Política
Por que o Brasil sempre abre a Assembleia Geral da ONU
Ainda conforme o livro, essa circunstância consolidou na diplomacia brasileira a percepção de que o discurso de abertura possui peso estratégico

A cena se repete ano após ano: o presidente do Brasil sobe à tribuna da Assembleia Geral das Nações Unidas e dá início ao mais importante debate diplomático global. Mas, afinal, por que cabe sempre ao Brasil o papel de iniciar o evento?
A resposta está menos em regras escritas e mais em tradição diplomática.
Segundo o livro O Brasil nas Nações Unidas, 1946-2011, publicado pela Fundação Alexandre de Gusmão no aniversário de 50 anos da ONU, a prática teria começado em 1949, em meio ao clima de confronto da Guerra Fria, justamente para evitar dar primazia aos Estados Unidos ou à União Soviética.
Desde então, tornou-se praxe: antes de abrir a lista de oradores, o secretário-geral envia uma nota à missão brasileira perguntando se o país deseja manter a tradição.
A resposta invariavelmente positiva mantém viva uma prática que "honra e distingue o Brasil", nas palavras da publicação.
Ainda conforme o livro, essa circunstância consolidou na diplomacia brasileira a percepção de que o discurso de abertura possui peso estratégico.
Segundo a publicação, o contrário da maioria das delegações, que costumam centrar-se em questões tópicas, o Brasil passou a usar esse espaço para fazer análises mais amplas da conjuntura internacional, projetando sua visão de mundo e defendendo temas estruturais, como o combate à fome, o desenvolvimento e a reforma de instituições multilaterais.
Mas o professor de relações internacionais Matias Spektor avalia que, neste ano, Lula deve direcionar suas palavras ao público doméstico.
"Eu antevejo que o Lula fará um discurso centrado na soberania, na importância do livre comércio, das instituições internacionais, ou seja, toda agenda que é uma agenda multilateralista, típica de país do sul global, com um tom que é crítico daquilo que o Trump vem fazendo", diz ele, que leciona na FGV (Fundação Getulio Vargas).
Tradição com 'raízes formais'
Segundo Lucas Leite, professor da Fundação Armando Alvares Penteado (Faap), essa tradição também tem raízes formais: "O Brasil foi muito importante na constituição da Carta da ONU e nas discussões para a criação da organização. O diplomata Oswaldo Aranha teve papel essencial na primeira Assembleia Geral, inclusive conduzindo o processo que levou à criação do Estado de Israel. Além disso, a diplomacia brasileira sempre foi respeitada como capaz de mediar conflitos e criar consensos, o que ajuda a explicar a continuidade dessa tradição".
O gesto também dialogava com o papel que o país buscava exercer no pós-guerra: uma voz ativa no multilateralismo, mesmo sem figurar entre as grandes potências vencedoras do conflito.
"Existe um argumento de que isso funcionou como uma espécie de prêmio de consolação, já que o Brasil não entrou como membro permanente do Conselho de Segurança, principalmente por resistência da União Soviética e de países europeus. Mas, mais do que isso, mostra a confiança que os países depositavam na diplomacia brasileira", complementa Leite.
Desde 1955, o Brasil passou a abrir de maneira constante o Debate Geral, seguido pelo país anfitrião, os Estados Unidos. O arranjo deu estabilidade ao protocolo: depois desses dois, a ordem dos discursos é definida por critérios como o nível da autoridade presente, equilíbrio geográfico e ordem de inscrição.
A tradição atravessou décadas, com raríssimas exceções motivadas por atrasos ou ajustes de agenda. Em 1983 e 1984, por exemplo, os EUA falaram antes do Brasil; em 2016, o segundo lugar coube ao Chade, porque o presidente americano não chegou a tempo.
Vitrine brasileira
Mais do que uma curiosidade protocolar, a abertura dos discursos na ONU dá ao Brasil uma visibilidade singular. É uma vitrine para projetar sua política externa, expor prioridades nacionais e marcar posição em temas globais diante de chefes de Estado, diplomatas e da imprensa internacional. "Essa tradição pode ser entendida como simbólica, sim, mas também como um elemento concreto de poder do Brasil", observa Leite.
O professor aponta que o país sempre defendeu a solução pacífica de controvérsias, o papel das instituições e o multilateralismo. "Nesse sentido, o simbolismo se traduz em prática: ser o primeiro a falar garante que o Brasil seja ouvido."
"Brinco às vezes dizendo que muitos não estão ali para ouvir o representante brasileiro, mas sim o americano, que fala logo depois. Mas como já estão sentados, o Brasil acaba tendo mais repercussão do que outros países, que falam em dias seguintes, em momentos de menor atenção", complementa Paulo Velasco.
