Política

Falar mal do 'Gilmarpalooza' é bom para nós, diz Gilmar Mendes

O decano é um dos três ministros da Corte que se aposentarão nos próximos anos. Indicado pelo ex-presidente Fernando Henrique Cardoso (PSDB) em 2002, Mendes diz que fica até 2030 na STF

PEDRO RIBEIRO/DA EDITORIA/COM BBC 19/11/2025
Falar mal do 'Gilmarpalooza' é bom para nós, diz Gilmar Mendes
Às vésperas de completar 70 anos, Mendes diz estar em melhor forma do que quando tinha 40 | Estúdio Hertz - DF/BBC

"Eu acho graça". É como reage o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Gilmar Mendes diante do termo "Gilmarpalooza", apelido usado pela imprensa para se referir ao Fórum de Lisboa, organizado pelo instituto do qual ele é sócio-fundador.

O encontro, que acontece todo ano na capital portuguesa e foi idealizado pelo Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa (IDP), criado por Mendes, reúne autoridades, ministros da corte, políticos e empresários, o que, para o ministro, denota o sucesso do evento.

Uma das críticas ao "Gilmarpalooza" é sobre a falta de transparência em relação aos custos, além do fato de abarcar empresários ou representantes de empresas que, em alguns casos, estão com processos tramitando no STF.

Sobre os custos, o ministro afirmou que as passagens e hospedagens são bancadas pelos organizadores e também pelos próprios convidados. "As próprias pessoas hoje vão e pagam estadia e pagam a própria passagem. As pessoas querem participar", afirmou, em entrevista à BBC News Brasil.

Já sobre os convidados e painelistas, que, neste ano, participaram de quase 300 debates, o ministro afirma não ver problema algum.

"Os jornais têm grandes causas aqui [no Supremo], condenações e tal, a Globo e outros. Levar um diretor da Globo nos impede, enquanto juízes? Isso é de uma santa Ingenuidade", diz.

"Imagine que vai gerar um compromisso quanto à imparcialidade por conta disso. Nós convivemos com essas pessoas em vários lugares, dialogamos com eles em vários lugares, fazemos audiências públicas. Não é isto que muda a parcialidade ou a imparcialidade."

Às vésperas de completar 70 anos, Mendes diz estar em melhor forma do que quando tinha 40. Afirma fazer exercícios todos os dias — musculação — e cuidar do peso para não sobrecarregar a coluna.

Usa dois relógios, um em cada pulso (assim como dois anéis grossos, um em cada mão), porque um deles, diz, serve especificamente só para ordenar que ele se levante de quando em quando, evitando que fique muitas horas sentado.

O decano é um dos três ministros da Corte que se aposentarão nos próximos anos. Indicado pelo ex-presidente Fernando Henrique Cardoso (PSDB) em 2002, Mendes diz que fica até 2030 na STF.

Apesar da proximidade da aposentadoria, descansar não parece estar nos planos do ministro, que diz que pretende seguir com suas atividades.

"Espero, enquanto tiver saúde, poder me manter ativo naquilo que eu puder contribuir", diz o ministro.

Leia a seguir os principais trechos da entrevista.

O Supremo Tribunal Federal.

BBC News Brasil - O PL Antifacção foi aprovado nesta terça na Câmara. O senhor acha que o endurecimento de pena, que é uma das coisas que estão em discussão para faccionados, é um dos caminhos? Como o senhor está vendo esse projeto?

Gilmar Mendes - Acho importante que haja essa discussão, esse debate e deliberação sobre essa temática. Nós sabemos que não basta apenas o endurecimento de pena, mas que um tratamento geral dessa temática é necessário.

E é preciso organizar todo esse tema de segurança pública, melhorar a coordenação entre União, Estados e municípios e tratar do regime prisional, eventualmente de ter vagas em presídios de segurança máxima para líderes de facções.

Em suma, acho que há muito que fazer no âmbito legislativo, mas também no âmbito da coordenação administrativa. E entendo que é preciso melhorar toda essa questão e acho positivo o debate como um todo no Parlamento.

BBC News Brasil - Um dos pontos que está em discussão sobre segurança pública é a possibilidade de classificar como narcoterroristas os faccionados. Faz alguma diferença?

