Brasil

Da cachaça à Amazônia: como o argentino Francisco se tornou o mais brasileiro dos papas

A relação do papa Francisco com o Brasil, o país com mais católicos no mundo, ficou em evidência em muitos momentos na última década

PEDRO RIBEIRO/DA EDITORIA/COM BBC 22/04/2025
Da cachaça à Amazônia: como o argentino Francisco se tornou o mais brasileiro dos papas
Papa Francisco visitou a favela de Varginha, no Rio de Janeiro, em 2013 | YASUYOSHI CHIBA/AFP via Getty Images

Na manhã da segunda-feira (21/04), o cardeal irlandês Kevin Ferrel anunciou o falecimento do papa Francisco. O papa estava com a saúde fragilizada e esteve internado em um hospital de Roma entre 14 de fevereiro e 23 de março, se recuperando de problemas respiratórios graves.

Durante o domingo de Páscoa, o papa Francisco esteve com fiéis na praça de São Pedro, após pronunciamento que fez da sacada da Basílica de São Pedro.

A relação do papa Francisco com o Brasil, o país com mais católicos no mundo, ficou em evidência em muitos momentos na última década. E em diversos aspectos: até sobre carnaval e cachaça o argentino falou.

Foi em Aparecida, no interior paulista, que o argentino Jorge Mario Bergoglio começou a se transformar no que anos depois seria o papa Francisco, segundo especialistas. E talvez não tenha sido à toa que ele escolheu visitar a cidade brasileira em sua primeira viagem internacional como papa.

Na manhã da segunda-feira (21/04), o cardeal irlandês Kevin Ferrel anunciou o falecimento do papa Francisco. O papa estava com a saúde fragilizada e esteve internado em um hospital de Roma entre 14 de fevereiro e 23 de março, se recuperando de problemas respiratórios graves.

Durante o domingo de Páscoa, o papa Francisco esteve com fiéis na praça de São Pedro, após pronunciamento que fez da sacada da Basílica de São Pedro.

A relação do papa Francisco com o Brasil, o país com mais católicos no mundo, ficou em evidência em muitos momentos na última década. E em diversos aspectos: até sobre carnaval e cachaça o argentino falou.

Foi em Aparecida, no interior paulista, que o argentino Jorge Mario Bergoglio começou a se transformar no que anos depois seria o papa Francisco, segundo especialistas. E talvez não tenha sido à toa que ele escolheu visitar a cidade brasileira em sua primeira viagem internacional como papa.

Francisco também será lembrado, ao menos no Brasil, como o papa que disse que Deus é brasileiro.

A seguir, relembre esses episódios e entenda a relação de Francisco com o Brasil, que começa antes de Bergoglio virar papa:

Em Copacabana, em 2013, turistas tiram foto com homenagem a Francisco, que escolheu o Brasil como seu primeiro destino fora da Itália como papa

Crédito,Getty Images

Legenda da foto,Em Copacabana, em 2013, turistas tiram foto com homenagem a Francisco, que escolheu o Brasil como seu primeiro destino fora da Itália como papa

'Cartilha' do papa

Em maio de 2007, seis anos antes de ser eleito para o comando da Igreja Católica, o então cardeal arcebispo de Buenos Aires teve um papel de liderança na 5ª Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano e do Caribe, também conhecida como Conferência de Aparecida.

A reunião dos bispos latino-americanos, convocada pelo então papa João Paulo 2º (1920-2005), discutiu temas como Amazônia, globalização, questões de gênero e situações de povos originários e afroamericanos.

E Bergoglio, responsável por coordenar a produção do documento final do encontro, se cacifou ali como um líder compatível com os desafios que o catolicismo enfrentava — e ainda enfrenta — no século 21.

As discussões travadas ali e as conclusões atingidas naquele evento acabaram funcionando como uma cartilha do papado de Francisco, segundo especialistas.

Os seus gestos, documentos e discursos como sumo pontífice acabaram sendo um detalhamento, um aprofundamento e um amadurecimento de tudo o que já estava naquele relatório.

"O pontificado inteiro foi orientado pelo documento de Aparecida", diz à BBC News Brasil o vaticanista Filipe Domingues, professor na Pontifícia Universidade Gregoriana, de Roma, e diretor no Lay Centre, também em Roma.