É, portanto, segundo os especialistas, uma tradição que beneficia o país coloca o Brasil sob os holofotes. "Podemos dar recados, às vezes com maior contundência, às vezes menos, mas sempre em um espaço privilegiado", diz Velasco.
Ao longo das décadas, a diplomacia brasileira oscilou entre diferentes linhas: de uma lógica americanista, alinhada aos Estados Unidos, até uma postura mais globalista, promovendo autonomia e desenvolvimento dos países do Sul Global.
Segundo Leite, "essa 'pendulação' é visível nos discursos do Brasil na Assembleia Geral. Mesmo governos não alinhados à esquerda, como Temer, Fernando Henrique ou Sarney, repetiam linhas mestras: desenvolvimento, combate à pobreza, meio ambiente e democracia. Já a exceção foi o governo Bolsonaro, que adotou discurso populista e subserviente aos EUA, negando o multilateralismo".
Historicamente, defende Leite, os discursos brasileiros ajudam a definir o tom do debate, chamando atenção para fome, pobreza, reforma de instituições globais e missões de paz. "Simbolicamente e na prática, o Brasil representa uma ponte entre mundos: Ocidente e Oriente, Norte e Sul, autonomia e desenvolvimento".

Crédito,Stephani Spindel/EPA-EFE/REX/Shutterstock
O que esperar do discurso deste ano
O Brasil já abriu a Assembleia Geral da ONU em momentos de pressão internacional, mas nunca enfrentou uma situação de confronto direto tão evidente como agora, com os Estados Unidos.
"Na época do Bolsonaro, por exemplo, houve atritos sérios com a França de Emmanuel Macron em torno das queimadas na Amazônia. Mas, evidentemente, não se compara com a tensão que temos hoje com os Estados Unidos", observa Paulo Velasco, professor de política internacional da Uerj (Universidade do Estado do Rio de Janeiro).
A escalada começou ainda em julho: primeiro, Donald Trump classificou as acusações contra Jair Bolsonaro no Supremo Tribunal Federal como uma "caça às bruxas". Poucos dias depois, anunciou a sobretaxa de 50% sobre importações brasileiras. Lula, por sua vez, tem respondido com a defesa da soberania nacional.
Além disso, os EUA também anunciaram sanções ao ministro do STF Alexandre de Moraes e sua mulher no âmbito da Lei Global Magnitsky.
Para Velasco, o presidente deve aproveitar o púlpito em Nova York para reiterar "como tem feito" a defesa da democracia e da autodeterminação dos povos. "Deve dizer algo no sentido de que é inadmissível, em pleno século XXI, vermos ingerência externa sobre a soberania e o judiciário de países independentes. Seria um recado bastante indireto, mas direto ao mesmo tempo, a Donald Trump."
No restante do discurso, o especialista acredita que Lula deve manter a linha de temas tradicionais de sua trajetória internacional. "Ao longo de sua vida política, Lula tem repetido os mesmos pontos na ONU: combate à fome e à pobreza, defesa do desenvolvimento sustentável, crítica aos gastos excessivos com armas, e a busca por uma ordem internacional mais justa e menos assimétrica. Foi assim nos anos 2000, foi em 2023, e deve ser agora também."
Ainda que classifique o tom como "previsível", Velasco reforça que a mensagem é importante. Ele aponta, por exemplo, a necessidade de insistir no financiamento climático — pauta central para a COP30 — e de associar esse debate aos gastos militares em alta. "Se o mundo destina 5% do PIB em defesa, como alguns países da OTAN querem, sobra menos para combater a fome, enfrentar o aquecimento global e acelerar a transição energética."
Velasco também espera menções às guerras em curso, com destaque para Gaza. "Ele certamente vai voltar ao tema, porque é uma questão premente para o Brasil, pelas violações de direitos humanos. Não acredito que use novamente o termo 'genocídio', mas não deixará de citar Gaza."
Outro eixo deve ser a crítica ao protecionismo de Trump, contrastado com a defesa brasileira de princípios liberais. "É virar o jogo: mostrar que os Estados Unidos, que fundaram esse sistema no pós-Segunda Guerra, hoje são os que mais o ameaçam, ao questionar instituições multilaterais, a ONU, o livre comércio e as próprias regras que criaram."
Nesse cenário, conclui o professor, o Brasil chega a Nova York em posição firme. "Não vejo o país com o 'rabo entre as pernas'. Mesmo que alguns ministros não viajem, a delegação será relevante e o Brasil estará confortável para dar seu recado — como tantas vezes fez na Assembleia Geral da ONU."