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O papa favorito dos ateus? Como influência de Francisco foi além do catolicismo
O caminho traçado por Francisco foi bem diferente daquele criado por seu antecessor, o papa Bento 16, que chegou a associar ateus aos nazistas

Em um dos vídeos emocionantes que agora estão marcados na história do seu pontificado, o papa Francisco consola um menino de 12 anos angustiado ao pensar sobre a vida pós-morte de seu pai, um homem ateu.
"Deus tem o coração de um pai. E diante de um pai, não crente, que foi capaz de batizar seus filhos e dar essa bravura aos seus filhos, vocês acham que Deus seria capaz de deixá-lo longe?", disse então Francisco, morto na segunda-feira (21/4).
O episódio em 2018 seria apenas um dos vários em que o papa deu mostras de que encarava o ateísmo (ou a negação da existência de um Deus) com certa naturalidade — ou ao menos longe de uma visão mais condenatória da Igreja em relação aos não crentes.
O caminho traçado por Francisco foi bem diferente daquele criado por seu antecessor, o papa Bento 16, que chegou a associar ateus aos nazistas.
Numa missa na Escócia em 2010, ao relembrar a Segunda Guerra Mundial, o então papa disse que a tirania nazista foi um "extremismo ateísta do século 20", ressaltando que a falta da crença em Deus leva "em última instância a uma visão truncada do homem e da sociedade".
Naquele mesmo ano de 2010, Francisco, ainda como Jorge Mario Bergoglio, arcebispo de Buenos Aires, dizia no recém-lançado livro Sobre o Céu e a Terra que ele não perguntava se uma pessoa acreditava ou não em Deus.
O importante, dizia, era saber se seu interlocutor "fazia algo pelos demais" — uma ideia que ganharia manchetes pelo mundo anos mais tarde quando sugeriu em declarações que era melhor uma pessoa ser ateia do que ser uma católica que ia à missa, mas nutria ódio pelos outros.

