Esportes
A seleção que ‘presenteou’ a ditadura com uma taça
Por trás do deslumbre com o futebol de Pelé, Tostão e companhia, o time tricampeão do mundo na Copa de 1970 serviu como instrumento de estímulo ao patriotismo para o regime militar
Uma semana depois de sua demissão, a Loteria Esportiva foi regulamentada no Brasil. Por meio das receitas angariadas com o jogo de apostas chancelado pelo Governo militar e a Caixa Econômica Federal, a Confederação Brasileira de Desportos (CBD) —atual CBF—, então sob o comando de João Havelange, turbinou seus cofres. Rapidamente, os lucros da loteria se tornaram a principal fonte de renda da entidade, que pode investir alto na preparação brasileira para a Copa.
As condições físicas de alguns jogadores como Pelé, à beira dos 30 anos, preocupavam. Além disso, havia o fator altitude no México, sede do Mundial. Com mais de um mês de antecedência para a estreia, toda a delegação viajou à cidade de Guanajuato, próxima a Guadalajara, onde a seleção disputaria a fase de grupos, e se concentrou a mais de 2.000 metros com intuito de aclimatar o plantel ao ar rarefeito. Os trabalhos foram coordenados por uma comissão técnica militarizada, liderada pelo preparador Cláudio Coutinho, um capitão do Exército que, ainda na década de 70, viraria técnico da equipe.
Designado chefe da delegação, o brigadeiro reformado Jerônimo Bastos, diretor de esportes da CBD, nomeou o major Roberto Câmara Lima Ypiranga de Guaranys como encarregado da segurança. Apontado pela Comissão Nacional da Verdade como um dos torturadores do regime militar, Guaranys era homem de confiança do presidente Médici, a quem reportava diretamente sobre o dia a dia da seleção. O ditador gostava de futebol e, mais do que isso, enxergava na primeira Copa que seria transmitida ao vivo pela TV no país a oportunidade de ofuscar o endurecimento da repressão em seu início de Governo. Apropriando-se de campanhas ufanistas, sobretudo com o jingle “Pra frente Brasil”, Médici colou sua imagem no escrete nacional ao evocar o patriotismo de torcer pela seleção. Não satisfeito, forçou ingerências até mesmo no time.
Fã do futebol de Dadá Maravilha, fez lobby público pela convocação do centroavante à Copa, episódio que ajudou a selar a queda de João Saldanha. Já sob a batuta de Zagallo, que levou Dadá ao Mundial, a seleção cumpriu a rigorosa cartilha de preparação física e saiu invicta do torneio, marcando 63% de seus gols no segundo tempo. Dois deles pela semifinal contra os uruguaios, que reclamaram da mudança repentina da sede da partida, inicialmente prevista para a Cidade do México, mas transferida na véspera para Guadalajara, a 1.560 metros acima do nível do mar, onde o Brasil havia mandado todos os jogos até então. O único confronto na capital mexicana, 2.250 metros de altitude, foi diante da Itália, na final. A goleada por 4 a 1 rendeu a terceira conquista de Copa à seleção, que retornaria ao país com status, pelo menos para o Governo, de embaixadora informal da ditadura.
“O que interessava para nós era nossa carreira”
Autor do último gol brasileiro no Mundial, um petardo de trivela que apagou as esperanças dos italianos, Carlos Alberto Torres era o capitão da equipe. Foi ele o responsável por entregar a taça a Médici, na tradicional recepção aos campeões mundiais, em Brasília. Depois do encontro e de um almoço no Palácio da Alvorada, em que cada membro da delegação ganhou de presente do Governo um prêmio depositado em caderneta de poupança, alguns jogadores desenvolveram relação de intimidade com o ditador, caso do lateral-direito titular, que, inclusive, receberia um cartão de Natal do presidente no ano do tricampeonato.