"Ele trouxe esses ensinamentos para o centro da Igreja, os reelaborou e os apresentou como parte do seu magistério. Isso é muito forte para a Igreja da América Latina e para a Igreja do Brasil."

Primeira viagem do papa Francisco

Papa Francisco celebra missa na Basílica do Santuário Nacional de Nossa Senhora Aparecida em 24 de julho de 2013

Crédito,Getty Images

Legenda da foto,Papa Francisco celebra missa na Basílica do Santuário Nacional de Nossa Senhora Aparecida em 24 de julho de 2013

Em julho de 2013, quatro meses depois de surpreender o mundo com a eleição para suceder Bento 16 (1927-2022), Francisco retornaria a Aparecida.

Em sua primeira viagem para fora da Itália como sumo pontífice, escolheu o Brasil.

Foi ao Rio de Janeiro, onde participou da Jornada Mundial da Juventude, e a Aparecida, onde celebrou uma missa no pátio externo da basílica dedicada à padroeira do Brasil.

A viagem antecipou temas de seu pontificado, como a postura pastoral de acolher as minorias historicamente excluídas pelo catolicismo.

No voo de volta ao Vaticano, concedeu uma então incomum entrevista coletiva espontânea a bordo do avião — prática que depois seria recorrente.

Respondendo a um jornalista, disse que ser homossexual não deve ser entendido como pecador, mas os atos sim.

"Se uma pessoa é gay e busca a Deus, quem sou eu para julgá-la?", disse Francisco, em uma frase que virou um dos marcos de seu papado.

Francisco foi o terceiro papa que visitou o Brasil. Seu antecessor, Bento, esteve no país uma vez, em 2007. João Paulo 2º esteve no país em três ocasiões: 1980, 1991 e 1997.

Papa discursa, com microfone na mão, dentro de avião

Crédito,Getty Images

Legenda da foto,Papa Francisco deu entrevista à imprensa a bordo do voo de volta do Brasil à Itália em 2013. Na ocasião, disse que ser homossexual não deve ser entendido como pecado

Santos de casa

Em seu período no comando do Vaticano, Francisco nomeou mais de 140 cardeais de países fora da Europa e deixa a Igreja Católica com uma perspectiva muito mais global do que aquela que ele herdou.

E o olhar de Francisco para o Brasil também passou pelas canonizações.

Antes dele, o Brasil tinha apenas dois santos canonizados, além de outros três com certa ligação com o país. Francisco canonizou, individual ou coletivamente, 32 personalidades brasileiras.

Em 2014, reconheceu como santo um dos fundadores de São Paulo, o padre jesuíta José de Anchieta (1534-1597).

Em 2017, canonizou coletivamente o grupo conhecido como "mártires de Cunhaú e Uruaçu", 30 pessoas mortas em 1645 durante as invasões holandesas ao nordeste do Brasil colonial.

Mas a mais emblemática das canonizações brasileiras de Francisco foi a da baiana Maria Rita de Souza Brito Lopes Pontes, conhecida como Irmã Dulce dos Pobres (1914-1992). Ela passou a ser considerada santa em outubro de 2019, canonizada em missa realizada no Vaticano.

Diversas autoridades brasileiras participaram do evento. O então presidente do Brasil, Jair Bolsonaro, crítico de Francisco, não foi — delegou a missão ao seu então vice, Hamilton Mourão.

Ilustração mostra Irmã Dulce

Crédito,Godong/Universal Images Group via Getty Images

Legenda da foto,A mais emblemática das canonizações brasileiras de Francisco foi a da baiana Maria Rita de Souza Brito Lopes Pontes, conhecida como Irmã Dulce dos Pobres (1914-1992

Antes de Francisco, que foi o maior canonizador da Igreja Católica, o país tinha poucos nomes nos altares.

A primeira personalidade brasileira a ser considerada santa foi a religiosa Madre Paulina, como era conhecida a italiana que viveu em Santa Catarina e em São Paulo Amabile Lucia Visintainer (1865-1942). Ela foi canonizada em 2002 por João Paulo 2º.

Antes, o mesmo papa havia canonizado os chamados "mártires do Rio Grande do Sul", três missionários jesuítas — um paraguaio e dois espanhóis — que foram mortos no sul do Brasil.

