empresários franceses oscilem em sua decisão de investir no país.
Lula também defendeu, durante a sua passagem pela França, o estabelecimento de metas para o aumento do fluxo comercial entre os países.
Atualmente, o comércio entre os dois países é de US$ 9,1 bilhões, segundo dados de 2024.
"Vocês, empresários franceses, e vocês, empresários brasileiros, tratem de trabalhar. Vamos sair daqui lançando um plano de metas: nos próximos 10 anos vamos chegar a US$ 20 bilhões, e trabalhar para isso. Porque se não tiver plano de metas e a gente só fizer as coisas quando a natureza permitir, não dá certo", disse o presidente no evento com empresários.

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Laura Trajber Waisbich, diretora adjunta de programas do Instituto Igarapé, também avalia que é preciso continuar trabalhando a parceria com a França para que as parcerias em investimento e comércio se concretizem.
"Só o tempo dirá quais dessas parcerias vão vingar e em quais contextos", diz. "Mas o anúncio [da intenção de investir R$ 100 bilhões nos próximos cinco ano] já mostra a vitalidade e as potencialidades dessa relação."
Em paralelo ao Fórum Econômico França-Brasil, membros da delegação brasileira também comemoraram o recebimento pelo Brasil do certificado de país livre de febre aftosa sem vacinação pela Organização Mundial de Saúde Animal (OMSA).
O reconhecimento pela OMSA já havia sido concedido ao Brasil em maio, mas o certificado foi recebido oficialmente por Lula e pelo ministro da Agricultura e Pecuária, Carlos Fávaro, em uma cerimônia em Paris.
O título pode ajudar na abertura de novos mercados internacionais para a carne brasileira, já que alguns países compram apenas de locais com este status, de acordo com associações do setor.
Brasil e França assinaram ainda acordos bilaterais de cooperação para o desenvolvimento de vacinas e produtos laboratoriais, envolvendo a Fiocruz e instituições francesas, como o Instituto Pasteur.
"Creio que a viagem valeu à pena", avalia Andreza Aruska, de Oxford.
"O bom relacionamento entre os dois chefes de Estado mostra também a confiança da França nas intuições e democracia brasileiras, além do realinhamento global de blocos regionais e líderes globais tentando achar saídas e formas de cooperação em um momento em que cresce o unilateralismo."
Preparação para a COP30
A participação em eventos ligados à sustentabilidade e ao meio-ambiente ocupou boa parte da agenda de Lula na França.
Brasil e França assinaram ato de comprometimento e cobrança para a aceleração da ação climática e uma declaração de intenção para estabelecimento de um Corredor Marítimo Verde entre os dois países, com o intuito de promover o transporte marítimo sustentável, reduzir as emissões de gases de efeito estufa no setor e adotar tecnologias e práticas inovadoras.
Após sua visita de Estado em Paris, Lula discursou no domingo (8/6) na sessão de encerramento do Fórum de Economia e Finanças Azuis, em Mônaco, dedicado à economia oceânica regenerativa e sustentável.
Nesta segunda-feira, também falou na Conferência das Nações Unidas sobre os Oceanos (UNOC3).
No evento em Mônaco, Lula ressaltou a importância dos oceanos para a economia mundial e brasileira e defendeu uma maior participação financeiras das nações mais ricas nos esforços de conservação.
"Em 2024, países ricos reduziram em 7% a Assistência Oficial ao Desenvolvimento. Suas despesas militares, em contrapartida, cresceram 9,4%. Isso mostra que não falta dinheiro. O que falta é disposição e compromisso político para financiar", disse o presidente, em uma sessão em que também discursaram Emmanuel Macron e o príncipe William, do Reino Unido.
Já na UNOC3, o brasileiro defendeu que não se permita "que ocorra com o mar o que aconteceu no comércio internacional", em referência à disputa tarifária iniciada pelo governo americano de Donald Trump.
"Evitar que os oceanos se tornem palco de disputas geopolíticas é uma tarefa urgente para a construção da paz", disse Lula, que anunciou comprometido de ratificar, ainda em 2025, o Tratado do Alto Mar, um acordo internacional que estende várias proteções ambientais aos oceanos.
Para Laura Waisbich, a participação nas conferências e até mesmo o diálogo com a França sobre o meio-ambiente fazem parte de um esforço de articulação politica para fortalecer o trabalho do Brasil como presidente da 30ª edição da Conferência das Nações Unidas sobre o Clima (COP), que será realizada em novembro em Belém.
Segundo a pesquisadora, a COP 30 ocorre em um contexto complexo diante da retirada dos Estados Unidos do Acordo de Paris e uma onda de ceticismo em relação à capacidade do mundo de cumprir suas metas ambientais. Por isso, afirma, trata-se de um desafio internacional grande.
"A cooperação entre França e Brasil na área de meio ambiente mostra que é possível transcender o debate sobre polarização entre países do Sul e do Norte", diz. "Existe uma dimensão de interesses divergentes, mas existem interesses convergentes."
Cultura e segurança
Outros dois temas que ganharam destaque na França foram a cooperação internacional nas áreas de cultura, educação, segurança transfronteiriça e combate ao crime organizado.