“Eu servi à seleção brasileira”, afirmou Carlos Alberto, em entrevista ao programa Roda Viva, em 1988, ao negar deferência ao regime militar. “Naquela época, eu ainda era muito jovem e só queria saber de futebol.” O jogador já havia pendurado as chuteiras e se preparava para sair candidato a vereador pelo PDT, de Leonel Brizola, no Rio de Janeiro. Em meio à redemocratização do país, seguia rechaçando que o gesto de levantar o troféu com Médici, cujo Governo ditatorial seria apontado como executor de quase uma centena de opositores, pudesse representar endosso a perseguições, torturas e o autoritarismo.
“Eu não queria saber se tinha ditadura, dos militares que estavam no poder. A gente estava jogando futebol profissional, nem se preocupava com essa coisa”, contou o lateral que ficou conhecido como Capita e morreu em 2016. “A nossa preocupação era estar bem fisicamente, porque, tecnicamente, nós sabíamos que, desde que bem preparados para jogar na altitude mexicana, nós ganharíamos a Copa do Mundo sem pensar em ditadura. O que interessava para nós era nossa carreira, o orgulho profissional de ganhar uma Copa do Mundo. Isso era o que interessava.”
Em coluna publicada em 2014, o ex-atacante Tostão argumentou na mesma linha de Carlos Alberto Torres, explicando que os jogadores da seleção só tomaram conhecimento dos crimes da ditadura após os anos de chumbo. “Os atletas viveram o Mundial com intensidade. Eles e a população desconheciam também as atrocidades que ocorriam no país”, escreveu. “Isso tem sido revelado com o tempo. Eu me informava com meus irmãos mais velhos, politizados e, como eu, contrários à ditadura.” Antes de embarcar para o México, Tostão deu uma ácida entrevista ao semanário O Pasquim, criticando a falta de liberdade de expressão no país. Na mesma semana da publicação, foi aconselhado a não falar mais sobre política. “Havia uma paranoia coletiva, um medo de ser denunciado como subversivo e de ser preso.”
Para Ronaldo Helal, sociólogo do futebol e professor da UERJ, o clima de repressão no país, somado ao ambiente militarizado da própria seleção, inibia atletas de se envolver com questões alheias ao campo. “Realmente, alguns passaram a ter consciência do que significava a ditadura bem depois daquela Copa. Também não havia um jogador que se posicionava como Sócrates ou Reinaldo”, diz Helal. O sociólogo pondera que a instrumentalização do tricampeonato pelo regime militar precisa ser interpretada de acordo com o contexto da época, de promoção do nacionalismo pelo continente, e um Governo em franca escalada autoritária. “A seleção era vista como a pátria de chuteiras e houve uso político da vitória, mas, se o time não tivesse sido campeão, os rumos do regime e do país dificilmente teriam mudado.”
Maior atleta brasileiro da história, Pelé também posou sorridente para fotos com Médici, em Brasília. “Cumprimentar um presidente era um gesto pessoal. Isso não significava apoiar a ditadura”, afirma o ex-camisa 10, eleito o melhor jogador da Copa. No mesmo ano, o Rei ainda encabeçaria comitiva diplomática para representar o Governo militar na inauguração de uma praça em Guadalajara. Ele rejeita o estigma de garoto-propaganda do regime, lembrando ter estampado capa da revista Placar vestido com uma camisa em apoio às Diretas Já, em 1984, quando o país não vivia mais a atmosfera de medo imposta pelo AI-5.
Ao justificar a mudança de postura, Pelé, que já havia encerrado a carreira como jogador, reconheceu que tinha consciência do oportunismo dos ditadores. Porém, pelo status de astro mundial, se viu obrigado a fazer o jogo do poder. “É difícil evitar um presidente, por exemplo, como o [Ernesto] Geisel e o Médici. Indiretamente, é claro que era um uso [da minha imagem]. Mas eu era consciente. Eu cedia porque, na minha posição, você tem de fazer concessões.”