Mendes - Não vejo necessidade disso. Acho que são grupos também armados, não necessariamente só armados. Nós estamos vendo que [as facções] estão em muitos negócios hoje: lavagem de dinheiro na área da gasolina, do contrabando de cigarros, na venda na internet, serviços outros e tal.

Acho que quem tem proposto isto, a rigor, está vislumbrando um pouco a politização do tema ou até a internacionalização do debate, que obviamente não é necessário. O Brasil é um país soberano, sabe resolver os seus problemas e não precisa desse tipo de auxílio.

BBC News Brasil - O senhor suspendeu recentemente o julgamento da descriminalização do aborto, pedindo destaque. Por quê?

Mendes - Porque não me pareceu que era necessário dar urgência a essa temática, e que era necessário que nós eventualmente discutíssemos isso com maior profundidade.

Acho que o tema já estava parado há mais de dois anos e, com a saída do ministro [Luís Roberto] Barroso, voltou a ser pautado e não me pareceu que houvesse justificativa para esse apressamento.

BBC News Brasil - O que falta para o Supremo colocar esse tema na pauta?

Mendes - Precisamos ter um consenso em relação a isso e nós nem sabemos se, da forma como está colocado, será aprovado.

BBC News Brasil - Por que não vai nem para discussão pelo menos?

Mendes - Porque nós estamos fazendo uma avaliação sobre essa temática.

BBC News Brasil - O senhor paralisou também os processos envolvendo a "pejotização" no Brasil. Críticos, incluindo na Justiça do Trabalho, dizem que o Supremo quer mudar a CLT numa canetada. O que está em jogo nessa discussão?

Mendes - Na verdade, há uma revolução no mundo da economia digital e do próprio trabalho. Hoje, nem todo trabalho é o emprego CLT, formalizado. Na própria mídia nós sabemos que há vários tipos de contratos. Também na área bancária, em diversas áreas.

Na área de TI, então, temos múltiplos contratos. E estava havendo uma confusão, salvo engano, um dos casos que nós tínhamos era o caso de franquia em que a Justiça do Trabalho estava dizendo que eram típicos empregados. E hoje, mundo afora, nós temos inclusive empresas grandes de franquia, em várias áreas, algumas até multinacionais e que trabalham com outro tipo de contrato.

Foi por isso que eu suspendi os processos que estavam em andamento, para que nós fizéssemos inclusive uma avaliação — fizemos uma audiência pública — e vamos refletir sobre isso. Ao mesmo tempo que no Congresso Nacional também esse debate está posto agora, numa feição que a gente chama de lege ferenda [proposta de lei], uma feição legislativa para ver o adequado encaminhamento.

Não sabemos qual é o futuro do mundo do trabalho, mas a gente sabe que não é esse modelo estável que alguns imaginam. Não é assim no Brasil, não é assim hoje no mundo.

BBC News Brasil - Esse modelo estável seria o quê, CLT?

Mendes - O contrato fixo de CLT. Isto mudou completamente ao longo do tempo. E quem quiser continuar sonhando com isso, obviamente o faça.

Imagem do Supremo depois do 8 de janeiro, com os vidros com escritos "perdeu mané".

Crédito,Mateus Bonomi/Anadolu Agency via Getty Images

Legenda da foto,Vidros do Supremo depois dos atos de 8 de janeiro

BBC News Brasil - Mas o senhor não acha que a pejotização pode vulnerabilizar pessoas mais frágeis, como, por exemplo, mulheres grávidas?

Mendes - Tudo isso precisa ser avaliado, discutido e depende de legislação que dê garantias. Talvez a gente precise de uma reforma do modelo de trabalho. O próprio governo Lula, no seu primeiro ano de mandato, fez uma comissão para discutir essa questão de Uber e outros aplicativos e mandou para o Congresso um projeto, e os próprios supostamente protegidos por essa legislação se rebelaram e foram ao Congresso dizer que aquilo não os atendia.

Portanto, era aquilo que, no popular, no Brasil se diz "Deus nos livre dos nossos protetores".

O Brasil fez um avanço enorme no que diz respeito ao microempreendedor individual. Hoje se fala mal disso, se diz que há uma distorção, que eles não contribuem adequadamente, então é um caso de mudança da legislação. Ou também o modelo do Simples, que dizem que leva à distorção, isso tudo precisa ser discutido.