Nascido mesmo no Brasil, o primeiro santo foi Frei Galvão, o franciscano Antonio de Sant'Anna Galvão (1739-1822). Ele foi canonizado por Bento 16 em 2007.

Lula e Dilma

Na política brasileira, Francisco não foi alheio.

Em 2013, foi recebido pela então presidente Dilma Rousseff — que o havia visitado em março daquele ano, logo que ele tomou posse, para cumprimentá-lo como novo sumo pontífice.

Três dias depois do impeachment que destituiu Dilma Rousseff do poder, em 2016, o papa foi de surpresa à inauguração de um monumento dedicado à Nossa Senhora Aparecida nos jardins do Vaticano.

Na ocasião, comentou que pretendia voltar a Aparecida em 2017 para celebrar os 300 anos do achado da imagem original, mas que diante do cenário não sabia se seria possível retornar — ele realmente não voltaria.

No mesmo evento, Francisco rezou para que a santa "continue a cuidar de todo o Brasil, todo o povo brasileiro, neste momento triste" — a frase foi entendida como uma alusão à conjuntura política de então.

Em 2024, como presidente do Novo Banco de Desenvolvimento, a ex-presidente Dilma Rousseff visitou Francisco no Vaticano.

Papa Francisco foi recebido pela presidente brasileira Dilma Rousseff ao pousar no Rio de Janeiro, em 22 de julho de 2013

Crédito,YASUYOSHI CHIBA/AFP via Getty Images

Legenda da foto,Papa Francisco foi recebido pela presidente brasileira Dilma Rousseff ao pousar no Rio de Janeiro, em 22 de julho de 2013

O atual presidente, Luiz Inácio Lula da Silva, e Francisco também já se encontraram algumas vezes. Em 2024, por exemplo, ele se encontraram na cúpula do G7, na Itália.

Quando Lula esteve preso, entre 2018 e 2019, eles trocaram cartas. Em uma delas, o sumo pontífice escreveu a Lula que "o bem vencerá o mal, a verdade vencerá a mentira e a salvação vencerá a condenação".

Para o sociólogo Francisco Borba Ribeiro Neto, ex-coordenador do Núcleo Fé e Cultura da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e editor do jornal O São Paulo, da Arquidiocese de São Paulo, é preciso analisar com cuidado essa relação.

"Fora do Brasil, Lula sempre foi reconhecido como grande líder popular e promotor da justiça social", diz à BBC News Brasil.

"No cenário internacional, o PT foi muito mais eficiente em apresentar sua condenação como perseguição política do que seus opositores foram eficientes em mostrá-lo como um populista corrupto. Francisco seguiu essa tendência internacional."

Papa Francisco cumprimenta Lula, ambos sorriem

Crédito,Vatican Media via Vatican Pool/Getty Images

Legenda da foto,Lula e o Papa Francisco no Vaticano em 2023; eles se encontraram em diferentes ocasiões

No ambiente polarizado no Brasil, essa postura incensou uma legião de brasileiros "opositores" de Francisco. "Nesse contexto, enquanto o PT se esforçava cada vez mais por estreitar os laços do partido e de seu presidente preso com o papa, a direita bolsonarista insistia cada vez mais em se distanciar das posições do papa e criticá-lo", diz Ribeiro Neto.

O teólogo e historiador Gerson Leite de Moraes, professor na Universidade Presbiteriana Mackenzie diz que a aproximação de Francisco "a políticos como Lula evidencia afinidades gigantes".

"Ambos emergiram de contextos autoritários. Francisco talvez mais alinhado com o status quo, mas ao mesmo tempo percebendo que, como pastor de almas, precisava fazer alguma coisa pelos necessitados. E Lula também é esse sujeito, fruto do contexto de uma ditadura militar, lutando pelos mais pobres."

"É importante dizer que o PT é fruto de um esforço da Igreja na América Latina [católicos ligados à Teologia da Libertação estão entre os fundadores do partido, em 1980, ao lado de sindicalistas, intelectuais, artistas e militantes contrários ao regime militar]. Por isso que há afinidades", diz Moraes. "Latinos se olham e se entendem na sua dor, nas suas histórias, nas suas lutas. Por isso Francisco representou toda a América Latina."