Crédito,ANDREAS SOLARO/AFP via Getty Images
A visão distinta de Francisco, que propôs uma Igreja mais aberta e em diálogo com vários setores da sociedade, fez o papa ser visto ao longo dos anos positivamente pelos não católicos, segundo pesquisas feita principalmente nos Estados Unidos.
Na última pesquisa publicada pelo centro de pesquisas americano Pew Research Center, que acompanhou ao longo dos anos a popularidade de Francisco nos EUA, 56% das pessoas sem afiliação religiosa tinham uma visão favorável do papa, uma aprovação maior, inclusive, do que entre os protestantes (51%).
Esse grupo inclui ateus, agnósticos (aqueles que acreditam não ser possível determinar a existência ou inexistência de Deus) e os que não se incluíam nesses grupos, mas se consideravam sem fé.
Assim que o papa assumiu o Vaticano, em 2013, a visão positiva entre essa parcela era apenas de 39% — e o máximo da popularidade dele foi em 2017, quando 71% dos sem filiação religiosa responderam que tinham uma visão favorável de Francisco, segundo o Pew.
Numa pesquisa global de 2015, da WIN/Gallup International, 51% dos ateus e agnósticos enxergavam o papa de forma positiva.
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"Não era do tipo que dizia só eu tenho a verdade e a salvação. Ele sabia prezar o que o outro tinha de bom", reflete o padre, presidente das Faculdades Católicas, instituição mantenedora da PUC-Rio.
Entre essas demonstrações, segundo o padre, estão a encíclica Laudato si, publicada em 2015, em que papa Francisco chamou a Terra de "Casa Comum" (ou seja, o planeta de todos, e não apenas de poucos), além do documento em favor da paz assinado junto ao líder muçulmano dos Emirados Árabes.
O antropólogo e historiador Diego Omar da Silveira, autor de artigos sobre ateísmo no Brasil, avalia que essa aprovação ocorre porque os ateus formam um grupo em geral progressista, que não é preso a ideias da tradição.
"A Igreja estava num momento complicado, saindo papado de Bento 16 que retornou à tradição, à ideia de exclusivismo da igreja enquanto centro de referência moral", diz Silveira, que é coordenador do curso de Ciências da Religião na Universidade do Estado do Amazonas.
O papa Francisco veio, segundo o pesquisador, com a missão de se "relacionar melhor com sociedade civil, se colocando no mundo com outras referências que não só a Igreja. Isso foi visto com bons olhos pelo público não religioso".
À frente do Vaticano por 12 anos, Francisco tornou o catolicismo mais aberto, por exemplo, aos homossexuais, ao autorizar que casais do mesmo sexo recebam a benção de padres, a divorciados, e adotou posicionamentos firmes em questões globais, como o repúdio à concentração de riqueza e à exclusão de imigrantes.
"Embora não tenha encaminhado essas mudanças de dogmas de fato, pelo menos ele pautou as discussões e as tratou com certa leveza", avalia Silveira.
Não só como líder espiritual do mundo católico, Francisco, enquanto papa, também teve papel diplomático e de chefe de Estado do Vaticano, que tem relações plenas com 184 países e com a União Europeia.
Além disso, foi um participante formal dos assuntos internacionais, como em questões sobre imigração e direitos humanos, num mundo que caminhou nos últimos anos em direção a políticos da direita radical, normalmente contra essas pautas.
Recentemente, por exemplo, o papa reagiu publicamente e chamou de "desgraça" os planos de Trump de deportar imigrantes.
A Santa Sé também tem status de Observador Permanente nas Nações Unidas (ONU), o que lhe garante assento em uma das mesas de decisão mais influentes do planeta.
Papa Francisco foi crucial, por exemplo, na mediação do acordo que reestabeleceu relações diplomáticas entre os EUA e Cuba, em 2014 — um processo que seria desfeito por Trump.
O então presidente cubano, Raúl Castro, ele próprio um ateu, chegou a dizer: "Se o papa continuar falando assim, mais cedo ou mais tarde, voltarei a rezar e retornarei à Igreja Católica".
Francisco também costurou um papel importante no processo de paz entre o governo colombiano e as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc), além de falar com frequência contra guerras como a da Ucrânia e em Gaza.

Crédito,REUTERS/Luisa Gonzalez
Ateu, mas com homenagem ao papa
Ateu há 10 anos, o gaúcho Léo Kaufmann, de 39 anos, diz que todas essas sinalizações o fizeram admirar o papa, mesmo sem acreditar em Deus ou concordar com ensinamentos da Igreja Católica.
Kaufmann, um homem gay, casado, que trabalha organizando eventos corporativos de recursos humanos, fez questão de fazer um post nas suas redes sociais após a morte de Francisco, ressaltando a defesa do papa de que "caráter não tem religião".
"O papa foi alguém disposto a acolher e não a usar as escritas como forma de separar as pessoas", diz Kaufmann, para quem o papa enfrentou os dogmas e seguiu mais estritamente os ensinamentos creditados a Jesus Cristo, como a humildade, do que seus antecessores.
Para ele, o enfrentamento do papa Francisco em relação ao tradicionalismo da igreja em temas como acolhimento a pessoas LGBTQIA+, imigrantes, divorciados ou mulheres de certa forma cria uma afinidade com o que os ateus defendem.
Dentro do catolicismo, o papa Francisco sinalizou uma mudança de tom em relação a diversas questões sociais.
"Todos são convidados à Igreja, inclusive pessoas divorciadas, pessoas homossexuais, pessoas transgênero", escreveu ele em sua autobiografia.
"Isso torna ele mais próximo das pessoas comuns da sociedade", diz Kaufmann.