Tem o tema da Previdência Social e como sustentá-la. Hoje nós sabemos que um número grande de vinculados à Previdência Social contribuí com o mínimo. Uma boa parte dos chamados 40 milhões de contribuintes está aí, na faixa de 1 a 2 salários mínimos. Então, a rigor, é preciso trabalhar com esses números e ver como nós vamos encontrar outras formas de financiar a Previdência social.

Por outro lado, nós temos empresas que faturam exorbitâncias, especialmente as Big Techs, e que têm poucos empregados, contribuem com o mínimo para o sistema como um todo, então talvez nós tenhamos que discutir isso tudo.

BBC News Brasil - O senhor e o ministro Luiz Fux trocaram recentemente algumas provocações. E agora os senhores estão na mesma Turma, como vai ser essa convivência?

Mendes - Tranquila. Absolutamente tranquila. Nos conhecemos há muito tempo e teremos uma convivência exemplar do ponto de vista profissional e pessoal.

BBC News Brasil - Faz parte da democracia?

Mendes - E do processo e da nossa convivência. Este é um mundo de adultos.

BBC News Brasil - Essa coisa de mudar de Turma é comum na história do Supremo?

Mendes - Não, no momento ocorre quando há vagas, e não há vagas todo dia. Já tivemos situações em que houve vagas, mas ninguém pediu para mudar. E, em outras vezes, tem ocorrido pedido para habilitação na outra turma, quando surge vaga.

O ministro Fux, depois dos embates lá na Primeira Turma, no julgamento de Bolsonaro, entendeu que era mais avisado vir para a Segunda Turma. E foi bem recebido.

BBC News Brasil - O senhor é relator de uma ação que questiona a lei do impeachment para ministros do Supremo. Tem alguma previsão de liberar para votação?

Mendes - Espero julgar ainda esse ano.

BBC News Brasil – E por que mexer nisso agora? Tem alguma urgência?

Mendes - Quem protocolou foi o Partido Solidariedade e entendeu que é urgente, tendo em vista, inclusive, a campanha eleitoral, os ataques que se fazem a ministros do Supremo e que era necessário avaliar a lei, que é dos anos 50, à luz da Constituição de 88.

Portanto, ela [a Lei do Impeachment] foi feita ainda sob a Constituição de 46. Depois disso, nós já tivemos várias normas constitucionais, a Constituição de 67, a alteração feita em 69, várias emendas constitucionais. Portanto, é um contraste da lei dos anos 50 com vários textos constitucionais, inclusive a Constituição de 88.

BBC News Brasil - Estaria obsoleta?

Mendes - Ou revogada em muitos pontos.

BBC News Brasil - Falando sobre isso, o bolsonarismo faz uma campanha para tentar dominar o Senado a partir de 2027, inclusive citando como objetivo o poder de aprovar um suposto impeachment de ministros do Supremo. O senhor teme esse cenário?

Mendes - Não vejo isso se realizando. Não acredito nisso. Até porque, em geral, e aí a gente tem visto isso ao longo do tempo, a despeito de pessoas serem eleitas por uma dada força como a liderança do presidente Bolsonaro, eles muitas vezes têm esta relação e até algum vínculo de lealdade, mas não são muito dogmáticos ou doutrinários em grande medida.

Normalmente eles são mais forças que se aproximam de uma linha centrista ou que compreendem o papel que devem ter no equilíbrio da governança.

Acho que hoje mesmo a gente pode dizer de pessoas que foram eleitas na Câmara e no Senado pelo PL, com apoio do presidente Bolsonaro, mas que se colocam também na base do governo Lula, ou que apoiam, em momentos cruciais, o governo Lula. Portanto, essa clareza de definição no sistema partidário brasileiro não existe ou não é consistente.

BBC News Brasil - É uma minoria, o senhor acredita?

Mendes - Acredito que sim.

BBC News Brasil – O senhor vai fazer 70 anos no fim do ano. Viveu, portanto, durante a ditadura militar. Em algum momento o senhor imaginou que um período parecido poderia estar por um triz de voltar?

Mendes - A gente nunca espera isso. O Brasil viveu uma série de solavancos desde a redemocratização em 85, e depois tivemos a Constituição de 88, todos os desafios, que não têm sido simples. Nós tivemos dois impeachments presidenciais concluídos, do presidente Collor e da presidente Dilma Rousseff, muitos desafios, mas, normalmente, temos mantido os ditames do Estado de Direito. Temos sabido preservar, como agora soubemos.