Amazônia

Em 2019, Francisco trouxe o maior patrimônio natural do Brasil para o centro do debate no Vaticano.

Foi quando ocorreu o Sínodo dos Bispos sobre a Amazônia, reflexo das preocupações ambientais e sociais de Francisco que, àquela altura, já estavam bastante claras.

Ficaram mais evidentes principalmente depois da publicação da primeira e única encíclica (carta do papa) da história da Igreja a ter como tema principal o meio ambiente, a Laudato Si'. O papa inclusive contou com a consultoria de pelo menos dois brasileiros, o teólogo Leonardo Boff e o cientista Carlos Nobre.

Entre as decisões tomadas a partir do sínodo esteve a criação de um organismo da Igreja para cuidar especificamente da Amazônia.

Para comandar a Conferência Eclesial da Amazônia, Francisco escolheu o cardeal brasileiro Cláudio Hummes (1934-2022), seu amigo pessoal.

No Brasil, o sínodo foi um ingrediente a mais no conturbado contexto político. "Ao invés de procurar pontos de consenso, mesmo que puramente demagógicos, o governo [então sob a presidência de Jair Bolsonaro] tentou condenar toda a ação da Igreja na região como obra de comunistas", diz Ribeiro Neto. "A esquerda progressista procurando cada vez mais se aproximar do papado, a direita conservadora se distanciando e atacando-o cada vez mais... O resultado só podia ser uma identificação cada vez maior entre o papa e Lula."

Em 2022, o papa convidou o engenheiro florestal brasileiro Virgílio Viana, superintendente geral da Fundação Amazônia Sustentável para ser um dos consultores permanentes de seu gabinete sobre questões relacionadas a mudanças climáticas. Ele se tornou o primeiro brasileiro a integrar a Pontifícia Academia de Ciências Sociais do Vaticano.

A pauta ecológica seguiu em evidência durante todo o pontificado. Em maio de 2024, por exemplo, Francisco recebeu no Vaticano um grupo de lideranças indígenas brasileiras, entre eles o cacique Raoni, líder do povo Kayapó.

Para o vaticanista Domingues, a questão da Amazônia é um dos principais legados do pontificado do argentino. "Embora com efeitos limitados dos pontos de vista político e social, houve uma grande evolução na forma como a Igreja da Amazônia se organiza hoje, com uma série de iniciativas e mais consciência", diz.

Ele entende que as comunidades católicas de lá são hoje "mais ouvidas fora da região".

"A Igreja da Amazônia virou uma referência em muitas coisas. Quando se tem de refletir sobre alguns temas complicados, vão buscar na realidade amazônica alguns exemplos de como gerenciar as coisas de outra forma", comenta o vaticanista.

Os desafios na região são grandes para a Igreja de forma institucional.

A região sofre com a falta crônica de padres e, com o avanço de missões evangélicas, tem sido fonte de preocupação para a Igreja Católica. Tanto que no próprio sínodo convocado por Francisco, como lembra Domingues, a ideia de permitir a ordenação, como padres, de homens casados foi posta à mesa — caso fosse aprovada, seria implementada prioritariamente na Amazônia.

Leia aqui a reportagem especial da BBC News Brasil sobre a escassez de sacerdotes católicos na região da Amazônia.

Preocupações com o Brasil

Um homem segura uma bandeira do papa Francisco dentro da Catedral Metropolitana antes da chegada do papa Francisco em 22 de julho de 2013 no Rio de Janeiro, Brasil

Crédito,Mario Tama/Getty Images

Legenda da foto,Um fiel segura bandeira do papa Francisco dentro da Catedral Metropolitana antes da chegada do papa Francisco em 22 de julho de 2013 no Rio de Janeiro

Sobretudo em momentos críticos, o Brasil não foi esquecido por Francisco, com menções recorrentes em suas mensagens depois das missas dominicais na Praça São Pedro.

Nas eleições presidenciais de 2022, quando Lula derrotou Bolsonaro nas urnas, Francisco rezou para que o país ficasse "livre do ódio e da intolerância".

Também nunca deixou de fazer referências a Nossa Senhora Aparecida no dia dedicado a ela, 12 de outubro.