Em 2025, celebra-se o Ano Cultural Brasil-França 2025, uma iniciativa acordada entre Macron e Lula em 2023. A programação da temporada brasileira na França compreende diversas atividades em diferentes cidades.
Como parte desse esforço, os chefes de Estado de ambos os países visitaram a exposição do artista visual carioca Ernesto Neto apresentou sua obra, em cartaz no Grand Palais, em Paris.
Os dois governos também assinaram em Paris ato que atualiza e amplia as colaborações culturais entre os dois países.
Além disso, Lula recebeu homenagem da Academia Francesa e o título de Doutor Honoris Causa da Universidade Paris 8, localizada em Saint-Denis, na periferia da capital francesa.
"Geralmente no Brasil valorizamos primeiro o lado comercial e só depois o cultural, mas nessa viagem se deu muita ênfase a esse setor", avalia Rubens Barbosa.

Crédito,Ricardo Stuckert / PR
Já em termos de segurança, o destaque ficou para o anúncio sobre a intenção de reforçar o trabalho de cooperação para proteger a floresta e lutar contra o garimpo ilegal e o tráfico de seres humanos na fronteira entre Amapá e Guiana Francesa.
O governo Macron também anunciou o fim a obrigatoriedade do visto para entrada de brasileiros na Guiana Francesa por um período de teste.
"A agenda em torno da segurança transfronteiriça tem pouca visibilidade, mas é muito importante", destaca Trajber Waisbich, do Instituto Igarapé, citando especialmente as dificuldades brasileiras em combater o garimpo ilegal na região amazônica.
Também foram anunciados memorandos de entendimento entre a Polícia Federal do Brasil e a Gendarmeria Nacional da França e contratos referentes à próxima fase da parceria entre Brasil e França para construção de submarinos.
A última parada do presidente Lula na França também foi dedicado ao tema da segurança. Em Lyon, antes de embarcar de volta para o Brasil, o chefe de Estado brasileiro visitou a sede da Interpol nesta segunda.
Desde novembro de 2024, a Interpol é comandada pelo delegado da Polícia Federal (PF) Valdecy Urquiza. Ele é o primeiro representante de um país em desenvolvimento a ocupar esse cargo nos 100 anos de existência da organização.
Durante a visita de Lula, o Brasil e a Interpol assinaram uma declaração de intenção para ampliar as possibilidades de colaboração e viabilizar novas operações conjuntas.
Mas para o ex-embaixador Rubens Barbosa, a passagem do presidente brasileiro pela organização é muito mais uma "cortesia" em relação ao novo secretário brasileiro do que um sinal relevante de ampliação da cooperação ou protagonismo do Brasil no tema de segurança internacional.
"Não é importante, é só um detalhe da viagem", classificou o diplomata.
Gaza e Ucrânia
Em seus discursos e declarações à imprensa durante passagem pela França, Lula também fez referências a dois dos maiores conflitos armados atuais: a guerra em Gaza e as disputas entre Rússia e Ucrânia.
Sobre a atual situação do território palestino, o presidente brasileiro manteve sua posição crítica à atuação de Israel e a falta de ação de outros países e organismos internacionais diante da crise.
"Eu fico pasmo com o silêncio do mundo. Me parece que não existe mais humanismo nas pessoas. 'Ah, palestino pode morrer'. Palestino não é ser inferior. Palestino é gente como nós. Ele tem o direito de ter o terreno dele, que foi demarcado em 1967 a área que poderiam construir seu país e está sendo tomada a terra demarcada", comentou o presidente na coletiva de imprensa realizada em Paris.
Na mesma conversa com jornalistas, Lula foi questionado sobre o estado atual das negociações de paz entre Rússia e Ucrânia e reiterou o apoio brasileiro a um cessar-fogo imediato.
"Eu, sinceramente, acho que no subconsciente, ou melhor, no inconsciente de todos os líderes políticos do mundo, todo mundo sabe o que vai acontecer. Todo mundo sabe que as condições do acordo já estão colocadas. O que está faltando é coragem das pessoas dizerem o que querem", disse o presidente brasileiro, acrescentando que "é muito difícil quando você começa uma coisa, parar".
Lula foi interrogado sobre o que exatamente crê que pode acontecer nas negociações, mas não detalhou sua posição.
O presidente também foi questionado sobre se uma negociação que termine com a Rússia em posse de territórios ocupados na Ucrânia seria capaz de abrir precedentes perigosos.
Lula respondeu que, na guerra, nem sempre todos saem da mesa de negociações satisfeitos. "Ora, você está numa guerra. Numa guerra, nem sempre acontece aquilo que a gente quer", disse.
Para Andreza Aruska, professora da Universidade de Oxford, as declarações tiveram um "peso negativo na visita".
Segundo a especialista, se Lula se referiu à perda de territórios pela Ucrânia como única solução para o conflito, pode ter tocado em um ponto delicado para os europeus.
"É complicado porque normaliza uma situação de ocupação que é muito complexa na Europa. O Brasil está distante de uma ocupação russa, mas a França não tanto", diz.
Já Rubens Barbosa acredita que, apesar das declarações, a posição do governo brasileiro segue estável e focada na ideia da paz.
"O Brasil não se manifesta sobre esses assuntos, fica neutro. É o presidente que tem se manifestado", diz. "Temos que colocar isso em perspectiva."