Na democracia em geral, a alternância de poder vai fazendo essas trocas de fusíveis e vai se permitindo experiências. E parece que a vitória de Bolsonaro foi um pouco isso: já tentamos várias vezes o centro, tentamos a esquerda, vamos fazer agora esse tipo de experiência.

E aí aparecem essas mensagens saudosistas da ditadura, saudades do regime militar, saudades do AI 5. Em geral, são pessoas que não viveram aquele momento em que nós tínhamos tortura, censura, tínhamos abusos de toda ordem. Infelizmente isso ficou claro e explícito, e o Brasil soube dar uma resposta adequada.

Se a gente olhar o cenário dos países no mundo, talvez nós tenhamos um bom exemplo, sejamos um bom case, um case de sucesso em que as instituições foram resilientes e souberam superar uma ameaça vinda da própria presidência, do próprio Poder Executivo.

BBC News Brasil - O senhor vê algum excesso no processo de julgamento do ex-presidente Jair Bolsonaro?

Mendes - Não, eu não vejo. Acho que é um processo absolutamente normal. E acho que histórico, até. Porque, em geral, nós não temos tido exemplos de responsabilização de pessoas por tentativa de golpe. Nós tivemos ao longo dos anos várias tentativas, algumas, inclusive, infelizmente bem sucedidas, e não temos conseguido responsabilizar os autores.

Desta feita, conseguimos. O presidente da República, militares de alta patente estão sendo responsabilizados. Portanto, também aqui é um feito histórico.

Gilmar Mendes em seu gabinete, na cobertura do Supremo.

Crédito,EVARISTO SA/AFP via Getty Images

Legenda da foto,Gilmar Mendes, que se aposenta em 2030, foi indicado em 2002 por Fernando Henrique Cardoso

BBC News Brasil - E o senhor considera a pena de Bolsonaro justa?

Mendes - Essa é uma questão que se tem que analisar tendo em vista a gravidade do delito. Se olharmos tudo o que se fala: planejamento de assassinato de um juiz do Supremo, do presidente da República, de um vice-presidente da República, se avaliarmos a gravidade do delito, da subversão da ordem democrática e tudo o mais, certamente é um crime dos mais graves que nós podemos imaginar.

BBC News Brasil - Falando em assassinato, consta nas investigações que naquela minuta do golpe teria a indicação para prender o senhor, e que depois o ex-presidente Jair Bolsonaro teria pedido para retirar o senhor da lista. Por quê?

Mendes - Não sei. Sempre que fui procurado tive diálogo, inclusive com ele e com as pessoas do governo que sempre me procuraram. Pelo que eu sei, pelo que está informado, ele teria pedido para retirar o ex-presidente [do Senado, Rodrigo] Pacheco e a mim.

É uma pergunta.

BBC News Brasil - O senhor não imagina por quê?

[Ministro faz que não com a cabeça].

BBC News Brasil - O senhor acha que ele deve cumprir pena na cadeia?

Mendes - O assunto está submetido à Primeira Turma e vamos aguardar esse encaminhamento.

BBC News Brasil - Uma das maiores críticas é justamente ele ter sido julgado pela Primeira Turma, e não no plenário. O senhor não acha que esse julgamento na Primeira Turma enfraquece a imagem do Supremo, dado que peixes pequenos do 8 de janeiro já tinham sido julgados no plenário antes?

Mendes - Porque a legislação que estava em vigor estabelecia que a matéria estaria no plenário, depois o próprio tribunal, e essa é a lógica, houve por bem definir que as turmas seriam responsáveis [pelos julgamentos], a não ser em casos do próprio Presidente da República ou de presidentes de poderes.

E a turma, nesse caso, é o Supremo Tribunal Federal, como acontece em outros países, quando há subseções ou seções, ou câmaras nas Cortes supremas. Então, a rigor, não há nenhum problema em relação a isso.

BBC News Brasil - Na esteira dessas punições do governo Donald Trump contra o Brasil, o senhor teve o visto do senhor e da sua família revogado para os Estados Unidos?