"Fica como um legado para o Brasil a ideia de que o cristianismo ainda possui relevância. É um cristianismo que precisa continuar olhando para os mais necessitados e ainda tem coisas a dizer sobre as questões ambientais, as mudanças climáticas, o lucro desenfreado dos capitalistas", diz o historiador Moraes. "Francisco deixa essa mensagem e o grande legado dele é ter realizado o pontificado com o espírito latino-americano."

Esse espírito tem suas bases em uma visão social da Igreja, a mesma que se tornou muito própria do contexto latino-americano a partir do fim dos anos 1960 e ao longo dos anos 1970: a Teologia da Libertação, abordagem teológica que parte do pressuposto de que os oprimidos precisam ser libertados de suas injustas condições econômicas, políticas e sociais.

"Isso [fez de Francisco alguém que] agradou alguns e desagradou outros. Não sei em quanto tempo teremos outra experiência assim. Mas quando fecharmos esta porta, fecha-se uma parte importante da história", comenta Moraes.

"A grande lição é que, como latino-americanos, temos muita coisa para oferecer ao mundo, uma visão de mundo, de gente que nasceu em um continente fruto de exploração, de escravidão e de muita violência. Gente que ainda sofre por todas essas coisas, precisa rever a sua história, aprender com sua história e tentar superar tudo isso para continuar existindo", acrescenta.

"Este é o grande legado de Francisco para a igreja brasileira. E para a igreja latino-americana como um todo", pontua.

Ribeiro Neto acredita que, apesar "das muitas diferenças de postura e concepção eclesial", João Paulo 2º (1920-2005) e Francisco deixam um legado semelhante ao Brasil. E isto passa pelo carisma de ambos.

"A despeito das polêmicas e das apropriações ideológicas, encontraram entre 'gregos e troianos' pessoas que os amaram muito e sentiram uma real proximidade com eles", diz o sociólogo.

"Do ponto de vista mais militante e posicionado programaticamente, Francisco trouxe de volta um espírito de compromisso social que era comum na Teologia da Libertação, mas estava se perdendo", observa. "Este posicionamento, contudo, passará agora [com a morte de Francisco] pela dura prova da sobrevivência sem seu patrono. Podemos esperar que o próximo papa manterá a linha de Francisco em termos sociopolíticos, mas não sabemos como a mudança de papado impactará nessa militância."

Em 2024, quando o Brasil sediava o encontro dos líderes do chamado G20, ele cobrou ações concretas para a melhor distribuição de recursos.

Em artigo publicado na época, o padre Marcus Brito de Macedo, doutor em relações internacionais e professor na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro lembra que Francisco advertiu "que a destruição ambiental afeta particularmente os mais pobres e marginalizados" e exortou "as nações a assumirem a responsabilidade coletiva pelo cuidado com a 'casa comum', enfatizando a urgência de uma transição para fontes de energia renováveis e políticas de desenvolvimento sustentável".

Padre Júlio Lancellotti

Durante a pandemia de covid, Francisco expressou preocupação especial pelo número elevado de vítimas que vinha sendo registrado no território brasileiro. Costumava telefonar para bispos e padres para saber da situação.

Um desses religiosos foi o padre Júlio Lancellotti, conhecido pelo trabalho pastoral e assistencial que realiza junto aos pobres, sem-teto e dependentes químicos da região da Cracolândia, no centro de São Paulo. Naquele contexto de pandemia, ele seguiu atuando nas ruas. E, diante de um crescimento de discursos de ódio, foi ameaçado de forma recorrente por aqueles que criticavam seu trabalho.

Em outubro de 2020, Francisco surpreendeu o sacerdote com um telefonema, perguntando a ele sobre as dificuldades e recomendando que não desistisse. No dia seguinte, o próprio papa contou isso em discurso no Vaticano.

"Ontem, consegui ligar para um padre idoso, missionário da juventude no Brasil, mas sempre trabalhando com os excluídos, com os pobres. E vive essa velhice em paz: consumiu a sua vida com os pobres. Esta é a nossa Mãe Igreja, este é o mensageiro de Deus", afirmou.