Crédito,REUTERS/Yara Nardi
O gaúcho conta que chegou a frequentar um seminário católico para fugir da ideia de se casar e, assim, se tornar um "orgulho para a família".
Ele ainda buscou refúgio em igrejas evangélicas, centros espíritas e terreiros de umbanda, mas se encontrou enquanto ateu ao perceber que estava sempre procurando "onde está a falha" nas religiões, sem conseguir acreditar ou ser tocado pela fé.
Mesmo distante da igreja, Kaufmann seguiu reconhecendo a figura do papa como importante.
"Para muita gente ainda, por mais que eu não acredite nisso, o que o papa fala ainda é a baliza moral e de comportamento. Quando ele fala, o mundo olha", explica,
"E ele me mostrou que é possível a Igreja Católica mudar. Grandes maldades já foram feitas em nome de Deus, mas também muitas coisas boas foram feitas."
Uma pesquisa do Instituto Ipsos de 2023 apontou que 89% dos brasileiros dizem acreditar em Deus, o maior índice entre 26 países pesquisados. Por outro lado, o segmento populacional de ateus, agnósticos e sem religião é o que mais tem crescido nos últimos anos no Brasil, segundo pesquisas do instituto Datafolha.
Além dos ateus, o papa também manteve um tom amistoso em relação a outras fés, mantendo encontros com líderes de diversas religiões e pedindo respeito aos que pensavam diferente.
Numa das imagens marcantes de seu papado, na primavera de 2016, ele visitou um centro para requerentes de asilo nos arredores de Roma e lavou e beijou os pés de refugiados, entre os quais havia muçulmanos, hindus e cristãos coptas, da Igreja Ortodoxa no Egito.
O padre Luís Corrêa Lima, da PUC-Rio, explica que desde os anos 1960, com o Concílio Vaticano 2º, a Igreja Católica tem enxergado "verdade e santidade em segmentos não católicos", algo que foi seguido por Francisco
"O mais importante não é que se aumente o número de católicos. O importante é que haja uma fidelidade ao evangelho e aos valores essenciais", defende Lima.
Ateus x Igreja
A maioria das histórias sobre o ateísmo costuma apontar uma origem nos filósofos gregos e romanos Epicuro, Demócrito e Lucrécio, ao defenderem ideias como a noção de que não há vida após a morte e que a religião era uma atividade humana.
Mas a ideia do que é ser ateu mudou ao longo dos séculos.
O historiador Diego Omar da Silveira explica que os próprios cristãos já foram considerados "ateus" no Império Romano, já que não cultuavam os mesmos deuses que os romanos.
Na Idade Moderna, explica Silveira, a Igreja tratou ateus com grande repressão, inclusive com a inquisição perseguindo aqueles "com traços de ateísmo — ou seja, aqueles que desconfiassem de estruturas religiosas".
Naqueles tempos, o poder da igreja estava sempre atrelado ao Estado e efetivamente conseguia reprimir qualquer pessoa que fosse de encontro às suas ideias.

Crédito,Getty Images
No seculo 19, a relação muda um pouco, segundo o pesquisador, já que igreja passa a ter um poder mais simbólico do que repressivo, pois começa a se dissociar do poder estatal.
"Surge uma filosofia laica, senão ateia, que vai contestar aquilo que a igreja considerava verdade, baseada na ciência", diz o historiador.
Em meados do século 20, há mais diálogos entre religião e muitos pensadores ateus, continua Silveira. Um exemplo é o marxismo, que reconhecia afinidade com ensinamentos cristãos da antiguidade, como um movimento comunitário e igualitário, pregando partilha de bens e cuidado com os pobres.
Qual caminho a Igreja vai tomar a partir do papa que irá assumir no lugar de Francisco após a realização do conclave ainda é incerto.
Para o padre Luís Correa Lima, a marca de Francisco na Igreja Católica foi muito grande, incluindo a indicação de dois terços dos cardeais que escolherão o novo papa. Por isso, ele aposta numa continuação de seu legado.
Já o historiador Diego Omar da Silveira avalia que não há um caminho claro para o sucessor.
Ou seja, o escolhido pode levar adiante a ideia de diálogo com os que pensam diferente ou voltar a fechar mais igreja, "pautado na ideia de que a única fonte de verdade é a cristã".