Mendes - Pelo que houve de informação, sim. Mas isso também não me ocupa. Não sou um fã inveterado de ir aos Estados Unidos. E isso não me causa maiores preocupações.

BBC News Brasil - Pessoalmente não te causa, mas como o senhor vê um país revogando o visto de autoridades como o senhor?

Mendes - Acho de tudo lamentável, e verifico que as relações internacionais estão muito tumultuadas para colocar-se um tema desses pelas razões que explicitam.

Mas em suma não me causa nenhuma mossa. Realmente, não me preocupa. Estou muito feliz no Brasil. Vivo bem no Brasil, estamos bem na América Latina, temos boas relações com a Europa.

Essa questão não me afeta. Se eu tivesse um toque de lamento, seria "poxa, talvez eu não possa ir à Copa". Mas posso ver na televisão.

BBC News Brasil - E de nenhum familiar do senhor também não...

Mendes - Não. Eduquei os meus filhos aqui no Brasil e também na Europa. Moramos na Alemanha, temos uma boa vida lá. E não, não tenho nenhuma lamúria em relação a isso.

BBC News Brasil - Não muda nenhum plano do senhor de férias?

Mendes - Nada, nada, nada. Não tenho que levar ninguém à Disney.

Em suma, estou feliz.

BBC News Brasil - O senhor teme ser punido pela Lei Magnitsky, assim como o ministro Moraes?

Mendes - Não. Não me preocupo com isso. E nós não deixamos, ninguém deixou de fazer nada por conta disso.

E acho que um país como o Brasil tem que se organizar para se defender de abusos que se perpetuem em casos que tais.

BBC News Brasil - O Supremo pretende reagir de alguma forma em relação a isso?

Gilmar Mendes - Acho que já houve uma decisão que delineia a reação do Supremo, que é do ministro Flávio Dino. E certamente, em algum momento, se pode discutir também uma legislação que atenue ou apoie.

Acho que é uma questão hoje que não é só do Brasil. É uma questão de vários países e do mundo. Nós vimos sanções aplicadas a funcionários da ONU, aos funcionários do TPI [Tribunal Penal Internacional], que, na verdade, não estão fazendo outra coisa senão cumprir o seu próprio dever.

É um absurdo que um juiz que esteja cumprindo o seu dever num processo de golpe de Estado seja sancionado por uma lei que foi pensada para combater narcotraficantes ou terroristas.

BBC News Brasil - Falando sobre a vaga do ex-ministro Barroso, o senhor já declarou apoio ao senador Pacheco. O senhor disse em alguma entrevista que "o STF é jogo para adultos". Isso no momento em que se discute muito a falta de mulheres na corte e nas outras instâncias de poder. O senhor acha que não tem nenhuma mulher nesse momento, capaz de jogar esse jogo?

Mendes - Não me cabe fazer esse tipo de avaliação. Certamente temos muitas mulheres juristas qualificadas, e cabe ao presidente fazer a avaliação.

E há bons candidatos também homens. Tem sido mencionado o nome do Jorge Messias, o Bruno Dantas e outros nomes relevantes, como haverá também nomes importantes na área feminina. Temos muitas professoras, muitas juízas em várias instâncias.

Certamente há uma plêiade de nomes que pode ser considerado.

BBC News Brasil – Ministro, o senhor é sócio-fundador do IDP, ao passo que a Constituição veta a participação de ministros em qualquer atividade que não seja o magistério. Como fica essa participação do senhor como dono de uma empresa?

Mendes - Nunca houve questionamento em relação a isso. A Constituição permite que eu seja professor, eu sou professor, e que eu seja sócio, não diretor, de empresa, tanto a Constituição quanto a Lei Orgânica, de modo que isso não tem a menor relevância.

Isso é apenas um desvio que se quer fazer sem nenhuma relevância.

BBC News Brasil - Nunca ninguém questionou isso?

Mendes - Nunca foi questionado.

BBC News Brasil - Ainda relacionado ao IDP, o Instituto não sei se ainda tem, mas tinha como um dos clientes a CBF. E, em abril, o senhor concedeu uma liminar para o Ednaldo Rodrigues, que tinha sido afastado da presidência da CBF na primeira instância, para que ele voltasse ao cargo. O senhor não acha que configura conflito de interesse?