Cachaça e carnaval

Papa acena a fiéis no Rio de Janeiro durante viagem ao Brasil em 2013

Crédito,Buda Mendes/Getty Images

Legenda da foto,Papa acena a fiéis no Rio de Janeiro durante viagem ao Brasil em 2013

Mas nem só de seriedade foi construída a relação próxima entre Francisco e o Brasil.

O quase sempre sorridente papa chegou a ser homenageado por um grupo de ilustradores, cartunistas e chargistas brasileiros em 2014. Primeiro, com uma exposição em São Paulo, intitulada O Papa Sorriu. Depois, as 38 charges foram reunidas em livro e o próprio cardeal arcebispo de São Paulo, Odilo Pedro Scherer, entregou em mãos a Francisco — que recebeu o presente com uma gargalhada.

Nas costumeiras interações com os fiéis durante os eventos realizados no Vaticano, os brasileiros ganharam a atenção especial de Francisco, com um tom leve e descontraído. Em 2021, um padre paraibano lhe pediu que rezasse pelos conterrâneos. "Vocês não têm salvação. É muita cachaça e pouca oração", brincou o argentino.

Em 2023, quando completou dez anos de pontificado, deu uma longa entrevista a um site argentino e novamente brincou com a bebida típica nacional. Ao responder a pergunta de por que sempre costumava sorrir quando mencionava o Brasil, ele reforçou o estereótipo festeiro do brasileiro.

"No Brasil, o carnaval começa já no início do ano [e vai] até a Sexta-feira Santa. Sempre penso no Brasil, naquela música [em que] eles dizem que cachaça é água, é isso que o brasileiro tem de riqueza", afirmou Francisco.

Na mesma entrevista, ele elogiou o presidente Lula, dizendo que ele é "um homem religioso, [cuja fé] nasce daquela religiosidade que se nutria na família, eu diria que é uma religiosidade popular elementar".

Ele criticou o desmatamento no Brasil, lembrando que o país, com suas dimensões continentais, é "uma explosão de riqueza" e a "segurança do futuro".

"Por isso mesmo estão tão presos na exploração dos recursos naturais. O desmatamento é impressionante no Brasil, é escandaloso. Eles estão tirando a riqueza até mesmo dos pulmões da humanidade", ressaltou.

Vinicius de Moraes

Em sua autobiografia Esperança, um dos capítulos se chama 'A Vida é a Arte do Encontro', em que ele defende a importância de que cada um consiga sair de si mesmo, compartilhar com os outros e também receber dos outros.

E cita o brasileiro Vinícius de Moraes (1913-1980).

"O poeta e compositor brasileiro Vinícius de Moraes escreveu: 'A vida é a arte do encontro embora haja tanto desencontro pela vida'. Esses versos fazem parte de um samba, um gênero musical que, aliás, surge justamente do encontro de culturas, diferenças e instrumentos: os ameríndios da Bahia, os afro‐brasileiros, e mais tarde os ciganos, os poloneses e muitos, muitos outros imigrantes, que juntos formavam a classe trabalhadora na dura realidade dos canteiros de obras", escreveu.

Cariocas 'roubaram meu coração'

Em 2014, recebeu no Vaticano os membros do comitê que organizou a Jornada Mundial da Juventude, o motivo de sua primeira viagem internacional ter sido ao Brasil.

"Quando cheguei ao Brasil, no meu primeiro discurso oficial, disse que queria ingressar pelo portal do imenso coração dos brasileiros, pedindo licença para bater delicadamente à sua porta e passar a semana com o povo brasileiro", declarou ele, recordando-se. "Porém, ao término daquela semana, voltando para Roma, cheio de saudades, dei-me conta de que os cariocas são uns ladrões!"

"Sim, ladrões, pois roubaram o meu coração!", exclamou ele. "Aproveito a presença de vocês, hoje, para agradecer-lhes por este roubo: muito obrigado por terem me contagiado com o entusiasmo de vocês lá no Rio de Janeiro e por me ajudarem, hoje, a matar as saudades do Brasil".

Quando voltava a Roma dessa viagem ao Brasil, em julho de 2013, brincou com jornalistas brasileiros que lamentaram a nacionalidade argentina dele. "Vocês não se contentam com nada. Vocês querem tudo. Vocês já têm um Deus brasileiro e agora queriam um papa brasileiro também?", disse Francisco.