Mendes - Não, não. O IDP é uma instituição que tem hoje 25, 26 anos e tem oito cursos e está pretendendo inclusive se tornar uma universidade. E participou de um processo, um concurso em que houve presença de FGV e outras instituições, porque a CBF tinha decidido terceirizar a chamada CBF Academy. É um protocolo absolutamente normal. Foi para o IDP como poderia ter ido para qualquer outra instituição.

E sobre a polêmica da discussão da CBF, eu tomei a decisão e que foi referendada, inclusive por todos os colegas, de modo que isso não é relevante.

O que é curioso nesse tipo de questão é que nós somos só 11 que integramos o tribunal, sendo que o presidente não participa do processo de distribuição [dos processos]. Se nós começarmos a inventar causas de impedimentos, daqui a pouco nós vamos ter que chamar a [a corte internacional de] Haia para decidir.

Imposto de Renda, se houver uma subida de alíquota, repercute também sobre os juízes. Os juízes do Supremo podem decidir Imposto de Renda?

BBC News Brasil – É que a gente está falando de um cliente da sua empresa.

Mendes - Estou dizendo no geral. Nós integramos uma comunidade política aqui em Brasília, conhecemos os parlamentares, eles são julgados aqui na chamada prerrogativa de foro, e estamos impedidos de julgá-los porque os conhecemos? E os conhecemos, naturalmente.

O Senado, nas suas perguntas anteriores, o Senado é o que julga impeachment de ministros do Supremo, o Senado é que aprova os ministros do Supremo... Então veja a relação que existe.

É preciso não ser muito leviano nesse tipo de questão. Agora, para efeitos de ficar inventando firulas, aí a imaginação é livre. A rigor, a gente julga segundo determinados padrões. Este caso, por exemplo, foi decidido pelo plenário. Não foi por mim.

BBC News Brasil - Sempre vejo questionamentos todo ano, quando tem o Fórum de Lisboa, sobre quem banca os convidados para irem até lá. E gostaria de perguntar: quem banca?

Mendes - Somos nós. É o próprio IDP, a FGV e a Universidade de Lisboa, a Faculdade de Direito, o FIB, que é um fórum de Integração Brasil Europa, que é hoje um think tank que também trabalha nesse sentido. E as próprias pessoas hoje vão e pagam estadia e pagam a própria passagem. As pessoas querem participar.

Este ano nós tivemos mais de 270 palestrantes, um número grande de palestrantes. Nós tivemos mais de 3 mil inscritos. Também aqui houve uma pequena tarifa, uma pequena taxa de inscrição, R$ 800, alguma coisa desse tipo. E dando vagas gratuitas para estudantes, e também para quem eventualmente não pudesse pagar.

Então é um case de sucesso, cujo objetivo não é fazer fundos. Se fosse esse objetivo e se quisesse ter patrocínio, obviamente nós teríamos patrocínio da Globo.

BBC News Brasil - E não tem patrocínio algum?

Mendes - Não.

BBC News Brasil - É uma opção?

Mendes - É uma opção.

As instituições se beneficiam do marketing. Você falar até mal do fórum para nós é ótimo. Alguém falou isto, falou aquilo, discutiu, isso faz parte do próprio ethos do evento, dos debates que lá estão, lá se fazem.

As pessoas brincam com o nome Gilmarpalooza, a gente acha graça.

BBC News Brasil - O senhor acha engraçado?

Mendes - É engraçado. A rigor é um case de sucesso, e um dos maiores eventos jurídicos. Tanto é que inicialmente começou como Fórum Jurídico de Lisboa.

BBC News Brasil - Por que Lisboa?

Mendes - Por uma circunstância. Nós queríamos inicialmente fazer um fórum internacional e trazíamos muitos palestrantes portugueses e eles próprios propuseram Lisboa como sede.

Isso foi fixando apoio da própria universidade. Em Lisboa tenho o parceiro, o professor Blanco de Morais, titular de Direito Constitucional. Mas a ideia é fazer, de fato, um fórum internacional, trazemos americanos, trazemos ingleses, trazemos espanhóis, muitos brasileiros.

Inicialmente era um fórum jurídico e depois vimos que os temas eram muito entrelaçados, passamos a discutir economia, passamos a discutir tecnologia... E tudo que está no fórum está publicado, tem um acervo, as pessoas acham as palestras, as discussões. E discutimos as mais diversas temáticas, questão de regulação, questão de proteção do trabalho, todos os temas de saúde, ligados à economia, política internacional.

Portanto, é um fórum de grande seriedade. O André Esteves [banqueiro, um dos donos do BTG] disse "olha, e isto é um Davos que vocês conseguiram realizar". Sem nenhuma preocupação de monetizar isto. Se fosse esse o propósito, poderia ser legítimo, mas não é disso que se cuida.

BBC News Brasil – A presença de pessoas no fórum que são alvos de ações dentro do Supremo, não acha que fragiliza a imagem do Supremo?

Mendes - Não, porque ninguém os convida por conta disto. Nós temos quantos grandes bancos no Brasil? Talvez cinco. Os bancos, em geral, têm causas aqui. Deveriam estar excluídos do debate sobre a economia?

Ou uma indústria de papel, ou uma indústria de carne, deveria estar excluída por conta disso? Alguém acha que o tribunal vai decidir desta maneira porque um capitão de indústria esteve numa palestra? Isso é de uma ingenuidade...

Os jornais têm grandes causas aqui, condenações e tal, a Globo e outros. Levar um diretor da Globo nos impede, enquanto juízes? Isso é de uma santa Ingenuidade.

E nós não vamos ouvi-los por conta disso, nós vamos ouvir sobre o problema das redes sociais e da mídia, é isso que se coloca, por exemplo, nos debates.

Imagine que vai gerar um compromisso quanto à imparcialidade por conta disso. Nós convivemos com essas pessoas em vários lugares, dialogamos com eles em vários lugares, fazemos audiências públicas. Não é isto que muda a parcialidade ou a imparcialidade.

BBC News Brasil - Eu pergunto por conta da imagem da corte. Uma pesquisa de setembro da Genial/Quaest apontou que quase metade da população brasileira desacreditava no Supremo. De onde o senhor acha que vem isso?

Mendes - Eu acho que faz parte de um pouco de próprias campanhas de mídia, tendo em vista, inclusive, publicações que existem. Também tem várias pesquisas mostrando que entre as instituições, a Corte tem maior credibilidade que outras.

Alguém acredita que, se transformasse o Supremo num convento, a população iria dar maior credibilidade? Isso é uma ingenuidade, além de não ajudar em nada no vínculo com o conhecimento da realidade.

Isso aqui é um tribunal de humanos, para seres humanos e para as instituições que são dirigidas por homens e mulheres, é preciso que você conheça as instituições. Você não pode ter uma direção na sua instituição BBC de alguém que não conheça a BBC.

O mesmo debate, se a gente quisesse suscitar, valeria para a mídia. E eu conheço bem isto, estou há anos neste retrato.

A mídia tradicional, não é o caso da BBC, mas a mídia tradicional vive de propaganda.

E nem por isto é legítimo eu dizer que a Globo, Bandeirante ou qualquer outra, o Estado de São Paulo, publicam notícias tendenciosas porque recebem patrocínio do Banco do Brasil, da Caixa Econômica.

Não vejo assim. Pelo contrário, a minha experiência ao longo dos anos mostra que a linha editorial nada tem a ver com o recebimento de patrocínio.

Se isto vale para a mídia, que dirá para juízes profissionais que sabem fazer qualquer tipo de distinção.

Eu vi um dia o senador Serra dizendo que veio despachar com o ministro do Supremo e saiu convencido de que o tinha convencido [o ministro].

E dois dias depois, saiu uma decisão contra [o ex-senador José Serra, do PSDB]. O fato de as pessoas terem relacionamento ou até conversarem, ou terem até convivido conjuntamente numa dada circunstância, não nos fazem cativos de determinada premissa ou de determinada diretriz.

E aí há todo um cerco de proteção que envolve a própria jurisprudência do tribunal, as referências que se tem e a própria checagem que se faz, seja na turma, no colegiado, seja no plenário. Se alguém decidir inventar a roda numa decisão, certamente isso será olhado, a começar por nossa pequena comunidade.

Manifestantes de verde e amarelo com um cartaz pedindo o impeachment dos ministros Gilmar Mendes e Dias Toffoli.

Crédito,Fabio Vieira/FotoRua/NurPhoto via Getty Images

Legenda da foto,Para Mendes, políticos que defendem o impeachment de ministros do STF são uma minoria

BBC News Brasil - O senhor se aposenta em 2030?

Mendes - Sim.

BBC News Brasil - Tem algum tema sobre o qual o senhor gostaria de participar da decisão até lá?

Mendes - A esta altura já estou aqui há mais de 22 anos, e já participei de várias decisões importantes. A priori, não tenho nenhuma preferência ou escolha. Mas certamente pode surgir temas novos, nós temos, por exemplo, este novo mundo digital, proteção de dados, questões ligadas à inteligência artificial, avanços no que concerne à tecnologia, tudo isso pode ser importante, relevante.

Considerar a aplicação de direitos à luz desses novos desafios pode ser extremamente interessante. Atualização dos Direitos fundamentais... Mas sem nenhuma angústia, sem nenhuma pressa ou ansiedade.

BBC News Brasil - O senhor considera que, profissionalmente, o senhor fez tudo que gostaria de ter feito?

Mendes - Tenho a impressão que sim. Sempre se tem projetos e se pode considerar sempre a possibilidade de novidades.

Mas considerando a vida geral, eu acho que, se não fiz tudo, fiz muita coisa.

Tive a oportunidade de trabalhar com gente de maior valor, de maior qualificação. Eu trabalhei no governo Fernando Henrique com um grupo de gente da maior qualificação, como José Serra, como [Pedro] Malan, como Pedro Parente.

Eu posso dizer que eu, que vinha do interior do Mato Grosso e que acompanhava jogo pelo rádio, eu posso dizer que fui colega, não como jogador, mas como membro do governo de Pelé [que foi ministro dos Esportes do governo FHC]. Isto é muito raro na vida de um cidadão normal.

E depois, com 46 anos, fui indicado pelo presidente Fernando Henrique Cardoso para o Supremo Tribunal Federal.

BBC News Brasil - Voltando para a aposentadoria. O senhor não tem perfil de quem vai dizer que quer descansar quando se aposentar. Quais os planos?

Mendes - Ah, não tenho. Eu sempre tive uma vida muito prenhe de atividades, desde muito jovem, estudando, escrevendo, trabalhando em várias coisas. A academia me deu muita coisa, contatos hoje praticamente no mundo todo.

E gosto também da vida política interna, estou sempre conversando, dialogando, discutindo projetos. Fiz muitos projetos de lei ao longo desses anos, acho que quando se discutir alguém que teve grande influência em projetos estruturantes, as reformas todas no governo Fernando Henrique, eu trabalhei nelas. Privatização, as leis que tratam do controle de constitucionalidade, todas tiveram a minha contribuição ou participação. E sempre que posso sou ouvido, sempre estou sugerindo medidas no processo legislativo, é uma área que me fascina.

Espero, enquanto tiver saúde, poder me manter ativo naquilo que eu puder contribuir.

BBC News Brasil - O senhor tem netos?

Mendes - Eu tenho dois casais, a Cecília e o Tom, filhos da Laura, e o Antônio e a Maria, filhos do Francisco.

BBC News Brasil - Como foi virar avô?

Mendes - Ah, é bom, é muito bom, me sinto bastante privilegiado. Um pouco compensado, porque talvez hoje tenha mais tempo para dedicar atenção a eles.

Acho que eu tive uma vida muito feliz ao longo do tempo, jovem, com muitas posições de destaque, mas também muito exigente. Então, de quando em vez, dá um sentimento de pergunta, de remorso, de "será que", e os netos permitem que a gente se compense. Esses dias, o Tom, que é muito engraçado, faz considerações assim, muito originais, ele disse que eu era um avô especial porque dava atenção às atividades dos netos, que eu ia a jogo de futebol.

BBC News Brasil - O senhor cuida mais da saúde depois que virou avô?

Mendes - É claro que, na medida que a gente tem essa outra perspectiva, netos e tal, você ganha outra motivação. Mas a motivação inicial foi de realmente zelar pela saúde. Eu acho até que hoje tenho uma saúde melhor do que eu tinha aos 40. Eu tinha muitas dores nas costas, eu conhecia tudo que você pode imaginar em termos de mecanismos para tentar minimizar dor ciática.

Uso dois relógios por conta disso, porque um relógio me manda levantar a cada 40 minutos.